Mãe de Sócrates: a história de
uma fortuna que não chegou a sê-lo
JOSÉ ANTÓNIO CEREJO
04/12/2014 - PÚBLICO
Um dos mitos que José Sócrates não quis alimentar durante muitos anos foi o
da suposta fortuna da mãe. Isso valeu-lhe tantas suspeitas quanto à origem da
riqueza que ostentava, que no ano passado resolveu dar gás ao mito. Afirmou que
ela nem sabia o que fazer com tantos prédios e andares que herdara. Nessa
altura, porém, ela já tinha vendido quase tudo. E não era tanto quanto isso.
“Quando o meu avô
morreu, a minha mãe herdou uma fortuna, muitos prédios, andares, que ainda hoje
ela não sabe o que fazer com eles.” Foi assim que José Sócrates falou pela
primeira vez, em Outubro do ano passado, numa entrevista ao Expresso, sobre a
suposta fortuna da mãe. Na verdade, nesse dia, a senhora já praticamente nada
tinha, além do modesto rés-do-chão em que vive em Cascais, de uma arrecadação
em Setúbal e de uma terça parte de uma casa na sua aldeia natal, em
Trás-os-Montes.
O apartamento de
luxo em que morava desde 1998, no Heron Castilho, o prédio da Rua Braamcamp, em
Lisboa, onde o filho residia até ser preso, tinha-o vendido um ano antes, em
Setembro de 2012. A
venda rendeu 600 mil euros e o comprador foi Carlos Santos Silva, o velho amigo
de Sócrates igualmente detido pelos mesmos indícios de corrupção, fraude fiscal
e branqueamento de capitais que levaram o ex-primeiro-ministro ao
Estabelecimento Prisional de Évora.
Mas Sócrates
preferiu não o dizer ao Expresso. Disse apenas que a mãe “conseguiu vender dois
andares em Queluz que estavam ocupados.” Omitiu foi que essa venda tinha sido
feita há 24 anos, em 1990. E muito menos disse que, há três anos, logo após a
sua derrota eleitoral nas legislativas de 2011, vendeu igualmente dois andares
no Cacém.
Também neste
caso, o comprador foi Carlos Santos Silva, que resolveu pagar 100 mil euros por
um deles, que estava e está devoluto, e 75 mil pelo outro, que está arrendado.
Num prédio vizinho, também situado na Rua Dr. António José de Almeida, está
actualmente à venda um andar igual, também sem inquilinos, pelo qual uma
agência imobiliária está a pedir 64.500 euros. Moradores na mesma rua garantem,
contudo, que este género de apartamentos, com cerca de 35 anos, se vende ali
por valores entre os 40 mil e os 50 mil euros.
A escritura do
primeiro daqueles dois andares da mãe de Sócrates, Maria Adelaide de Carvalho
Monteiro, foi celebrada a 6 de Junho de 2011, no dia seguinte ao das eleições.
A segunda foi assinada um mês depois, a 7 de Julho. Em ambos os casos, Maria
Adelaide e Carlos Santos Silva, o comprador, foram representados pelo mesmo
procurador: o advogado Gonçalo Trindade Ferreira, igualmente arguido e
indiciado pelos mesmos crimes que Sócrates e o amigo.
De acordo com o
que tem sido publicado por vários jornais, mas até agora sem confirmação
documental, os 675 mil euros pagos por Santos Silva terão depois sido
transferidos por Maria Adelaide, em pequenas parcelas, para a conta do seu
único filho vivo e resultariam de vendas simuladas, destinadas a branquear a
origem de parte do dinheiro que o ex-primeiro-ministro teria depositado em nome
do amigo. Em todo o caso, e do ponto de vista teórico, as duas netas, ainda
menores, deixadas por António José Pinto de Sousa, o irmão de Sócrates que
faleceu aos 49 anos, no início de Agosto de 2011 (duas semanas depois da morte
do pai de ambos), terão sido assim prejudicadas com estas aparentes doações da
avó ao tio.
Relativamente aos
dois andares do Cacém, Sócrates disse à RTP, numa carta divulgada no princípio
desta semana, que a mãe vendeu, com a ajuda do irmão, os dois apartamentos “por
um preço total de 100 mil euros”. E acrescentou que se trata de “um preço justo
que resultou de uma avaliação”. As escrituras celebradas no cartório da notária
Isabel Catarina Portela Guimarães Neto Ferreira, na Av. Almirante Reis, em
Lisboa, não deixam, porém dúvidas: a venda foi feita por um preço total de 175
mil euros.
