OPINIÃO
O que podemos esperar de quem dirige um museu?
É preciso identificarmos, formarmos, apoiarmos e
colocarmos nas posições certas colegas que possam ser líderes no nosso sector.
Não pessoas que vão “simplesmente dirigir” os nossos museus e outras
organizações culturais, mas pessoas que tenham uma visão de futuro, que tenham
o dom e a capacidade de inspirar outras e cujo pensamento e prática possam
mostrar caminhos.
Maria Vlachou
29 de Agosto de
2022, 6:59
https://www.publico.pt/2022/08/29/culturaipsilon/opiniao/podemos-esperar-dirige-museu-2018461
No mês de Julho,
uma empresa chamada Hellostaff estava a recrutar assistentes de sala para o
Museu Nacional de Arte Antiga (MNAA). Especificava no anúncio (que já não se
encontra online) que as pessoas interessadas deveriam ter conhecimentos e/ou
licenciatura em História de Arte ou similar e conhecimentos básicos de inglês.
Informava-se que pagariam honorários no valor de 5,35€/hora, com recibos
verdes.
Partilhei esse
anúncio no Facebook, profundamente incomodada com a continuada falta de
respeito pelas jovens pessoas que investem na sua formação profissional e que
desejam construir uma carreira na área dos museus – e da cultura, em geral; e,
ainda, pelo facto de ser ignorado – num anúncio feito em nome de um museu
nacional, tutelado pelo Ministério da Cultura – o muito aguardado e
recém-implementado Estatuto dos Profissionais da Área da Cultura. Vários
colegas expressaram a sua indignação pela forma como o próprio sector reforça a
precariedade, pela exploração praticada, e partilharam as suas experiências concretas.
Ao mesmo tempo, uma pessoa, comentou: “No entanto, que poder tem um director de
um museu, se ele também é funcionário?”.
Dias depois, o
arqueólogo Luís Raposo (que foi director do Museu Nacional de Arqueologia)
escreveu um artigo de opinião neste jornal intitulado “Assistentes de sala:
nova desvergonha nos museus nacionais”, desenhando o percurso desastroso
traçado nos últimos anos na área dos museus, levando à “redução do leque
profissional [à qual] sucedeu o afunilamento desastroso das competências
profissionais”. No início de Agosto, saíram mais dois artigos de opinião no
PÚBLICO, assinados pelo director do MNAA, Joaquim Caetano: “Vigilantes nos
museus: um problema sério e nada novo” e, ainda, “Duas ou três notas sobre um
declínio: os museus nacionais”. Estes mereceram uma reacção da parte do
ministro da Cultura, que se manifestou “sensível” às críticas, mas que não
disse nada de novo. Tivemos ainda a oportunidade de conhecer mais alguns
pormenores sobre as condições de trabalho nos museus nacionais, através de uma
reportagem de Lucinda Canelas, que se centrou na falta de pessoal qualificado
nas equipas.
Os dois artigos
de Joaquim Caetano foram claríssimos e necessários, um lembrete para todos nós.
Foram denunciadas situações que não se desconhecem de todo. Comentei,
entretanto, no Facebook que, quando leio artigos ou entrevistas do director do
MNAA, fico sempre sem perceber qual é a responsabilidade que ele vê em si
próprio em relação a esta realidade. Denuncia-se e bem. E depois? O que podemos
esperar de quem dirige museus nacionais e outros? Uma colega respondeu à minha
crítica dizendo que “o que fica de amargo de boca é que, na realidade, as
direcções de museus podem muito pouco em relação ao subfinanciamento e à
escassez de recursos humanos que lhes dão a gerir; sobra desistir ou falar em
praça pública.”
Várias pessoas,
portanto, partilham da opinião de que quem dirige um museu é um simples
funcionário, que pode muito pouco. Ao mesmo tempo, o foco é no subfinanciamento
e na falta de pessoal, como se estes fossem factores novos, inesperados, e não
uma realidade mais do que conhecida no momento em que todas as pessoas que
actualmente dirigem os nossos museus assumiram os seus postos. O que é que se
propuseram fazer face a esta realidade? Como pensaram geri-la? Que prioridades
e que linhas vermelhas traçaram? Não serão estas perguntas naturais,
expectáveis?
