MEGAFONE
Habitação: direito fundamental?
Mas, afinal, quem é que tem meio milhão de euros para
poder dar-se ao luxo de viver em Lisboa, Oeiras e Cascais? Quem tem, pelo
menos, 60 mil euros para poder pagar os obrigatórios 10% (e se forem 10%) mais
o malfadado IMT?
André Costa
Lapeira
33 anos. Natural
do Porto. A residir em Lisboa. Advogado. Licenciado em Direito pela Universidade
de Coimbra. Ex-Diplomata. Comprometido com a Cidadania.
29 de Junho de
2022, 7:33
https://www.publico.pt/2022/06/29/p3/cronica/habitacao-direito-fundamental-2011149
Comecemos por
alguns números. Se procurarmos comprar um apartamento T3, com pelo menos 100
metros quadrados e lugar de garagem, até 300 mil euros, estas são as casas que
vamos encontrar: zero em Lisboa; zero em Oeiras; uma ou duas em Cascais. O
mesmo cenário repete-se, talvez com mais algumas (poucas) casas, no resto da
Grande Lisboa. Só quando começamos a ir para Mafra, Sesimbra (a cerca 40
quilómetros de Lisboa) é que começamos a encontrar mais algumas alternativas.
Conclusão: ou somos ricos e podemos viver em Lisboa, Oeiras, Cascais, ou somos
simplesmente classe média (para as estatísticas portuguesas, até classe média
alta) e somos obrigados a viver longe. E mesmo a essa distância, continuamos a
ter que pagar uma fortuna (e arcar com gasolina, portagens) por algo que
deveria ser absolutamente normal: um lugar digno para viver.
Como é que, num
país em que o ordenado médio é 1.361 euros (sendo, na Grande Lisboa, cerca de
1500 euros) podemos viver tal cenário? Mas, afinal, quem é que tem meio milhão
de euros para poder dar-se ao luxo de viver em Lisboa, Oeiras e Cascais? Quem
tem, pelo menos, 60 mil euros para poder pagar os obrigatórios 10% (e se forem
10%) mais o malfadado IMT? Das duas, uma: ou as estatísticas estão erradas e
somos um país muito mais rico do que os números revelam; ou vivemos num país em
que pura e simplesmente é negado aos cidadãos um dos seus direitos
fundamentais: o direito à habitação.
A verdade é que
as casas continuam a vender-se. A verdade é que não se vêem grandes
sobressaltos cívicos a propósito deste tema. Alguém se recorda de uma enorme
manifestação nas ruas sobre isto? Alguém se recorda de este assunto ter sido
tema central nas últimas legislativas?
Não há verdadeira
democracia sem o respeito dos direitos fundamentais. Não há verdadeira
democracia sem democracia social, económica e cultural. Entre vistos gold e
alojamento local desgovernados, entre falta de investimento e de verdadeiras
políticas públicas, o mercado da habitação em Portugal ilustra a nossa perene
incapacidade em planear, em prever, em acautelar, em pensar. O importante era
que entrasse dinheiro a rodos e que nos inebriássemos todos na miragem de um
país e cidades em crescimento e rejuvenescimento. Que esse crescimento se
fizesse à custa de quem ali vivia e quem ali podia viver, pouco importa.
Resolve-se depois. E, com isso, toda uma geração — a minha — se vê expurgada de
um dos seus direitos fundamentais. Mas que importa. O mundo é o que é. Sonhar
outra realidade, lutar por ela, ousar “virar a mesa”... isso parece não ser
particularmente premente. Aqui continuamos… formigas no carreiro.
É urgente fazer
alguma coisa. Não podemos continuar a penhorar a vida dos jovens deste país
como se de nada se tratasse. Este governo parece já ter desistido da geração
dos que têm agora 30 e tal anos. Apesar de encher a boca quotidianamente com a
“geração mais qualificada de sempre”. A verdade é que à geração que já viveu
sempre em democracia (filha de Abril, portanto) o que há para oferecer é uma
triste imagem do que Abril ousava: salários baixos e espremidos por uma carga
fiscal absolutamente estúpida; impossibilidade de ter casa própria ou tê-la com
o resto da vida penhorada; saúde pública em falência (principalmente se
vivermos na Grande Lisboa).
