As 50 sombras de Fernandes
JOÃO MIGUEL
TAVARES 02/12/2014 - PÚBLICO
O preocupante está aqui, neste
apego ao fantasma do homem autoritário, que num impulso semifetichista muitos
adoraram ver mandar com voz grossa, ainda que para isso fosse preciso fechar os
olhos ao mais elementar bom senso e às regras básicas do escrutínio público.
No DN de
sexta-feira, Ferreira Fernandes chamou-me “pedaço de asno”, a propósito da
minha última crónica sobre José Sócrates.
Como observou – e
bem – um amigo meu, isso não é necessariamente um insulto: dependendo do pedaço
do asno de que estamos a falar, pode até ser lisonjeiro. Mas, a bem da tese que
hoje aqui me traz, admitamos que não se trata de um elogio – nesse caso, o
“pedaço de asno” de Ferreira Fernandes encaixa num padrão comum a José Sócrates
e aos seus mais íntimos admiradores, que sempre reagiram de forma totalmente
desbragada às acusações que lhe eram feitas. O “pedaço de asno” de Ferreira
Fernandes é da mesma escola dos ataques de cólera do primeiro-ministro, do tom
utilizado pelos blogues corporativos ou da entrevista pejada de turpilóquios
que Sócrates ofereceu a Clara Ferreira Alves. É um reflexo cristalino do
“animal feroz”.
Convém fazer
justiça a Ferreira Fernandes: embora o DN viva agora mais próximo de Luanda,
ele não estará a treinar para editorialista do Jornal de Angola, nem andará à
procura de retirar vantagens da sua fidelidade ao preso 44. O “pedaço de asno”
é um grito vindo do fundo da alma. Dir-se-á: depois de tantos anos a apostar no
cavalo errado, não admira que só pense em burros. Mas não é isso. É uma outra
coisa, a meu ver mais preocupante: é um efectivo deslumbramento por quem exerce
o poder de forma decidida e por quem demonstra uma resistência inquebrantável
diante das adversidades.
Ferreira
Fernandes em 2009: “Sobre os factos [do caso Freeport] não sei nada, só posso
ser testemunha abonatória de José Sócrates: ele é o melhor primeiro-ministro
que já tive.” Há uma vasta fatia do eleitorado para quem Sócrates foi,
efectivamente, a encarnação do líder perfeito: o homem que falava com as
preocupações da esquerda e exercia o poder com a determinação da direita. Citemos
Ferreira Fernandes outra vez, agora já este ano, numa crónica sobre liderança:
“A tragédia é a falta de líderes. Podia ser a divisa de Portugal.”
Podia – excepto
durante o consulado de José Sócrates. Aí, havia um macho alfa a dominar o seu
território político, com uma determinação nunca antes vista – e muitos homens e
muitas mulheres perderam a cabeça nas suas 50 sombras. Contentaram-se com
explicações dúbias, pactuaram com mentiras, ignoraram os indícios gritantes que
se acumulavam à sua volta. O preocupante está aqui, neste apego ao fantasma do
homem autoritário, que num impulso semifetichista muitos adoraram ver mandar
com voz grossa, ainda que para isso fosse preciso fechar os olhos ao mais
elementar bom senso e às regras básicas do escrutínio público.
Claro que
Ferreira Fernandes não justifica a sua defesa de Sócrates com o fascínio que as
mariposas sentem pela luz. O que ele advoga é o supremo respeito pela presunção
da inocência, já que “835 suspeitas não fazem, necessariamente, uma culpa”. Não,
não fazem. Mas 835 suspeitas fazem, pelo menos, 83 cabalas e meia – onde estão
elas? Pior: quando nessas 835 suspeitas há oitocentas que o suspeito explica
muito mal, acreditar nele passa a ser coisa do domínio da fé, género de devoção
em que Ferreira Fernandes superou largamente os pastorinhos de Fátima. Fascinado
pela imagem do líder viril, inquebrantável e intempestivo, os seus infindáveis
textos em defesa de José Sócrates foram extraordinários exemplos da arte de não
ver um palmo à frente do nariz. Ferreira Fernandes andou sete anos de palas nos
olhos – e o asno sou eu?
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