ANÁLISE MUSEUS
Museu do Tesouro Real: a colecção merecia muito melhor
É bem possível que muitos dos que esperaram tanto tempo
para poder ver as jóias e pratas de aparato da casa real portuguesa se sintam
agora desiludidos. Não é dificil sentir que o novo museu é uma oportunidade
perdida (ou quase).
Lucinda Canelas
27 de Agosto de
2022, 7:52
23 de Agosto.
Quem anda pelas ruas de Lisboa não faz ideia – nada o indica em cartazes ou
anúncios de autocarro – de que na cidade há um novo museu para visitar no
Palácio Nacional da Ajuda. Mesmo para quem desce a Calçada da Ajuda não será
fácil encontrar-lhe a entrada. Na fachada, a única tela que serve de indicação
é visível apenas para quem sobe a rua, deixando Belém para trás.
Já no palácio, se
chegar pelo lado oposto, aquele que dá acesso à residência real e à biblioteca,
o visitante tem de ir muito atento para reparar na seta singela que informa que
é preciso atravessar o pátio para ver as jóias da coroa. Mas assumamos que não
desiste e acaba por encontrar o Museu do Tesouro Real. Lá dentro, passado o
detector de metais, apanha-se o elevador para o terceiro piso e acede-se à
exposição, instalada numa caixa forte com 40 metros de comprimento por dez
metros de largura e outros dez de altura, dourada por fora. No interior, as
paredes são pretas e a luz é escassa, tudo para que jóias, moedas, espadins e têxteis
bordados a ouro e prata brilhem sem dificuldade quando iluminados (nem sempre é
o caso).
O corredor que dá
acesso à primeira de três salas da exposição, distribuída por outros tantos
andares, é tão estreito que não permite ao visitante deter-se na cronologia da
parede sem incomodar quem passa. A sensação de falta de espaço é, aliás, uma
constante nesta primeira sala. Dentro e fora das vitrines. Circular é difícil e
nalguns expositores é quase impossível distinguir um alfinete de gravata do
outro, uma moeda da seguinte, dada a quantidade de peças expostas, sem qualquer
hierarquia que dirija o olhar para o que é mais importante.
"Circular é difícil e nalguns expositores é quase
impossível distinguir um alfinete de gravata do outro, uma moeda da seguinte,
dada a quantidade de peças expostas, sem qualquer hierarquia que dirija o olhar
para o que é mais importante"
Para tornar ainda
mais desafiante a tarefa de perceber o que é dado a ver, as legendas dos
objectos têm uma letra minúscula, a branco, sobre uma superfície preta que tudo
reflecte, e estão colocadas à altura dos joelhos de um adulto. E como se não
bastasse ao visitante o desconforto de ver três andares de exposição
permanentemente curvado, se é que quer ler as tabelas das peças para aprender alguma
coisa, as ditas legendas têm números que não encontram qualquer correspondência
nas vitrines.
Este jogo das
correspondências requer tempo e paciência, mas é fazível quando não há
visitantes sentados sobre as legendas (sim, a zona onde se encontram é também
um banco) e a tipologia das peças nos é familiar; quando não o é, torna-se
praticamente impossível. Todos sabemos o que é um relógio, uma pulseira ou uma
espada, mas o que fazer quando, diante de um núcleo de insígnias régias, não
conseguimos distinguir uma “placa” de um “hábito”?
É de supor que a
localização das legendas tenha sido escolhida para tornar mais fácil a leitura
aos visitantes que se deslocam em cadeira de rodas, o que é salutar, mas não
haveria uma solução que permitisse, ao mesmo tempo, proteger a coluna dos
restantes?
Nesta primeira
sala, em que se mostram sobretudo jóias, a iluminação é tão fraca que torna a
circulação pouco segura. Por vezes falta luz também nas vitrines, que parecem
não ter vidros anti-reflexo, atendendo ao modo como servem de espelho a
legendas e visitantes: não é mau, se quisermos fingir ter um diadema na cabeça,
mas perturba se preferirmos ver os objectos. Nas jóias de luto, por exemplo, há
uma tiara parcialmente às escuras que parece inacabada.
Nas salas do
segundo e terceiro andares, o espaço é menos acanhado e há vitrines, como a das
salvas e gomis e as da Baixela Germain, que causam grande impacto, com os ecrãs
interactivos a permitir identificar as peças, desde que o visitante consiga ler
os números nas legendas e no esquema da disposição.
O que o visitante
não conseguirá certamente ler, porque não está lá, é uma referência ao contexto
em que muitas daquelas peças foram criadas: não se fala das fontes de riqueza
da família real, nem sequer do facto de muito do ouro e das pedras preciosas de
que são feitas as jóias expostas terem sido extraídos com recurso a mão-de-obra
escrava. Como é isto possível num museu inaugurado em 2022?