Uma grande fatia do meu ordenado vai-se em IRS (e eu acredito na redistribuição do rendimento) e em Segurança Social (e eu acredito no pacto intergeracional), mas que recebo por isso? Não tenho médico de família, não consigo comprar/arrendar casa a custo justo, tenho que pagar para passar a ponte para a margem Sul. É muito difícil viver em Portugal sem ser rico ou sem nos conformarmos. Mas qualquer desses caminhos é a traição do sonho democrático: o perpetuar das desigualdades e da fatalidade.
Talvez por tudo
isto, não seja estranho que as pessoas se voltem cada vez mais para as
propostas liberais ou para soluções simplistas. Porque, de facto, é preciso
libertar o país e é preciso mudar. Mas não creio que seja libertá-lo com base
no credo neoliberal ou no populismo. É preciso, sim, libertar Portugal mas com
base no combate às desigualdades: regule-se o mercado do arrendamento
(tabelando equilibradamente as rendas); regule-se o mercado imobiliário
(acabe-se com a especulação, reveja-se a carga tributária,...); reduza-se a
carga fiscal sobre a classe média. Deixem que quem quer viver honestamente do
seu trabalho possa viver e sonhar. Não nos obriguem ou a emigrar ou a desistir,
caindo no conformismo que é a miséria nacional. Temos que ser mais livres,
também economicamente, para haver verdadeira democracia, para haver um Portugal
melhor!
Para muitos jovens, comprar casa é “impossível”.
“Acabamos a adiar a nossa vida”
Há quem ande com a “casa às costas”, visite mais de uma
dúzia de moradas por semana e quem já tenha desistido da ideia. Os jovens estão
a enfrentar mais dificuldades em comprar casa — e isto trará novos riscos
sociais. “Não é possível para a nossa geração construir um futuro nestas
condições.”
Andreia Friaças
10 de Junho de
2022, 20:04
Uma “verdadeira
montanha de Sísifo”. É assim que Nélson Vassalo, de 35 anos, começa por
descrever o longo e espinhoso caminho de quem tenta comprar casa em Portugal. O
cenário é mais do que conhecido: as casas estão mais caras (o preço aumentou
50% nos últimos cinco anos), os salários não crescem ao mesmo ritmo e há cada
vez mais obstáculos no acesso aos créditos.
Para Nélson, a
habitação sempre foi uma batalha. Já mudou de casa 35 vezes — grande parte das
mudanças foi durante a infância, quando a instabilidade familiar o obrigava,
juntamente com a mãe, a saltar de casa em casa. Também foram várias as moradas
que teve depois de 2009, quando, tal como tantos outros jovens, viu na
emigração uma forma de contornar as dificuldades em arranjar emprego. Mas a
“pior fase”, assegura, tem sido os últimos cinco anos, quando decidiu regressar
a Lisboa. “Eu e a minha namorada andamos sempre com a casa às costas. Os
contratos são curtos e, quando acabam, os senhorios querem duplicar a renda.
Somos empurrados na cidade para fugir aos sítios que vão ganhando interesse
especulativo”, explica Nélson, que trabalha como designer e web developer. “No
último contrato de arrendamento, só pensávamos: por quanto tempo vamos
continuar a fugir às vontades dos senhorios?”
Exaustos com esta
situação, há meses que o casal está empenhado em conseguir comprar uma casa em
Lisboa. O primeiro passo é amealhar dinheiro para a entrada da casa, que
corresponde a 10% do valor total. Como os T2 que encontram estão à volta dos
250 mil euros, teriam de ter entre a 30 a 40 mil euros de entrada — valor que é
flutuante, pois acrescem as despesas do processo de compra, que podem chegar
aos cinco mil euros. “Poupar este valor é impossível com as condições em que se
vive”, observa Nélson.
Nelson Vassalo
“No último contrato de arrendamento, só pensávamos: por
quanto tempo vamos continuar a fugir das vontades dos senhorios?”
Da mesma maneira
que Sísifo, personagem da mitologia grega, estava condenado a empurrar uma
pedra até ao cimo de um monte, sabendo que ela iria sempre rolar de novo para o
sítio inicial, também Nélson sente que comprar uma casa é uma “equação
impossível”. Sempre que “levanta a pedra” e se aproxima deste objectivo, surge
um novo obstáculo que faz tudo cair por terra. “Depois da crise de 2008 pensei
que as coisas fossem melhorar. Mas veio a pandemia, a precarização do mercado
de trabalho, o aumento das rendas, a inflação dos preços, as dificuldades em
arranjar crédito”, exemplifica Nélson. “Não é possível para a nossa geração
construir um futuro nestas condições.”
