Álvaro Santos Pereira: os atritos
com Gaspar, o desprezo por Portas e a desconfiança nas estatísticas
LUÍS VILLALOBOS
03/12/2014 - PÚBLICO
O livro do ex-ministro da
Economia é um testemunho da sua passagem pelo Governo, logo, uma visão
unilateral que serve para passar a sua mensagem. Editado após o fim do programa
da troika, mas ainda durante o mandato do Executivo do qual fez parte, mostra
as desavenças com Portas e Gaspar, revela que não confiava nos contas oficiais
do desemprego, e elenca os lóbis sectoriais.
Poucos meses de
ter sido nomeado ministro da Economia, Álvaro Santos Pereira publicou Portugal
na hora da verdade, e, por essa altura, este professor universitário,
independente dos partidos, já estava ligado ao PSD, ajudando, nomeadamente,
Passos Coelho nas negociações com a troika. Agora que saiu do Governo, e
trabalha na OCDE, é a vez de, como ex-ministro, editar uma nova obra,
intitulada Reformar sem medo, um independente no Governo. Editada pela Gradiva,
chega esta semana às livrarias.
É um ajuste de
contas com a história, e, através do seu olhar, das suas palavras, apontamentos
e memórias, somos conduzidos ao interior do Executivo formado pelo PSD e pelo
CDS, tendo como pano de fundo o plano de trabalhos que liderou enquanto
ministro. Ao todo, são 420 páginas, que olham também para o futuro, o qual,
diz, tem de passar por “um reescalonamento a longo prazo da dívida dos países
europeus mais endividados”. Além disso, defende, “se não baixarmos os impostos
das empresas e das famílias, o país nunca conseguirá atrair investimento
significativo.”
Sobre o passado,
revela os atritos com Vítor Gaspar, sublinha o seu desprezo por Paulo Portas, e
elenca, embora de forma pouco aprofundada, a forma como lidou com os lóbis. Enquanto
responsável pela pasta do Emprego, é também surpreendente saber que não
confiava nas estatísticas oficiais, tendo compilado os seus próprios dados. Seguem-se
excertos do livro, seleccionados pelo PÚBLICO, sobre alguns dos temas abordados
por Santos Pereira.
Sobre ele próprio e o Governo
– "(…) o
principal sacrifício dos dois anos de governação foi familiar. Houve muito
menos atenção e muito menos tempo do que eu gostaria para passar com os meus
filhos e a Isabel, de modo que eles ressentiram-se e o meu casamento
ressentiu-se. Esse foi o verdadeiro custo, ou pelo menos o mais penoso, de dois
anos de Governo.”
– “Reflectindo
sobre o meu percurso na gestão do maior ministério da história da democracia,
penso que parece óbvio que os primeiros meses acabaram por determinar um pouco
o resto do meu período no Governo. O facto de ter sido um independente que
entrou para o Governo sem experiência política e sem aliados políticos fez com
que tivesse levado tempo a construir coligações e alianças.”
– "(…) como
fazer um contraponto ao Ministro das Finanças mais poderoso desde Salazar seria
sempre delicado, é de certa forma natural que houvesse uma grande impaciência
nos primeiros meses em relação ao ministro da Economia e do Emprego.”
– “Como o ministro das Finanças era quase
intocável, e como o líder do segundo partido da coligação preferiu não lidar
com a troika e com as razões da crise, o descontentamento sobrou facilmente
para aquele que vinha de fora (o "emigrante"), aquele que não conhecia
a realidade do país (o "estrangeirado"), aquele que não tinha a
força política (que, aliás, nenhum outro ministro tinha) para enfrentar as
Finanças e a troika.”
– “É verdade,
isso sim, que eu não tive peso político para travar a saída da AICEP do
Ministério da Economia, um erro que viria a ser parcialmente colmatado com a
minha saída e a correspondente entrada do CDS para o ministério... Sim, é
verdade que eu não tive peso político para travar a subida do IVA da
restauração, até porque a troika e outros eram a favor de tal subida. Sim, é
verdade que não tive peso político para, durante largos meses, convencer a
troika, o Banco de Portugal, e o Ministério das Finanças que a falta de
financiamento das nossas empresas era o principal risco para o Programa de Ajustamento".
– "(…) É
caso para perguntar: se, sem peso político, eu e a minha equipa conseguimos
tanto, o que é que aconteceria se tivéssemos tido peso político? A resposta é
relativamente simples: a reforma do IRC teria culminado na taxa mais
competitiva da Europa, os impostos não teriam aumentado como aumentaram em 2012
e muito menos em 2013, as rendas da EDP teriam sido cortadas ainda mais, a
AICEP não teria saído do Ministério da Economia e tínhamos tido mais e melhores
mecanismos de financiamento das nossas PMEs.”