Poderão a
Direcção-Geral do Património Cultural (DGPC), a que pertencem o Palácio
Nacional da Ajuda e o Museu do Tesouro Real, e a Associação de Turismo de
Lisboa (ATL), que gere este último, dizer que essa reflexão é feita no
catálogo, mas isso é coisa que ainda não podemos comprovar, visto que o volume,
em que trabalharam durante anos os comissários da exposição (duas conservadoras
da colecção e consultores externos) e a restante equipa da casa, ainda não foi
publicado. Porquê?
O Palácio
Nacional da Ajuda esteve quase 230 anos à espera de ver concluída a ala onde
hoje está o Museu do Tesouro Real. A sua equipa e muitos outros colaboradores
externos trabalharam sete anos no estudo e no restauro deste acervo exposto em
permanência, com mais de 700 peças. O museu, cuja inauguração foi adiada
sucessivas vezes, abriu a 1 de Junho e custou mais do dobro do previsto: dos 15
milhões de euros anunciados inicialmente (Setembro de 2016), passou-se depois a
21 milhões de euros (Março de 2018) e, mais tarde, a 29,7 milhões (Setembro de
2019). Contas fechadas, e de acordo com o portal do Governo, acabou por custar
31,4 milhões de euros, dos quais 18 milhões foram investidos pela Câmara
Municipal de Lisboa e outros nove milhões foram investimento da ATL, com
dinheiro proveniente da cobrança da taxa turística na cidade. Os restantes 4,4
milhões de euros saíram dos cofres da Cultura, utilizando verbas da
indemnização recebida pelo roubo de seis jóias da coroa portuguesa, em 2002,
numa exposição em Haia, nos Países Baixos (presentes na exposição em
fotografia).
Durante todo este
período, não houve tempo para testar o dispositivo de exposição do acervo nem
para imprimir o catálogo que anos de investigação merecem?
O Governo e a
autarquia decidiram atribuir à ATL a gestão do museu (à equipa do palácio cabe
a parte científica), alegando que, na actual conjuntura, não haveria condições
para avançar de outro modo. Não faltou quem questionasse, desde a primeira
hora, este modelo, assumindo a posição cautelosa de “esperar para ver”.
Pois bem, o que
temos hoje é um museu aberto que tem o mérito de mostrar uma colecção
extraordinária que esteve durante décadas fechada num cofre e que nunca antes
tinha sido exibida ao público de forma permanente, nem sequer sistemática. Mas
fica-se por aí.
A articulação com
a residência real, ali bem perto, é quase nula. Não há sequer, nas plataformas
da DGPC, um bilhete conjunto que permita ver o museu (que teve 32.427 visitas
entre 1 de Julho e 24 de Agosto) e o palácio (com 27.486 visitantes) a preço
vantajoso. Quem, chegado à Ajuda, quiser comprar um bilhete para os dois só
pode fazê-lo no museu e pagará 13 euros: isoladamente, os bilhetes custam dez
euros para o museu e cinco para o palácio.
"Não é
segredo que a DGPC e a ATL esperam que este museu venha a ser uma importante
fonte de receita, objectivo legítimo dada a qualidade do acervo e o montante
nele investido, mas assim sendo não há como não perguntar: o que é que
aconteceu na Ajuda para que o museu inaugurado tenha ainda tanto por
limar?"
O preço do
bilhete para o Museu do Tesouro Real é, aliás, praticamente o dobro do dos
outros museus nacionais da DGPC (só o dos Coches custa oito euros, andando os
restantes entre os seis e os 4,50 euros). Não é segredo que a DGPC e a ATL
esperam que este museu venha a ser uma importante fonte de receita, objectivo
legítimo dada a qualidade do acervo e o montante nele investido, mas assim
sendo não há como não perguntar: o que é que aconteceu na Ajuda para que o
museu inaugurado tenha ainda tanto por limar?
O PÚBLICO sabe
que muitas das recomendações da equipa científica – técnicos do palácio e
consultores externos – foram para a gaveta. Quem tomou, então, as decisões
neste museu? A quem podemos agora dirigir as nossas críticas? E que lugar cabe
à DGPC e ao Ministério da Cultura num museu gerido pela ATL?
Num museu, ao
contrário do que acontece numa joalharia ou num antiquário, as peças não têm
apenas de cativar o olhar, de seduzir, têm de ser capazes de comunicar, de
contar histórias, de estabelecer relações umas com as outras e com quem as vê.
A colecção agora exposta merecia melhor, muito melhor. Merecia, desde logo, um
museu que a tivesse deixado falar, e não este que parece contentar-se com fazê-la
brilhar no escuro.
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