O direito à
habitação
Depois de 1974,
quando o direito à habitação integrou a Constituição Portuguesa, lia-se, na
resolução de Conselho de Ministros de 24 de Fevereiro de 1976, que se deveria
defender não só o direito à habitação, mas também garantir “o acesso à compra
de habitação própria por todas as famílias, independentemente do nível de
rendimento”.
Estes apoios
permitiram que, ao longo dos anos, a maior parte das famílias tivesse habitação
própria — em 2011, cerca de 73% das famílias tinham conseguido comprar a sua
própria casa. Mas, actualmente, o cenário é diferente. O estudo de Novembro de
2019 da Fundação Calouste Gulbenkian, intitulado Habitação Própria em Portugal,
mostra que entre os jovens abaixo dos 30 anos que são titulares de alojamento,
apenas 24% são donos de habitação própria — nos outros casos são arrendatários
ou têm habitações cedidas. Mas este número, referente a 2017, apenas considera
os jovens que já saíram da casa dos pais.
“Na prática, no
universo dos jovens, a percentagem será muito mais baixa, uma vez que existe
uma percentagem de jovens bastante elevada a viver em casa dos pais”, explica
Elvira Pereira, investigadora e co-autora do estudo. De facto, em 2020, segundo
a mesma investigação, cerca de 69,8% dos jovens entre os 18 e 34 anos
permanecia na casa dos pais — em 2004, por exemplo, a percentagem era de 55%.
Francisco Peres
já não faz parte destas estatísticas. Saiu de casa dos pais, no Porto, quando
atingiu a maioridade e desde então, passados 15 anos, continua a viver em casas
arrendadas. Agora, com 33 anos, partilha um pequeno T1 com a namorada,
Cristina, em Lisboa. “Cabe um gato e um sofá. Não há espaço para mais”,
graceja. Em Setembro, casaram-se e amealharam um bom pé-de-meia que está
guardado para a entrada de uma casa. “Na passagem de ano pensei: vai ser a
grande resolução deste ano”, recorda Francisco, que trabalha em marketing.
Há meses que
Francisco e Cristina estão à procura de casa e há semanas em que visitam “mais
de uma dúzia”. Já avançaram com três propostas de compra, mas todas foram
recusadas. As razões são várias: da primeira vez, fizeram uma proposta
demasiado abaixo do que era pedido pelo proprietário e, na segunda tentativa,
foram apanhados pela teia do próprio mercado. “Um agente imobiliário tinha
angariado a casa e nós estávamos interessados. Começou a criar uma guerra de
licitações entre nós e outro casal. Disse-nos que o proprietário tinha aceitado
a nossa proposta e depois, do nada, talvez para não partilhar comissão com a
nossa agente imobiliária, decidiu à última hora vender ao outro casal”, diz
Francisco.
Já na terceira
tentativa conseguiram que a proposta fosse aceite pelo proprietário, mas, para
o banco conceder um crédito à habitação, é exigido que uma avaliadora
independente faça uma avaliação da casa — neste caso, só este passo custou 250
euros. “A avaliadora disse que a casa valia menos 100 mil euros do que o valor
pedido. As casas estão muito inflacionadas, principalmente as que têm varanda,
jardins, ou qualquer espaço exterior, que ficou sobrevalorizado durante a
pandemia”, explica. Por causa disso, o banco (que empresta cerca de 80% do
valor avaliado) oferecia menos 100 mil euros do que o casal precisava para
comprar a casa. “É impossível comprar nestas condições”, diz Francisco. “Nós
recebemos bem, temos uma situação privilegiada e mesmo assim não conseguimos.”
De Lisboa para o
Alvor
Feitas as contas,
Portugal é o terceiro país da União Europeia com mais jovens a morar na casa
dos pais, diz o estudo da Gulbenkian — apenas é ultrapassado por Itália e
Grécia. A instabilidade laboral, o peso crescente das despesas com a habitação,
a quebra de riqueza das famílias mais jovens e as dificuldades no acesso ao
crédito à habitação são alguns aspectos que justificam o acesso cada vez mais
tardio à compra de casa.