Sobre o desemprego
– “Quando tomámos
posse em Junho de 2011, já era mais do que patente que o principal problema
social que teríamos pela frente era o enorme aumento do desemprego”
– “(…)
provavelmente ninguém, nem no Governo, nem na Oposição, pensaria que o
desemprego iria subir tanto. Ou, pelo menos, tão depressa.”
– “Porque é que o
desemprego aumentou tanto e tão rapidamente, então? Houve dois factores
principais: a contracção do crédito (…) e a severidade da recessão”.
– “Como ficou rapidamente
patente que as estatísticas existentes não eram muito realistas, decidimos
fazer as nossas próprias estimativas para os meses seguintes, tendo em linha de
conta a contracção do crédito (que, recordo, alguns negavam estar a acontecer)
e o quase colapso do sector da construção”. “Quando chegaram os resultados, foi
imediatamente evidente que as nossas previsões eram bastante mais pessimistas
do que as estatísticas oficiais.”
Sobre a troika
– “A chegada da
troika foi fundamental para evitarmos a bancarrota e cair numa situação de
colapso financeiro, bancário, orçamental e económico, o que teria tido
consequências sociais desastrosas.” “(…) Ainda assim, isto não quer dizer que
tudo o que seja relacionado com a troika esteja certo ou deva ser aceite por
nós passivamente.”
– “O crédito para
as PMEs caiu mais de 20 mil milhões de euros, o que corresponde a uma quebra de
quase 15% do crédito registado no início de 2011. Uma redução brutal e brusca
do financiamento, que acabou por matar muitas das nossas empresas endividadas,
muitas delas desnecessariamente. (…) durante meses eu e a minha equipa
tentámos por todos os meios alertar a troika, o Ministério das Finanças e o
próprio Banco de Portugal para a calamidade que estava prestes a acontecer. E
se estes dois últimos acabaram por reconhecer o problema (até devido à grande
pressão que o próprio primeiro-ministro começou a exercer), a verdade é que a
troika nunca se mostrou realmente preocupada com o assunto, pelo menos até
muito tarde no Programa de Ajustamento.”
– “[A] ausência
de estímulos fortes ao investimento foi (e é) um dos grandes erros do Memorando
original.” “(…) E se o Governo de Sócrates não teve a competência nem a visão
para colocar este tipo de incentivos ao investimento no Memorando, a verdade é
que tanto a ortodoxia do Ministério das Finanças no XIX Governo como a
intransigência da troika impediram que esses incentivos pudessem avançar nos
dois anos seguintes. Um erro, como é óbvio.”
– “Infelizmente,
o funcionamento da Concertação Social foi algo que a troika nunca percebeu
muito bem, o que é natural, pois esta é uma instituição portuguesa com as suas
naturais especificidades.”
Sobre as rendas da energia
– “Encetámos uma
série de negociações com os produtores eléctricos para tentar chegar a acordo
em relação aos cortes das rendas excessivas, algo que seria sempre difícil, mas
que teria de ser tentado. (…) Infelizmente, o ministro das Finanças não
concordou, pois não queria que nada pudesse pôr em causa o encaixe da
privatização da EDP. (…)
– "Nos dias
que se seguiram, o secretário de Estado Henrique Gomes falou comigo e pediu a
demissão do Governo, pois entendia que não tinha condições políticas nem
anímicas para continuar".
– "[Mais tarde] Artur Trindade [o novo
secretário de Estado da energia] e a sua equipa concentraram-se em encontrar
soluções para os cortes das rendas da energia. Só que desta vez eu achei que
devia também ter mais apoios para conseguir ir para a frente com esses cortes. E
o melhor apoio que poderia ter era a troika, que também estava empenhada em
cortar as rendas excessivas do sector. Só que as coisas teriam de ser feitas
nos bastidores e sem levantar suspeitas de que estávamos a preparar uma nova
investida contra os poderosos interesses do sector. Assim, falei privadamente
com os chefes de missão (…) encetámos inúmeras reuniões e contactos com todos
os produtores de energia sob o pretexto de a troika estar a ser muito
"fundamentalista" sobre o assunto. Dissemos-lhes ainda que, se eles
não concordassem com as nossas propostas de cortes, era provável que a troika
acabasse por ser ainda mais dura com eles.”