A verdade é que
esperamos pouco dos nossos colegas que ocupam estas posições. O Ministério da
Cultura deseja também que sejam “pouco”. Pensei nisto quando li recentemente o
seguinte no romance de Marina Perezagua Seis Formas de Morrer no Texas: uma
pessoa vê a fotografia de um leão num jardim zoológico. Tinham-lhe dito que
este animal é orgulhoso, majestoso, que tem um olhar provocador. Viu um ser com
um olhar apagado, submisso, triste. Concluiu que é a selva que oferece ao
animal chamado “rei da selva” a sua grandeza; o animal no jardim zoológico pode
ser um rei pela sua beleza, mas é um rei submisso. O sector, todos nós,
tornou-se num jardim zoológico para os nossos colegas, quando deveria ser a
selva.
Um primeiro ponto
que queria trazer para esta discussão é a existência no Reino Unido do Conselho
de Directores dos Museus Nacionais (https://www.nationalmuseums.org.uk/). Esta
entidade representa as direcções dos museus nacionais e de grandes museus
regionais – e ainda da British Library, da National Library of Scotland, dos
Royal Botanic Gardens de Kew, do British Film Institute e dos National
Archives. É uma organização independente, não-governamental, apesar de os seus
membros serem financiados pelo governo. Tem uma voz própria, colectiva e
proactiva, e é um fórum de discussão e de debate muito necessário e saudável.
Conforme se lê no seu website, a visão desta organização é que “todas as
pessoas relevantes na criação de políticas e formulação de opinião entendam
todo o valor dos museus e das suas colecções e garantam que estes sejam
adequadamente financiados e apoiados de forma inteligente, para permitir a
optimização do seu contributo à sociedade e a maximização do seu valor
público”. Penso que uma organização deste género faz muita falta em Portugal,
tal como faz falta ouvirmos com maior frequência – em fóruns profissionais, mas
não só – quem dirige os nossos museus, organizações culturais que pertencem a
todas as pessoas e que para elas existem.
Há um segundo
ponto, no entanto, que considero mais urgente: é preciso identificarmos,
formarmos, apoiarmos e colocarmos nas posições certas pessoas, colegas, que
possam ser líderes no nosso sector. Não quero dizer com isto pessoas que vão
“simplesmente dirigir” os nossos museus e outras organizações culturais, mas
pessoas que tenham uma visão de futuro, que tenham o dom e a capacidade de
inspirar outras e cujo pensamento e prática possam mostrar caminhos, vencendo o
que Joaquim Caetano chama de “declínio” e eu de “marasmo”. É com esperança e
expectativa que aguardo, por isso, a conferência deste ano da Acesso Cultura,
que se realizará no dia 18 de Outubro na Fundação Gulbenkian em Lisboa e cujo tema
é “Liderança na Cultura: o que é preciso?”.
No ano passado,
tive a oportunidade de participar no Simpósio Internacional do ICOM
(International Council of Museums), que se realizou em Praga. É uma espécie de
pré-conferência no ano que antecede a Conferência Geral, que se realizou nestes
dias também em Praga e que nos trouxe uma “nova definição” de museu. Em 2021, o
tema da minha comunicação foi a liderança nos museus. Nessa ocasião, partilhei
com os colegas presentes a minha lista de desejos: desejo ver nos museus
lideranças que possam assumir riscos, prontas para abraçar o desconforto,
curiosas para aprender com os outros e ir além das suas certezas, respeitadoras
dos outros (equipas e não só), empenhadas não em produzir mais mas em fazer
melhor, que possam apoiar os outros para serem o melhor que puderem e
encontrarem felicidade e significado no que fazem.
Muitos entre nós
desejamos que os nossos colegas que dirigem museus – e outros, noutras posições
dentro das hierarquias – possam ser o melhor que puderem e dar um contributo
efectivo para que os museus estejam realmente “ao serviço da sociedade” (irei
manter com teimosia esta referência da anterior definição de museu). Mas
desejamos também que quem dirige organizações culturais tenha a ambição e as
competências para ser mais que um simples funcionário. Desejamos a selva
e não o jardim zoológico.
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