No caso de
Cláudia Campos, de 28 anos, sair de casa dos pais e ter o seu próprio espaço
sempre foi um sonho de adolescência. “Sempre quis ser independente muito cedo e
isso para mim significava ter a minha casa, o meu espaço. É um sonho que sempre
tive enquanto mulher independente”, conta a jovem. Desde os 19 anos que
trabalha, mas só em 2021 conseguiu ter o primeiro contrato efectivo, num lar de
idosos. Com maior estabilidade laboral, decidiu procurar casa sozinha em Alvor,
no Algarve, onde vive há vários anos. E no seu caso esta procura torna-se cada
vez mais urgente. “Estou grávida e o bebé nasce em Outubro. Gostava de estar
numa situação estável nessa altura.”
DUARTE DRAGO
“É muito difícil. Se eu soubesse que o processo era
longo, era difícil, mas que ia dar certo… mas é tudo incerto.”
Nos últimos
meses, Cláudia consulta os sites de compra e venda de casa todos os dias. Já
falou com vários bancos, mas a maior parte recusa sempre o empréstimo. “Por
estar a procurar sozinha, não ter capitais próprios e ter um salário baixo”,
justifica Cláudia. Nesta longa procura chegou a receber luz verde de um banco,
que estaria disponível para lhe emprestar 100 mil euros. “Encontrar uma casa
aqui com esse valor é impossível. Dava para uma casa em ruínas, e ainda teria
de pedir mais um empréstimo para fazer obras.”
De facto, os
últimos dados do Instituto Nacional de Estatística (INE), divulgados este ano,
dão conta de um aumento generalizado dos preços das casas por todo o país, mas
o maior aumento regista-se no Alentejo central, onde os valores cresceram mais
de 17%, e no Algarve, com um aumento de 13,9%. Ao mesmo tempo, as famílias
portuguesas não conseguem concorrer com os compradores estrangeiros, que, em
alguns casos, são capazes de pagar um valor quase 75% mais elevado do que os
cidadãos nacionais pelas casas em Portugal.
Com este aumento
de preços, Cláudia já ponderou sair de Alvor e tentar outras regiões do
Algarve, como Lagoa. “O que sinto é que quanto mais tempo deixo passar, mais
dificuldade vou ter. Os preços estão sempre a aumentar e quanto mais tarde
comprar, menos anos terei para pagar ao banco e a prestação vai ser mais alta”,
admite. “É muito difícil. Se eu soubesse que o processo era longo, era difícil,
mas que ia dar certo… mas é tudo incerto.”
“Acabamos a adiar
a nossa vida”
Apesar de a
compra de casa ocorrer cada vez mais tarde, o Banco de Portugal recomendou aos
bancos novos limites sobre o prazo dos créditos à habitação. Desde Abril, só
quem tem menos de 30 anos pode beneficiar do prazo de empréstimo máximo até 40
anos. Para quem tem entre 30 e 35 anos, o limite da duração do empréstimo passa
a ser 37 anos e para quem tem mais de 35 anos o prazo reduz-se para 35 anos de crédito.
O objectivo é
garantir que até aos 70 anos a dívida está totalmente paga — actualmente a
média das idades para o fim do pagamento situa-se nos 75 anos. Em termos
práticos, a redução do prazo dos empréstimos faz aumentar o valor das
prestações pagas ao banco, aumentando a taxa de esforço.
Quando Rui
Travassos ouviu falar destas novas recomendações, soube que “era mesmo altura
de desistir”. “Eu tenho 35 anos e a minha esposa tem 38. Se até agora foi
difícil conseguir uma casa, a partir de agora seria quase impossível”, diz Rui.
Desde 2010,
quando começou a trabalhar como programador, que Rui queria poupar dinheiro
para comprar uma casa. Os anos foram passando, as casas em Aveiro, onde viveu
vários anos, foram ficando cada vez mais caras e este objectivo cada vez mais
longe. “Acabamos a adiar a nossa vida, adiar ter filhos, porque pensávamos que
não seria a altura certa até comprarmos casa”, diz Rui.
A certa altura,
sentiram que tinham de fazer uma escolha: se tivessem filhos, mais dificilmente
juntariam dinheiro para a casa; e, para juntar dinheiro para a casa, teriam de
continuar a adiar a decisão de ter filhos. “Não devíamos ter de fazer este tipo
de escolhas”, diz Rui, que agora é pai de três crianças: Francisco, Maria Luísa
e Maria Teresa. “Acabámos por desistir da casa, mas esta espera fez-nos adiar
ter filhos em três, quatro anos. Esse atraso pesa-nos, na nossa idade e na
nossa dinâmica”, afirma.
