segunda-feira, 29 de agosto de 2022

Museu do Tesouro Real: a colecção merecia muito melhor

 



ANÁLISE MUSEUS

Museu do Tesouro Real: a colecção merecia muito melhor

 

É bem possível que muitos dos que esperaram tanto tempo para poder ver as jóias e pratas de aparato da casa real portuguesa se sintam agora desiludidos. Não é dificil sentir que o novo museu é uma oportunidade perdida (ou quase).

 

Lucinda Canelas

27 de Agosto de 2022, 7:52

https://www.publico.pt/2022/08/27/culturaipsilon/analise/museu-tesouro-real-coleccao-merecia-melhor-2018417?fbclid=IwAR2X8JQR1T8VtxfNK531WdSOzji2qigEyL4jJFskY9bxuIV6zhYJ_7FEAj4

 

23 de Agosto. Quem anda pelas ruas de Lisboa não faz ideia – nada o indica em cartazes ou anúncios de autocarro – de que na cidade há um novo museu para visitar no Palácio Nacional da Ajuda. Mesmo para quem desce a Calçada da Ajuda não será fácil encontrar-lhe a entrada. Na fachada, a única tela que serve de indicação é visível apenas para quem sobe a rua, deixando Belém para trás.

 

Já no palácio, se chegar pelo lado oposto, aquele que dá acesso à residência real e à biblioteca, o visitante tem de ir muito atento para reparar na seta singela que informa que é preciso atravessar o pátio para ver as jóias da coroa. Mas assumamos que não desiste e acaba por encontrar o Museu do Tesouro Real. Lá dentro, passado o detector de metais, apanha-se o elevador para o terceiro piso e acede-se à exposição, instalada numa caixa forte com 40 metros de comprimento por dez metros de largura e outros dez de altura, dourada por fora. No interior, as paredes são pretas e a luz é escassa, tudo para que jóias, moedas, espadins e têxteis bordados a ouro e prata brilhem sem dificuldade quando iluminados (nem sempre é o caso).

 

O corredor que dá acesso à primeira de três salas da exposição, distribuída por outros tantos andares, é tão estreito que não permite ao visitante deter-se na cronologia da parede sem incomodar quem passa. A sensação de falta de espaço é, aliás, uma constante nesta primeira sala. Dentro e fora das vitrines. Circular é difícil e nalguns expositores é quase impossível distinguir um alfinete de gravata do outro, uma moeda da seguinte, dada a quantidade de peças expostas, sem qualquer hierarquia que dirija o olhar para o que é mais importante.

 

"Circular é difícil e nalguns expositores é quase impossível distinguir um alfinete de gravata do outro, uma moeda da seguinte, dada a quantidade de peças expostas, sem qualquer hierarquia que dirija o olhar para o que é mais importante"

 

Para tornar ainda mais desafiante a tarefa de perceber o que é dado a ver, as legendas dos objectos têm uma letra minúscula, a branco, sobre uma superfície preta que tudo reflecte, e estão colocadas à altura dos joelhos de um adulto. E como se não bastasse ao visitante o desconforto de ver três andares de exposição permanentemente curvado, se é que quer ler as tabelas das peças para aprender alguma coisa, as ditas legendas têm números que não encontram qualquer correspondência nas vitrines.

 

Este jogo das correspondências requer tempo e paciência, mas é fazível quando não há visitantes sentados sobre as legendas (sim, a zona onde se encontram é também um banco) e a tipologia das peças nos é familiar; quando não o é, torna-se praticamente impossível. Todos sabemos o que é um relógio, uma pulseira ou uma espada, mas o que fazer quando, diante de um núcleo de insígnias régias, não conseguimos distinguir uma “placa” de um “hábito”?

 

É de supor que a localização das legendas tenha sido escolhida para tornar mais fácil a leitura aos visitantes que se deslocam em cadeira de rodas, o que é salutar, mas não haveria uma solução que permitisse, ao mesmo tempo, proteger a coluna dos restantes?

 

Nesta primeira sala, em que se mostram sobretudo jóias, a iluminação é tão fraca que torna a circulação pouco segura. Por vezes falta luz também nas vitrines, que parecem não ter vidros anti-reflexo, atendendo ao modo como servem de espelho a legendas e visitantes: não é mau, se quisermos fingir ter um diadema na cabeça, mas perturba se preferirmos ver os objectos. Nas jóias de luto, por exemplo, há uma tiara parcialmente às escuras que parece inacabada.

 

Nas salas do segundo e terceiro andares, o espaço é menos acanhado e há vitrines, como a das salvas e gomis e as da Baixela Germain, que causam grande impacto, com os ecrãs interactivos a permitir identificar as peças, desde que o visitante consiga ler os números nas legendas e no esquema da disposição.