Mas estas vendas,
a dos dois andares do Cacém e a do apartamento do Heron Castilho, foram apenas
as últimas e quase derradeiras. Ao longo dos últimos 32 anos, o património que
Maria Adelaide herdou, e que, afinal, não foi assim tão valioso quanto isso,
foi sendo vendido, doado e até expropriado.
Doze andares
modestos
No total,
chegaram à sua posse — por herança directa do pai, pela dissolução de uma
empresa de que ele era sócio, pela morte, sem filhos, de um dos três irmãos e
ainda pelo divórcio — 12 apartamentos (em Setúbal, Queluz, Cacém, Cascais e
Covilhã), uma arrecadação (Setúbal), um terço de uma casa em Vilar de Maçada,
concelho de Alijó, um sexto de mais três andares (em Queluz e Setúbal), um
terreno rústico com 320 m2
(Covilhã), um sexto de um lote de terreno no Barreiro com 300 m2 , três doze avos de
dois lotes de terreno em Setúbal, um sexto de outro lote de terreno em Setúbal
e um sexto de um armazém, também em Setúbal.
Filha do primeiro
casamento de Júlio César Araújo Monteiro, o homem que amealhou algum dinheiro
no negócio do volfrâmio durante a Segunda Guerra Mundial, em Trás-os-Montes, e
depois se dedicou à construção civil em Lisboa, Maria Adelaide só por um triz é
que não perdeu uma boa parte da sua herança: a segunda mulher de Júlio César,
mãe dos dois tios maternos de Sócrates, faleceu em 1981, cinco dias antes do
marido.
Nas partilhas
feitas no ano seguinte intervieram Maria Adelaide e o seu irmão José Júlio,
também filho do primeiro casamento do pai, e os irmãos Celestino Júlio e Júlio
Eduardo, filhos de Júlio César e da sua segunda mulher, Maria Olímpia. A
totalidade dos bens deixados consistia em andares e terrenos, cabendo um terço
aos dois irmãos mais novos e um terço a Maria Adelaide e a José Júlio.
Foi assim que, em
1982, a
mãe de Sócrates herdou um dos andares do Cacém (Rua Dr. António José de
Almeida), dois andares num prédio em Queluz (Rua Dr. António Correia de Sá, no
Monte Abraão) e um pequeno apartamento (casa da porteira, com 35 m2 ) em Setúbal (Rua
Ocidental do Mercado). Além disso, ficaram a pertencer-lhe um sexto de outro
andar no mesmo prédio de Queluz, um sexto de mais um andar em Setúbal (noutro
prédio da Rua Ocidental do Mercado) e ainda um sexto de outro andar em Setúbal
(Praceta de Macau).
Por último,
couberam-lhe um sexto de um lote de terreno para construção com 453 m2 em Setúbal (Estrada
de Algodeia), um sexto de um terreno com cerca de 17.438 m2 em Setúbal (na
Escarpa de São Nicolau), um sexto de um pequeno armazém com 600 m2 em Setúbal (Estrada
da Graça) e um sexto de um lote para construção com 300 m2 no concelho do
Barreiro.
Ainda em 1982, os
quatro irmãos partilharam também a parte que lhes pertencia no património de
uma empresa de construção civil, a Barros & Monteiro, de que Júlio César
fora sócio desde 1945 e que foi então dissolvida. Dessa partilha ficaram para
Maria Adelaide dois andares num subúrbio de Cascais (Rua Furriel João Vieira) e
uma arrecadação autónoma na cave de um prédio de habitação de Setúbal (Rua Dr.
Miguel de Sampaio e Melo).
Doze anos depois,
em 1994, na sequência do falecimento do irmão José Júlio, que morreu solteiro
no Brasil, em 1988, Maria Adelaide herdou ainda dois andares no mesmo prédio da
Rua Furriel João Vieira, em que já possuía dois, mais o pequeno rés-do-chão em
que actualmente reside, no centro de Cascais (Rua Vasco da Gama), e um outro andar,
a duzentos metros do anterior, na Rua Freitas Reis.
Um período de dificuldades
Depois de se ter
divorciado, em 1979, ficando Sócrates a viver na Covilhã com o pai, Maria
Adelaide passou um período de algumas dificuldades, primeiro no Pragal, Almada,
e depois em Cascais, onde morava o irmão José Júlio. Da partilha que fez com o
ex-marido, o arquitecto Fernando Pinto de Sousa, coube-lhe uma pequena casa em
ruínas situada na Covilhã (Rua do Norte), junto à muralha da cidade, um sótão
para habitação também na Covilhã (Rua Rui Faleiro), um terreno rústico com 300 m2 no mesmo concelho e
um terço de uma casa de dois andares com quintal e pátio na sua terra natal, em
Vilar de Maçada (Rua da Encruzilhada).