Agora, a
expectativa é continuarem a viver em casas arrendadas. “Já nos habituámos à
ideia”, diz Rui. A missão passou a ser outra: encontrar uma casa adequada à
família. “Isso também é mesmo muito difícil. Somos cinco e vivemos num T2.
Mudar para uma casa maior é um salto muito grande a nível de renda.”
Casa arrendada: é
mesmo uma escolha?
Como explica
Romana Xerez, professora e co-autora do estudo Habitação Própria em Portugal, a
maior parte dos jovens continua a querer comprar casa. Em 2019, um inquérito
feito em Portugal com jovens entre os 18 e 34 anos concluiu que apenas 12%
escolhiam viver em casas arrendadas. “O que os estudos têm mostrado é que estes
jovens são empurrados para o arrendamento não pela sua vontade, mas pelas
actuais condições económicas, sociais e até políticas”, conclui Romana Xerez,
do Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas (ISCSP).
Para Marco
Oliveira, de 30 anos, comprar casa nunca foi um sonho. Lembra-se das histórias
que os pais repetiam sobre a moradia que conseguiram construir em Vale de
Maceiras, no Alto Alentejo, com pouco dinheiro e com a ajuda de amigos. “Mas
esse sonho já não é para mim”, diz Marco, que se mudou em 2009 para Lisboa para
estudar Ciências da Cultura na Faculdade de Letras.
Desde então, tem
saltado entre casas arrendadas e já partilhou morada com a irmã, colegas da
faculdade e com a namorada. Agora, vive sozinho e, com o aumento dos preços em
Lisboa, mudou-se para o concelho do Seixal — onde, nos últimos cinco anos, as
rendas também subiram cerca de 12%, uma tendência comum aos vários concelhos da
periferia de Lisboa.
Com a “loucura”
do mercado imobiliário, Marco gostava de ter mais estabilidade e comprar o seu
próprio espaço, mas sempre que mergulha nos sites de compra e venda de casas
tem um “choque de realidade”. “Sem ajuda dos pais é completamente impossível”,
diz Marco. “Mas não sofro com isso. Não fico desconfortável, se continuar em
situação de arrendamento”, considera. “Tenho um trabalho estável, consigo pagar
a renda e ter a minha vida. A casa nunca foi um objectivo para me sentir
realizado. Não é um objectivo como era para a geração dos meus pais.”
Marco Oliveira DANIEL RODRIGUES
“Tenho um trabalho estável, consigo pagar a renda e ter a
minha vida. A casa nunca foi um objectivo para me sentir realizado. Não é um
objectivo como era para a geração dos meus pais.”
Novos riscos
sociais
Além de Marco,
também Rui Travassos sente que esta geração está a enfrentar mais dificuldades,
quando reflecte naquela que foi a situação dos seus pais: “A expectativa que
tínhamos, dada pela geração dos nossos pais, de conseguir uma casa ou mesmo um
carro facilmente acabou. Esse modelo de vida acabou.”
Como explica a
investigadora Romana Xerez, estas mudanças actuais no mercado de compra de casa
irão “conduzir a novos riscos sociais”. “Os jovens enfrentam actualmente uma
situação muito diferente das gerações anteriores que irá ter consequências no
futuro, com um agravamento das desigualdades”, esclarece. “Em particular, a
aquisição de casa própria contribui para a poupança e para a acumulação de
riqueza ao longo da vida, e assim maior segurança económica dos indivíduos e
menor desigualdade na distribuição da riqueza”, corrobora a investigadora
Elvira Pereira, do ISCSP.
Por outro lado, a
habitação própria tem sido fundamental para analisar a situação das
desigualdades sociais. Como refere o estudo Habitação Própria em Portugal, a
família é uma das principais fontes de apoio financeiro para que os jovens
consigam comprar casa, podendo até existir a transferência “da riqueza
habitacional dentro das relações familiares”.
“Mas nem toda a
gente pode contar com o apoio dos pais”, admite Nélson Vassalo. “Eu sou a
primeira geração licenciada da minha família e ganho mais do que a minha mãe”,
exemplifica. No caso do jovem, natural do Barreiro, a mãe também vive numa casa
arrendada e, no último ano, a renda aumentou 40% a meio do contrato. Daqui a
dois anos, quando se reformar, deixará de ter dinheiro suficiente para a pagar.
Dada a actual
crise no sector imobiliário, a habitação tornou-se uma área prioritária para o
Estado. “O Estado social existe e foi criado para mitigar os riscos sociais.