 

O que o visitante não conseguirá certamente ler, porque não está lá, é uma referência ao contexto em que muitas daquelas peças foram criadas: não se fala das fontes de riqueza da família real, nem sequer do facto de muito do ouro e das pedras preciosas de que são feitas as jóias expostas terem sido extraídos com recurso a mão-de-obra escrava. Como é isto possível num museu inaugurado em 2022?

 

Poderão a Direcção-Geral do Património Cultural (DGPC), a que pertencem o Palácio Nacional da Ajuda e o Museu do Tesouro Real, e a Associação de Turismo de Lisboa (ATL), que gere este último, dizer que essa reflexão é feita no catálogo, mas isso é coisa que ainda não podemos comprovar, visto que o volume, em que trabalharam durante anos os comissários da exposição (duas conservadoras da colecção e consultores externos) e a restante equipa da casa, ainda não foi publicado. Porquê?

 

O Palácio Nacional da Ajuda esteve quase 230 anos à espera de ver concluída a ala onde hoje está o Museu do Tesouro Real. A sua equipa e muitos outros colaboradores externos trabalharam sete anos no estudo e no restauro deste acervo exposto em permanência, com mais de 700 peças. O museu, cuja inauguração foi adiada sucessivas vezes, abriu a 1 de Junho e custou mais do dobro do previsto: dos 15 milhões de euros anunciados inicialmente (Setembro de 2016), passou-se depois a 21 milhões de euros (Março de 2018) e, mais tarde, a 29,7 milhões (Setembro de 2019). Contas fechadas, e de acordo com o portal do Governo, acabou por custar 31,4 milhões de euros, dos quais 18 milhões foram investidos pela Câmara Municipal de Lisboa e outros nove milhões foram investimento da ATL, com dinheiro proveniente da cobrança da taxa turística na cidade. Os restantes 4,4 milhões de euros saíram dos cofres da Cultura, utilizando verbas da indemnização recebida pelo roubo de seis jóias da coroa portuguesa, em 2002, numa exposição em Haia, nos Países Baixos (presentes na exposição em fotografia).

 

Durante todo este período, não houve tempo para testar o dispositivo de exposição do acervo nem para imprimir o catálogo que anos de investigação merecem?

 

O Governo e a autarquia decidiram atribuir à ATL a gestão do museu (à equipa do palácio cabe a parte científica), alegando que, na actual conjuntura, não haveria condições para avançar de outro modo. Não faltou quem questionasse, desde a primeira hora, este modelo, assumindo a posição cautelosa de “esperar para ver”.

 

Pois bem, o que temos hoje é um museu aberto que tem o mérito de mostrar uma colecção extraordinária que esteve durante décadas fechada num cofre e que nunca antes tinha sido exibida ao público de forma permanente, nem sequer sistemática. Mas fica-se por aí.

 

A articulação com a residência real, ali bem perto, é quase nula. Não há sequer, nas plataformas da DGPC, um bilhete conjunto que permita ver o museu (que teve 32.427 visitas entre 1 de Julho e 24 de Agosto) e o palácio (com 27.486 visitantes) a preço vantajoso. Quem, chegado à Ajuda, quiser comprar um bilhete para os dois só pode fazê-lo no museu e pagará 13 euros: isoladamente, os bilhetes custam dez euros para o museu e cinco para o palácio.

 

"Não é segredo que a DGPC e a ATL esperam que este museu venha a ser uma importante fonte de receita, objectivo legítimo dada a qualidade do acervo e o montante nele investido, mas assim sendo não há como não perguntar: o que é que aconteceu na Ajuda para que o museu inaugurado tenha ainda tanto por limar?"

 

O preço do bilhete para o Museu do Tesouro Real é, aliás, praticamente o dobro do dos outros museus nacionais da DGPC (só o dos Coches custa oito euros, andando os restantes entre os seis e os 4,50 euros). Não é segredo que a DGPC e a ATL esperam que este museu venha a ser uma importante fonte de receita, objectivo legítimo dada a qualidade do acervo e o montante nele investido, mas assim sendo não há como não perguntar: o que é que aconteceu na Ajuda para que o museu inaugurado tenha ainda tanto por limar?

 

O PÚBLICO sabe que muitas das recomendações da equipa científica – técnicos do palácio e consultores externos – foram para a gaveta. Quem tomou, então, as decisões neste museu? A quem podemos agora dirigir as nossas críticas? E que lugar cabe à DGPC e ao Ministério da Cultura num museu gerido pela ATL?

 

Num museu, ao contrário do que acontece numa joalharia ou num antiquário, as peças não têm apenas de cativar o olhar, de seduzir, têm de ser capazes de comunicar, de contar histórias, de estabelecer relações umas com as outras e com quem as vê. A colecção agora exposta merecia melhor, muito melhor. Merecia, desde logo, um museu que a tivesse deixado falar, e não este que parece contentar-se com fazê-la brilhar no escuro.

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