– (…) pois quem
ousa lutar contra os interesses instalados no sector da energia pode ter a
garantia mais do que absoluta de que o resultado será certamente ataques nos
jornais e nos restantes meios de comunicação social. Basta lembrar que mais de
um quarto da publicidade existente nesses meios de comunicação é feita, directa
ou indirectamente, pelos produtores de energia. (…) o ataque contra quem ousar
lutar contra estes interesses instalados nunca acontece directamente, nem
apareceria ligado à questão da política energética. E nós sabíamos isso
perfeitamente. (…) Meu dito, meu feito, pois, menos de uma semana depois, os
jornais anunciavam uma guerra sem tréguas entre o Ministério das Finanças e o
Ministério da Economia por causa da gestão do QREN, e que Vítor Gaspar tinha
ganhado. Surgiu então todo o tipo de especulação, de maneira que nos dias
seguintes um jornal anunciou que eu me tinha demitido. Uma notícia totalmente
falsa (…)
Sobre os lóbis
– "Se há
algo que me orgulho de ter feito durante a minha governação foi a luta contra
os lóbis e os interesses instalados."
– "(…) tenho a certeza de que os lóbis
contra quem lutei também abriram garrafas de champanhe ou comemoraram quando eu
saí da Horta Seca. Espero que seja sol de pouca dura."
– “não tenho ilusões quanto a haver ainda
muito para fazer na luta contra os interesses e contra os lóbis no país.”
– “Nos próximos tempos, é absolutamente vital
que os governos mantenham e até reforcem o combate contra os lóbis e os grupos
de interesse em Portugal. É igualmente fundamental que uma estratégia
anticorrupção seja proposta e consensualizada entre os principais partidos
portugueses, de forma a acabar com os comportamentos menos transparentes, por
vezes altamente lesivos do interesse público.”
– “Uma outra
questão relacionada com as privatizações tinha a ver com as rendas da energia. (…)
Eu próprio tive alguns colegas de Governos europeus a relembrarem-me ser
importante não nos esquecermos da solidariedade que tínhamos recebido da
Europa, solidariedade que devia ser reconhecida nos processos de privatização. Confesso
que achei essas "lembranças", no mínimo, indecorosas.” (...) “O termo
do processo de privatização da EDP teve lugar no final de 2011 e a proposta
chinesa foi de tal forma superior às restantes que não suscitou grande
polémica em Conselho de Ministros. Só um ministro de opôs e mostrou preferência
pelo projecto alemão, tal como, lamentavelmente, foi revelado pela comunicação
social na manhã seguinte.”
– “(…) um dos
membros da minha equipa foi abordado por um representante dos produtores da
energia lhe disse que como sabia que estávamos muito ocupados e não tínhamos
recursos, eles próprios poderiam fazer as transposições de directivas e que
depois nos entregariam as leis para fazermos o que entendêssemos. Pelo que
parece isso já tinha acontecido no passado. Como é óbvio, nós agradecemos mas
declinámos a "gentileza"".
– “Outro dos
dossiês que fui aconselhado por muita gente a deixar de lado foi o das
contrapartidas militares. Porquê? Porque o tema das contrapartidas foi sempre
bastante controverso, envolvendo inúmeras suspeitas e acusações de corrupção e
de financiamento partidário. Por isso, para muitos, esse era um assunto era
proibido.”
– “[Houve casos
em que] tivemos de enfrentar com determinação as reivindicações sindicais. Como
já disse, a minha atitude foi sempre de grande disponibilidade para o diálogo. Porém,
também estive sempre pronto a ir para a guerra quando as demandas dos
sindicatos não eram razoáveis ou quando o país era posto sob chantagem por
esses sindicatos. Por isso, ao longo dos dois anos, tivemos ainda inúmeros
conflitos mais ou menos públicos com os sindicatos dos transportes públicos, da
TAP, dos estivadores, bem como outros sindicatos sectoriais. (…) Perante uma
ameaça de chantagem, a nossa reacção foi sempre abertura para o diálogo, mas
não ceder às ameaças. E foi assim que conseguimos debelar praticamente todas as
crises e embates que tivemos com o movimento sindical. Tivemos ainda de
enfrentar inúmeras manifestações, principalmente organizadas pelos sindicatos
mais afectos ao Partido Comunista, algumas das quais poderiam ter facilmente
ficado um pouco fora de controlo”.
– “Um dos outros grupos de interesse que foram
alvo de uma reforma alargada levada a cabo pelo Ministério da Economia e do
Emprego foram as Ordens e Câmaras Profissionais. Mais uma vez, esta alteração só
pode ocorrer por o Emprego estar junto com a Economia. As razões para esta
reforma são relativamente simples de explicar. Nos últimos anos, houve uma
proliferação desmesurada de Ordens e Câmaras Profissionais, bem como uma
regulamentação excessiva de muitas profissões.”
– “(…) como é
nosso costume, passámos do 8 ao 80 e, aos poucos e poucos, demos um poder
excessivo aos ambientalistas, principalmente no que diz respeito às suas
facções mais extremistas. Assim, ao longo dos anos, revimos legislação para ambientalistas,
mas demos uma primazia exagerada aos excessos dos mais radicais em detrimento
do desenvolvimento económico.(…) Defender o Ambiente não é sinónimo de impor
metas ambientais irrealistas ou regulamentações e burocracias excessivas. Mas
foi exactamente isso que se passou em Portugal nos últimos anos.”