Esta nova intervenção do Estado social deverá ser adequada aos novos riscos
sociais”, diz a investigadora Romana Xerez. “Em Portugal, os jovens não têm
acesso à habitação pública, não existem programas adequados. É necessário um
novo contrato social entre gerações, que dure mais do que uma mera legislatura
ou governo.”
Também Nélson
considera que os apoios à habitação são “insuficientes para tanta procura”.
“Sinto que somos invisíveis na sociedade. Há um direito de habitação que não
está a chegar à nossa geração”, acrescenta. No seu caso, se continuar a
trabalhar horas extras e a reduzir os gastos, conseguirá juntar dinheiro para a
entrada daqui a dois anos. Mas, com a instabilidade que tem moldado os últimos
tempos, “não é possível ter certeza de nada”. “Se os preços continuarem a
aumentar, se existir outra crise, outras alterações ao crédito, volto a não conseguir
juntar dinheiro”, diz Nélson. “Voltamos a ser a pedra de Sísifo.”
ANIVERSÁRIO P3
2021
Como é ser jovem em 2021? Melhor do que há dez anos, mas
continuamos todos “a tentar viver”
Já não há troika nem cortes salariais e a geração “à
rasca” foi arranjando forma de se virar. Mas, dez anos depois, o emprego, as
oportunidades e, sobretudo, a habitação continuam a ser um fantasma na vida de
quem é jovem. “Andamos todos a tentar viver”, suspiram. No dia do 10.º
aniversário do P3, quisemos saber como é ser jovem em 2021. Spoiler alert:
continua a ser crítico. E “entusiasmante”, vá.
Mariana Durães
22 de Setembro de
2021, 7:20
Há dez anos, uma
geração baptizada com o nome de “enrascada” fazia o que podia para se
desenrascar. Era ano de troika, de cortes salariais, de precariedade, de
carreiras estancadas, e mais inevitável do que a austeridade era a urgência de
sair à rua e reclamar uma vida. Digna.
Assim fizeram
centenas de milhares quando, a 12 de Março de 2011, se manifestaram e apelaram
à participação dos “desempregados, ‘quinhentos-euristas’ e outros mal
remunerados, escravos disfarçados, subcontratados, contratados a prazo, falsos
trabalhadores independentes, trabalhadores intermináveis, estagiários,
bolseiros, trabalhadores-estudantes, estudantes, mães, pais e filhos de
Portugal”. Uma lista interminável com diferentes formas de dizer precariedade.
Já outros faziam
— ou se preparavam para fazer — a sua própria luta. Individual, solitária, fora
do país, à procura de outro que lhes reconhecesse competências e pagasse por
elas. Acediam (que alternativa tinham?) ao que Pedro Passos Coelho, que tomou
posse como primeiro-ministro poucos meses após a manifestação, aconselhava:
“Mais exigência, menos pieguice, procurem emprego noutro sítio.”
Foi neste caldo
de instabilidade que nasceu o P3. Dez anos volvidos, já não há troika, a
“Geração à Rasca” desenrascou-se como pôde, a taxa de desemprego baixou, os
salários cortados à função pública foram repostos, aconteceu uma pandemia, a
“Geração à Rasca” sofreu outro tombo, a que se lhe segue não sabe o que vai
fazer à vida. E como se não bastassem todas as dificuldades associadas à
juventude, ser jovem no último ano e meio de pandemia e confinamentos foi, no
mínimo, “estranho”.
Quem o diz é Gil
Ubaldo, depois de despejar em avalanche o que o preocupa. Fala do “estado da
cultura”, da “falta de oportunidades dos artistas que não podem ter uma
carreira e vivem a recibos verdes”, do “desinvestimento no SNS e no ensino”, da
“especulação imobiliária” e da “falta de residências estudantis”. Aos 21 anos e
acabado de dar início ao mestrado em Filosofia Política, quais as perspectivas
de vida? “Não tenho”, atira. “Uma ideia que costuma circular entre pessoas da
minha idade é: ‘Já sei que vou ser precário, portanto mais vale estudar o que
gosto.’”
Em vésperas de
aniversário, o P3 quis saber como é ser jovem em 2021. Fez um apelo, procurou
caras e testemunhos que dessem resposta à questão lançada. A precariedade e a
falta de oportunidades são temas recorrentes. “Custa-me ver gerações inteiras
de jovens portugueses que, pela precariedade/falta de oportunidades reais num
país com políticas obsoletas e pouco atractivas, vêem, no estrangeiro, o
veículo para a construção do que um dia poderá ser uma vida mais confortável e
com um futuro promissor pela frente”, escreve Gonçalo Nobre Higino, de 30 anos,
gestor de contratos a viver na Haia, nos Países Baixos.