Esta propriedade,
aliás, só foi registada em seu nome, por usucapião, em 2002. Na escritura que
serviu para justificar este registo, apesar de aquela parte da casa lhe ter
sido adjudicada na partilha que fez com o ex-marido em 1979, Maria Adelaide
declarou que a propriedade tinha sido por ela adquirida “por volta de 1980, já
no estado de divorciada, por compra verbal” ao seu próprio pai.
A avaliação dos
bens assim herdados por Maria Adelaide é complexa, tanto mais que a maior parte
deles já foi vendida há muitos anos a preços muito inferiores aos actuais. Em
todo o caso, supondo-se que todos eles ainda estavam actualmente na sua posse,
o seu valor total deveria situar-se algures entre um e dois milhões de euros.
Quando recebeu a
herança do pai, a mãe de Sócrates residia com o filho António José, então com 20
anos e uma vida muito complicada, e com a filha mais nova, Ana Maria, falecida
em 1988. Logo em 1982, um mês depois da partilha, vendeu a sexta parte do
rés-de-chão com que ficara em Queluz e onde, há muitos anos, funciona uma
farmácia. Nesse mesmo ano vendeu também a sexta parte de um dos andares que
herdara na Rua Ocidental do Mercado e a sexta parte da fracção da Praceta de
Macau, ambas em Setúbal.
O melhor negócio
de todos
Dois anos depois,
em 1984, fez uma doação a José Sócrates de metade da casa com que ficara pelo
divórcio na Covilhã, vendendo a outra metade, por 100 contos (500 euros) ao
ex-marido (ver texto à parte). Em 1990, foi a vez de se desfazer dos dois
andares do prédio de Queluz, andares que agora não chegam a valer 100 mil euros
cada um. Entre 1997 e 1999, vendeu três dos apartamentos da Rua Furriel João
Vieira, tendo doado ao filho António José, em 1997, o apartamento da Rua
Freitas Reis, em Cascais.
Alguns anos
antes, com as receitas das vendas já efectuadas, comprou uma moradia em Cobre,
nos arredores de Cascais, onde viveu até a vender, em 1998. Foi então, porque
lhe tinha morrido o cão e se sentia muito só, conforme José Sócrates disse no
ano passado ao Expresso, que decidiu comprar, em Maio desse ano, um apartamento
no Heron Castilho, onde já vivia o filho, por 44.923 contos (cerca de 225 mil
euros).
Em 1998, quatro
meses antes de comprar a fracção do Heron Castilho, fez, com os três irmãos
vivos, aquele que terá sido o mais proveitoso dos negócios que envolveram a sua
herança (ver texto à parte). Chegou a acordo com o Estado para que este
expropriasse o armazém da Estrada da Graça e os 17.438 m2 da Escarpa de
São Nicolau (Setúbal) pelo valor total de 298.060 contos (perto de 1,5 milhões
de euros), cabendo-lhe a ela uma sexta parte, ou seja, 49.676 contos (cerca de
249 mil euros).
Mais tarde, em
2001, vendeu aos irmãos a sexta parte do lote de terreno da Estrada de
Algodeia, em Setúbal, e em 2003 vendeu o sótão da Rua Rui Faleiro, na Covilhã.
Nos oito anos seguintes, nos quais se incluem os seis em que Sócrates chefiou o
Governo, os registos públicos não dão nota de qualquer venda feita por Maria
Adelaide.
Já em Junho e
Julho de 2011, como já se disse, vendeu os dois andares que lhe restavam no
Cacém. No ano seguinte, vendeu o apartamento do Heron Castilho e foi para o
pequeno rés-do-chão da Rua Vasco da Gama, em Cascais, que herdara por morte do
irmão José Júlio.
Presentemente,
para lá deste apartamento, Maria Adelaide tem em nome dela um terço da casa de
Vilar de Maçada, a arrecadação da Rua Dr. Miguel de Sampaio e Melo, em Setúbal.
Por dificuldades
de identificação das propriedades nos respectivos registos, o PÚBLICO ainda não
conseguiu esclarecer se a habitação da porteira de um dos prédios da Rua
Ocidental do Mercado, em Setúbal, o lote para construção do Barreiro e a
parcela rústica da Covilhã ainda lhe pertencem.