Sobre Paulo Portas
– “A crise
política de 2013 ficou na memória dos nossos parceiros internacionais, e será
sempre um elemento de incerteza perturbadora na longa caminhada para
restaurarmos plenamente a nossa credibilidade.”
– “Senti que a
Pátria tinha sido traída e que o país tinha sido atirado à lama. E pensei que
tínhamos acabado de deitar o trabalho dos últimos dois anos para o lixo.”
– “Para mim era
óbvio que a exoneração de Vítor Gaspar era totalmente distinta da demissão de
Paulo Portas por uma simples razão: enquanto Gaspar (por muito poderoso que
tivesse sido) era um independente que poderia ser substituído, Portas era o
líder do segundo partido da coligação governamental. Assim, a demissão do líder
do CDS poderia significar o fim do Governo e eleições antecipadas.”
– “O ministro [do
CDS] disse que as coisas estavam muito mal entre os dois partidos, que não
havia confiança entre eles, e que o melhor mesmo era o CDS sair do Governo e
haver um acordo de incidência parlamentar até ao final da legislatura”.
– “Saí de Berlim
convencido de que era muito provável que Paulo Portas reivindicasse para si o
Ministério da Economia, não só porque essa era uma ambição sua desde o primeiro
dia, mas também porque era preciso desviar as atenções sobre o dano que tinha
sido causado ao país. Acontecesse o que acontecesse, eu tinha decidido e tinha
comunicado à minha família que não havia condições para continuar no Governo se
Paulo Portas permanecesse no Executivo. Há limites que não devem e não podem
ser ultrapassados.
– “(…) A conversa
com o primeiro-ministro [no momento de saída do Governo] foi bastante cordial e
esclarecedora (…) Só achava que o Ministério da Economia e do Emprego devia ter
ido para o PSD. Dar tudo e mais alguma coisa a quem tinha feito o que fez não
tinha sentido. Como já disse, um princípio básico quando se está sob chantagem
é que nunca se deve ceder.”
– “No
encerramento do debate do Estado da Nação de 11 de Julho mantive a minha
compostura e fiquei sentado a ouvir o discurso de alguém que fez o que fez ao
país. E que ainda teve a coragem de citar Sá Carneiro para dizer que o
interesse do país estava à frente dos interesses partidários, e que estes
estavam à frente dos interesses pessoais. Quando tinha feito exactamente o
contrário. Confesso que a decisão de assistir a esse discurso foi dos momentos
mais difíceis que tive nos dois anos de governação.
– "Eu sei
que política é política. E que, por vezes, é preciso engolir sapos para
atingirmos os nossos objectivos. Contudo, há limites. Por isso, uns dias mais
tarde, no debate da moção de censura apresentada pelos Verdes, quando a
presidente da Assembleia da República anunciou que Paulo Portas ia discursar,
eu saí do hemiciclo e só reentrei quando o discurso acabou. Na tomada de posse
dos novos ministros optei igualmente por não ir, pois recusei-me a apertar a
mão a alguém que tinha feito algo tão prejudicial para o país.”
Sobre a dívida pública
– “Não é com os
programas de ajustamento actuais que vamos lá. Podemos até ganhar algum tempo,
mas não é assim que debelaremos a situação. E se os programas de ajustamento
não resolvem definitivamente o problema da dívida, o que é que se pode fazer? Como
poderá ser resolvido todo este elevadíssimo endividamento? Sinceramente, penso
que a crise da dívida europeia só será resolvida com um reescalonamento a longo
prazo da dívida dos países europeus mais endividados”
Sobre a crise
– "(…) para
que seja possível sair da crise mais rapidamente, não tenho a menor dúvida de
que:
1) terá de haver
uma solução europeia para resolver a crise da dívida;
2) terá de haver
reescalonamento dessa mesma dívida;
3) teremos de
continuar a diminuir a despesa do Estado nos próximos anos e fazer uma
verdadeira reforma da Segurança Social;
4) teremos de
continuar a consolidação e a contenção orçamentais no futuro próximo;
5) terá de haver
uma estratégia de fomento industrial e económico relativamente consensualizada
entre os principais partidos políticos e forças sociais;
6) terá de haver
uma continuação da aposta nos sectores produtivos e no aproveitamento dos
nossos recursos naturais. E, claro, teremos de continuar a investir na
educação, na inovação, e na formação profissional virada para o contexto de
trabalho. Ao mesmo tempo, e para reanimarmos a economia e atrairmos mais
investimento, é fundamental baixarmos os impostos e cortarmos a burocracia do
Estado central e local. Se não baixarmos os impostos das empresas e das
famílias, o país nunca conseguirá atrair investimento significativo. É tão simples como
isso.
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