Em 2019, a taxa
de desemprego jovem recuou para os 17,6%, o valor mais baixo desde 2008. Mas a
pandemia alterou a tendência: os jovens, precários e menos qualificados, foram
os que mais sofreram. Segundo dados do Instituto Nacional de Estatística, nos
segmentos entre os 16 e os 44 anos, o nível de emprego é inferior ao período
pré-crise, ao contrário do que aconteceu no segmento dos 45 aos 89 anos. No
segundo trimestre de 2019 havia em Portugal 191 mil jovens que não estavam nem
empregados nem a estudar. No segundo trimestre de 2021, o número fixava-se nos 210
mil.
São os grandes
prejudicados quando as crises apertam. Por isso, Gil tenta acostumar-se à ideia
de “arranjar um trabalho qualquer” que lhe permita “viver” até encontrar algo
na área, que realmente queira fazer. “E, até lá, pagar as rendas altas”, esse
monstro que impede, ou pelo menos atrasa, “o início de uma vida independente” —
que Catarina Oliveira já teve e quer recuperar num futuro próximo.
“No espectro de
dez anos, durante cinco fui uma pessoa sem deficiência e agora sou uma pessoa
com deficiência”, começa por referir a nutricionista estagiária de 32 anos.
Depois de uma inflamação na medula, voltou para casa dos pais e as “rendas
estupidamente caras por casas completamente precárias” têm-na mantido por lá,
apesar da vontade de sair e de até ganhar mais do que há dez anos, quando
efectivamente era possível viver sozinha.
Em 2011, não era
uma criança; lembra-se da crise, “do desemprego, de as pessoas não saberem para
onde se virar”. Agora, acredita, mantém-se “o risco de as gerações mais novas
continuarem a viver na precariedade” — e, em muitas áreas, “já estamos dentro
de um círculo de alguma precariedade”, onde o trabalho é desvalorizado. “Isto
tem de parar. O nosso trabalho tem valor, as empresas e as entidades têm de dar
mais valor ao trabalhador. Sem ele, nada funciona”, atira.
Preocupa-a
também, apesar da existência de quotas, “a falta de oportunidade que as pessoas
com deficiência enfrentam no mercado de trabalho”, seja a dificuldade em
entrar, a discriminação quando já lá estão, a impossibilidade de progredir na
carreira ou a limitação a tarefas menores. E se tem visto “bastante evolução”
nos últimos anos, também defende que há muito caminho por fazer e que é preciso
que “as pessoas com deficiência estejam em todo o lado, não apenas em acções
pontuais”. E é pela inclusão e acessibilidade que se bate, diariamente, no
Instagram, onde concilia o trabalho de nutricionista e de activista.
Pagar para
trabalhar?
A preocupação
imediata de Isabel Vanderlei é acabar a licenciatura em Cultura e Comunicação.
Devia ter terminado este ano, mas a covid-19 e o trabalho a tempo inteiro num
call center trocaram-lhe as voltas. Apesar de gostar do que faz, tem-se sentido
frustrada devido à “estagnação”. “Gostava de ter uma progressão na carreira. E
não estou satisfeita com o meu salário...”, desabafa.
Quando falou com
o P3, em Fevereiro último, contou como teve de procurar um trabalho que a
ajudasse a pagar o T1 “apertado” e as propinas, depois de os pais terem entrado
em regime de layoff. Actualmente, está à procura de uma nova casa, mas não está
fácil. O salário não chega para pagar estudos, renda e “ter um estilo de vida
minimamente confortável”. “Não tenho possibilidade de ter sequer um T0 em
Lisboa”, indigna-se.
Antes da
pandemia, os rendimentos dos pais eram “suficientemente altos” para lhe
garantirem um quarto e educação superior. Agora, a opção é trabalhar em Lisboa
e pagar o quarto, ou regressar a Lagos, para junto dos pais. Mudanças que
fizeram a sua saúde mental piorar, aguçaram a ansiedade e a depressão e
degradaram as suas relações interpessoais.