Computador retirado da casa de
Sócrates foi apreendido dois dias após a sua detenção
MARIANA OLIVEIRA
e ROMANA BORJA-SANTOS 04/12/2014 - PÚBLICO
Despacho do Supremo que rejeitou pedido de habeas corpus para o
ex-primeiro-ministro revela que o computador foi recuperado graças a
informações prestadas por Sócrates em sede de interrogatório.
O computador do
ex-primeiro-ministro José Sócrates, um dos objectos que foram retirados da sua
casa, em Lisboa, na véspera da sua detenção, foi apreendido dois dias mais
tarde pelas autoridades, após informações prestadas pelo próprio ex-governante
durante o interrogatório judicial.
A informação
consta no despacho do Supremo Tribunal de Justiça (STJ) que rejeitou nesta
quarta-feira o pedido de habeas corpus (libertação imediata) de Sócrates por
"manifesta falta de fundamento". Este dado faz parte de uma
informação remetida ao Supremo pelo juiz de instrução Carlos Alexandre e
transcrito em parte naquela decisão.
Carlos Alexandre
dá conta de que proferiu o despacho que determinou a detenção de José Sócrates
no dia 18 de Novembro, terça-feira, tendo no dia seguinte sido emitido o
respectivo mandado de captura. Nessa quarta-feira, revela o magistrado,
Sócrates “ausentou-se de Portugal com bilhete de regresso para o dia seguinte”.
Na quinta-feira
as autoridades realizaram várias buscas e detiveram o motorista do
ex-primeiro-ministro, tendo já depois da meia-noite detido Carlos Santos Silva,
amigo do antigo governante, e Gonçalo Trindade Ferreira, um advogado que
trabalhava com este. Sócrates não regressa no voo previsto e entre quinta e
sexta-feira verifica-se “a retirada de objectos, dispositivos informáticos, da
casa de José Sócrates”.
O
ex-primeiro-ministro é detido nessa sexta-feira pouco depois das 22h30, tendo
no dia seguinte acompanhado as buscas à sua casa de Lisboa. “No dia 23 de Novembro
[domingo] foram recuperados e apreendidos os objectos que haviam sido retirados
da casa do arguido, após informações fornecidas pelo mesmo em sede de
interrogatório”, lê-se na informação enviada ao STJ por Carlos Alexandre.
Contactado pelo
PÚBLICO, o advogado de Sócrates, João Araújo, precisa que a informação sobre a
localização dos objectos foi dada por ele ao juiz Carlos Alexandre, realçando
que “esse assunto foi dado como estando ultrapassado”. João Araújo recusa-se,
contudo, a explicar por que o computador de Sócrates foi retirado da sua casa,
sublinhando apenas que a “explicação está no processo” e que não pode falar
sobre o assunto.
Na informação,
Carlos Alexandre justifica a prisão preventiva do ex-governante com a “verificação
dos perigos de fuga e de perturbação da recolha e da conservação da prova”. E
refere que Sócrates tinha prevista para 24 de Novembro, segunda-feira, uma
viagem para o Brasil no âmbito da actividade de consultor da Octapharma.
A audiência do
habeas corpus pedido pelo jurista Miguel Mota Cardoso durou menos de 30
minutos, mas uma outra deve ocorrer nos próximos oito dias, já que, também
nesta quarta-feira, entrou um novo pedido de libertação imediata no STJ
solicitado por um outro cidadão.
As estatísticas
mostram que o sucesso é uma raridade neste tipo de acção. Entre 2009 e 31 de
Outubro deste ano, deram entrada no STJ 696 pedidos de habeas corpus, mas
apenas 23 foram deferidos, ou seja, 3,3% do total.
João Araújo
esteve presente na audiência, condenando a “prisão manifestamente ilegal e
barbaramente injusta” do seu cliente. O advogado criticou o desaparecimento do
crime de tráfico de influências, que constava no mandado e “sumiu
misteriosamente” no despacho que determinou a prisão preventiva. “Esta prisão é
uma prisão para investigar. Não é nada mais do que isso”, alegou. Sobre os
fundamentos concretos da prisão preventiva, João Araújo reforçou que “o risco
de fuga é patético”, insistindo: “O meu constituinte entregou-se à prisão. Ele sabia ao que vinha”.
Na decisão, os
três juízes sublinham que a prisão preventiva de Sócrates “não se evidencia
como um atentado ilegítimo à sua liberdade individual, qualificado de grave,
anómalo, grosseiro e imediatamente verificável”. A Miguel Mota Cardoso, o requerente,
o pedido vai custar 1326 euros em custas.
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