OPINIÃO
A queda de Marta Temido e a morte de uma mulher grávida
Carmo Afonso
31 de Agosto de
2022, 6:28
https://www.publico.pt/2022/08/31/opiniao/opiniao/queda-marta-temido-morte-mulher-gravida-2018834
Foi amplamente
aplaudida durante a pandemia e chegou a ser considerada uma potencial sucessora
de António Costa. A sua missão, numa pasta como a da Saúde, nunca seria fácil,
mas não se adivinhava que tivesse de enfrentar uma crise sanitária sem
precedentes. Justiça lhe seja feita: Marta Temido esteve à altura dessas
dificuldades.
Revelou um misto
de força e de fragilidade que a caracterizaram como humana, numa altura em que
humanidade era preciso. A sua popularidade atingiu um pico — linguagem de
pandemia — que vimos ser prontamente capitalizado pelo PS: o momento em que no
congresso do partido lhe foi oferecido o cartão de militante.
Depois da
tempestade costuma vir a bonança, mas é um clássico que quem tem habilidade
para brilhar durante a tempestade não tem talento para a bonança. É certo que,
quando falamos de SNS, a bonança tem um bocado de tormenta. E assim foi. A
pasta da saúde, no regresso à normalidade, revelou-se uma verdadeira granada.
Marta Temido foi
vista como demasiadamente esquerdista pela direita em razão do seu
posicionamento face à articulação dos privados com o SNS. Pela oposição à
esquerda, foi vista como não tendo força para impor a sua vontade às limitações
orçamentais de António Costa e sobretudo à visão ideológica de um PS liberal.
Num governo de maioria absoluta, não foi certamente a
direita e também não foi a oposição à esquerda que a fizeram cair. Morreu uma
grávida
Mas, num governo
de maioria absoluta, não foi certamente a direita e também não foi a oposição à
esquerda que a fizeram cair.
Morreu uma
grávida.
Foi uma morte que
sucedeu à ocorrência de muitas falhas do sistema. É evidente que o SNS
necessita de reformas profundas e que a situação, como está, é insustentável e
perigosa. Mas será que esta morte se deveu a uma falha do sistema e, por isso,
a uma falha atribuível a Marta Temido?
O Hospital de
Santa Maria não tinha vagas no serviço de cuidados intensivos de neonatologia e
essa foi a razão para a transferência da mulher grávida. Parecem ter sido
seguidos todos os procedimentos recomendados para uma transferência nesses
casos. Uma falta de vaga não é o mesmo que falta de pessoal. Houve um problema,
e que terminou numa tragédia, mas ele não parece resultar de uma falha do SNS
enquanto sistema.
Quais as razões
para a demissão? Algumas possibilidades podem ser equacionadas. A primeira é
que Marta Temido estava isolada e sem o suficiente apoio do Governo, atendendo
à gravidade da situação do SNS.
É certo que
Fernando Medina já tinha afirmado que o problema do SNS não era falta de
orçamento. Independentemente da apreciação que se faça dessa declaração, ela
continha uma responsabilização da própria ex-ministra da Saúde. Também neste
final ninguém terá sentido a mão do primeiro-ministro a segurar Marta Temido.
Pelo contrário, considerou que teve de aceitar a sua demissão. Está aqui
implícito um juízo de avaliação de que a decisão de Marta Temido não foi
exagerada ou desproporcional.
Também podemos
admitir a possibilidade de Marta Temido — submetida a uma pressão enorme e
perante uma morte pela qual, justa ou injustamente, seria sempre apontada —
tenha decidido meter um ponto final. É humano; aquela característica que já
tinha demonstrado ter. Além de humano, pode também ser inteligente. Apresentou
demissão na sequência de um caso, relativamente ao qual não tem “culpa”,
cumprindo aquela máxima com provas dadas: quando sucede uma desgraça, a culpa
não pode morrer solteira. A leitura da sua demissão abona a seu favor.
No momento da sua
saída, e muito à portuguesa, muitas vozes se levantam em sua defesa e em elogio
ao seu trabalho. Os políticos têm mais encanto na hora da despedida. Sucede que
fica a dúvida relativamente à competência de Marta Temido e à sua capacidade e
determinação para levar avante as políticas em que acreditava e até na bondade
dessas políticas. Não é positivo. Foi ministra demasiado tempo para que a
dúvida subsista.
Fica ainda outra
dúvida: será que esta queda é definitiva? Ou será que, como na infeliz queda
que deu à porta do ministério e a cujas imagens lamentavelmente assistimos,
também desta se levantará?
Não seria surpreendente.
Marta Temido caiu, mas não caiu em desgraça.
Esta foi uma
leitura política do caso Marta Temido. O tratamento jornalístico que deverá ser
dado a estes factos é outra coisa: é obrigatório que, nesse âmbito, se
investigue a morte da mulher grávida. Estranha-se que não exista uma maior
curiosidade relativamente à sua história; a exigência de uma investigação
jornalística. Desconhecemos, no momento em que escrevo este artigo, o nome da
mulher que morreu e quase tudo sobre o caso. Uma indiana que não falava inglês
nem português e a quem os médicos não entendiam. Como se tentou resolver este
problema? Existe um protocolo para estas situações? Houve tempo para o aplicar?
Que entre em cena
o jornalismo. Ele faz muita falta.
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