Os Savonarolas da
extrema-esquerda
FRANCISCO ASSIS
04/12/2014 – PÚBLICO
Foram raras as ocasiões em que a esquerda democrática e liberal esteve mais
próxima da extrema-esquerda do que de uma certa direita liberal e republicana.
1. Imaginemos que
três simples palavras desapareciam do nosso léxico político: neoliberalismo,
valores, populismo. Se assim sucedesse, a nossa esquerda proclamatória ficava
condenada ao silêncio. Isto traduz a imensa vulnerabilidade doutrinária de uma
retórica onde a grande eloquência dos lugares-comuns não consegue esconder um
imenso vazio de ideias. Talvez por isso mesmo alguns dos principais
representantes desta linha de não-pensamento tenham recentemente encontrado uma
curiosa vocação inquisitorial.
Todo o dogmatismo
se alimenta da exploração de uma suposta heresia. Há sempre um pequeno
Savonarola sob a epiderme de um falso progressista. O método, pela sua usura,
adquiriu um estatuto de banalidade: nomeia-se um inimigo, imputa-se-lhe
arbitrariamente uma pérfida intenção, deturpam-se deliberadamente os seus
propósitos e promove-se um juízo definitivo visando a sua absoluta
desqualificação moral e política. Uma voz tonitruante ajuda a credibilizar esta
farsa. Já os esganiçados têm mais dificuldade em levar a água ao seu moinho.
Há agora um novo
crime no código penal doutrinário desta gente: um homem de esquerda não pode
advogar a vantagem de um entendimento político de fundo com formações de
centro-direita. Não ocorre a estes novos puristas lembrar o que foi grande
parte da história do século XX europeu, e tampouco o que foi o percurso
político da democracia portuguesa nos últimos quarenta anos. Na Europa, desde a
célebre cisão do Congresso de Tours, ocorrida no já longínquo ano de 1920,
foram raras as ocasiões em que a esquerda democrática e liberal esteve mais
próxima da extrema-esquerda do que de uma certa direita liberal e republicana. Não
valerá a pena recordar o essencial do percurso histórico do movimento
social-democrata alemão, sem sombra de dúvida o mais poderoso movimento
político de toda a esquerda democrática europeia. É verdade que pelo meio se
verificaram, aqui ou ali, experiências de sentido distinto, condenadas quase
sempre a um curto período de sobrevivência.
Olhemos para o
projecto europeu. Não resulta ele de um entendimento de fundo entre a família
socialista e social-democrata, de um lado, e a família democrata-cristã e
liberal, do outro? Não foi na base de um consenso dessa natureza que foi
possível garantir a construção e consolidação do projecto político europeu com
tudo o que isso significa de avanço no próprio plano civilizacional? E não foi
precisamente quando esse consenso foi abalado que se registaram períodos de
verdadeira regressão de alguns dos direitos que justificadamente consideramos
dos mais avançados que a humanidade já foi capaz de estabelecer? As respostas
parecem-me óbvias e não deixam lugar a grandes dúvidas.
Concentremo-nos
na apreciação do presente: uma nova esperança emerge no horizonte político
europeu. Jean-Claude Juncker parece apostado em promover o relançamento do
investimento público e uma significativa homogeneização da fiscalidade
europeia. Nos três grandes discursos proferidos até agora perante o Parlamento
Europeu, Juncker deixou clara uma intenção: é preciso criar condições para o
relançamento do crescimento, para a superação do risco deflacionário, para a
ultrapassagem do problema do desemprego. O presidente da Comissão disse
praticamente a mesma coisa que toda a esquerda democrática europeia anda a
dizer nos diversos Estados-Membros da União. É verdade que não disse que é
preciso rasgar o Tratado Orçamental, renegociar as dívidas públicas, ignorar o
problema do endividamento ou perspectivar a adopção de medidas proteccionistas
radicais que teriam o efeito de colocar a Europa em colisão com o resto do
mundo. Ainda bem que o não fez. Se o tivesse feito não estaria a absorver o
discurso da esquerda democrática europeia; estaria, isso sim, a render-se à
retórica de uma certa extrema-esquerda de inspiração bolivariana que
alegremente por aí campeia.
Há qualquer coisa
de esquizofrénico quando se pretende construir em Portugal uma solução política
à revelia do que se está a realizar a nível europeu. Essa esquizofrenia tem um
preço no plano eleitoral. Sectores importantes da população jamais confiarão em
vendedores de ilusões ou em extremistas convictos. É por isso mesmo que o
melhor aliado da direita é uma esquerda inconsequente. Poderão alguns, dotados
de uma inteligência prática que os conduz à sustentação das mais antagónicas
linhas de orientação, preconizar a tese de que este discurso resplandece de
astúcia política. Estão profundamente enganados. A astúcia, quando é demasiado
evidente, transforma-se no contrário dela própria. Haverá certamente − e esses
até me merecem alguma consideração moral − os que acreditam piamente num
caminho desta natureza. Do meu ponto de vista estão errados, mas têm pelo menos
a vantagem de uma certa rectidão ética. Pensar que se enfrenta a
extrema-esquerda começando por enganá-la é ignorar regras basilares da vida
democrática.
Tenho o maior
respeito por quem, com toda a legitimidade, continua a preconizar soluções de
natureza comunista ou proto-comunista no tempo em que vivemos. Estou certo de
que na maior parte dos casos o fazem por boas razões no plano moral, e não
ignoro a importância de muitas das suas motivações. Não sou daqueles que por
tudo e por nada os responsabiliza pelos crimes de todos os regimes de
inspiração comunista − até porque estou certo de que muitos deles, se confrontados
com situações dessa natureza, teriam sido as primeiras vítimas. Bem sei como os
comunistas portugueses resistiram heroicamente no tempo do salazarismo. Não
cometo, por isso, a ignomínia de os comparar aos defensores de outro tipo de
soluções autoritárias. Simplesmente acho que estão absolutamente errados e que
não é possível contar com eles para a construção de uma solução governativa
para o país. A ideia que nunca me passaria pela cabeça seria a de tentar
instrumentalizá-los numa tentativa – destinada ao insucesso − de captar grande
parte do seu eleitorado.
É por isso mesmo
que, pugnando naturalmente pela obtenção de uma maioria absoluta para o Partido
Socialista, preconizo um entendimento de regime com o PSD se tal não vier a
suceder. Digo-o na convicção de que esta é hoje uma posição claramente
minoritária no partido em que sempre militei. Estou, contudo, plenamente
convencido da vantagem de um entendimento desta natureza. Explicitarei tal tese
no meu próximo artigo.
2. Era isto, e
apenas isto, que eu tinha a intenção de dizer no congresso do meu partido, o
Partido Socialista.
3. Aproveito o
ensejo deste artigo para clarificar o seguinte: contrariamente ao que foi
enunciado por alguns jornalistas presentes no vigésimo Congresso do PS, não fui
afastado dos órgãos dirigentes do partido. Fui eu próprio, por minha livre
iniciativa, que decidi regressar à condição de militante de base do PS.
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