A retaguarda
familiar é determinante para uma geração que não ganha o suficiente para pagar
rendas “astronómicas”. Isabel Martins da Silva, de 25 anos, relembra a situação
de uma prima que conseguiu emprego na área que procurava em Lisboa: “Se não
tivesse as possibilidades que tem, era completamente impossível mudar-se e
tinha de se limitar às ofertas que existiam cá no Norte”, diz. Faz lembrar o
que os Deolinda cantavam em 2011 e em jeito de manifesto: “Que mundo tão parvo,
onde para ser escravo é preciso estudar.” Agora também é preciso pagar?
Isabel considera
que a perspectiva de hoje é melhor “do que há dez anos”, mas, ainda assim, vê
os colegas do curso de Direito, os que seguem “a carreira tradicional da
advocacia”, a ter “uns primeiros dez anos em que são praticamente explorados”.
No seu caso, associou o activismo ao empreendedorismo, co-fundou a Meeru, uma
associação que presta apoio a migrantes em Portugal, e consegue, enquanto
directora de comunidade, auferir um salário digno, como pretende que todos os
que trabalham na associação consigam. Mas, assume, se quisesse sair da casa dos
pais, a sua vida teria de mudar “radicalmente”.
O que a inquieta
é, sobretudo, “a falta de coesão comunitária”. “Acredito que tudo o que é
mobilidade humana, migrações, acolhimento e integração tem de estar no topo da
agenda. O que aconteceu no Afeganistão lembrou-nos que temos de estar
preparados para acolher e que não pode ser apenas em situações de emergência,
mas com uma perspectiva de futuro”, afiança.
Com o aumento do
número de migrantes — segundo dados do SEF, em 2011 foram concedidos 27
estatutos de refugiados, em 2020 foram 77, uma quebra em relação aos anos
anteriores, quando foram concedidos 183 (2019), 286 (2018) e 119 (2017) —,
Isabel acredita que tem crescido também, no geral e principalmente na sua faixa
etária, a disponibilidade para acolher pessoas. “Tenho muito mais discussões
sobre o tema com pessoas da geração dos meus pais do que da minha”, diz.
Muitos direitos
conquistados e outros tantos por reivindicar
O dia-a-dia de
Gil é influenciado pela “falta de apoio médico especializado a pessoas ‘trans’
em Portugal”. Em 2011, Cavaco Silva promulgou — depois de ter vetado — o
diploma que simplificava o processo de mudança de sexo e de nome próprio no
registo civil. Pequenas vitórias numa luta hercúlea que ainda tem muito que
andar: “A grande parte da obra ainda não está feita. A exclusão que as pessoas
‘trans’ sentem no acesso ao trabalho, a violência a que somos expostos na rua;
a impossibilidade de recorrer às forças de segurança, pois são elas muitas
vezes as entidades que exercem a violência; médicos e profissionais de saúde
que não estão treinados para auxiliar as nossas transições e saúde.” Por isso,
celebrar a conquista de 2011 é importante, mas “representa o mínimo” do tanto
que é preciso para “o direito consagrado à não-discriminação”.
Mas não só com
inquietações vive um jovem em 2021. Nos últimos dez anos, conquistaram-se
direitos e reafirmaram-se conquistas. “E muitas delas vêm da força dos jovens”,
lembra Gil. “Devemos congratular-nos de projectos culturais verdadeiramente
inovadores, de sermos uma geração extremamente activa em termos políticos, de
termos conseguido trazer as reivindicações climáticas para a frente de todas as
agendas políticas”, continua. De, à semelhança do que aconteceu há dez anos, os
jovens terem enchido as ruas por uma causa.
“Temos uma voz”,
sublinha Catarina. “O mundo digital permite que ponhamos um vídeo na Internet
e, se dissermos algo com consciência, podemos atingir o mundo inteiro.” E é
neste mundo que são fornecidas “inúmeras possibilidades de evoluir, de nos
desconstruirmos, de nos educarmos” e de amplificar vozes.
Daqui a dez anos,
quando o P3 celebrar 20, o que espera Gil? “Que já tenhamos uma economia
descarbonizada, que as pessoas tenham direito à carreira, que haja residências
estudantis para toda a gente, que não haja propina, que tenhamos conseguido
implementar medidas de não-abandono do interior, que tenhamos uma linha
ferroviária que não seja igual à do século XX.” Que as causas de hoje —
climática, feminista, anti-racista, pelos refugiados, pela inclusão — não
estagnem. Afinal, como escreve Andreia Galvão no mural do P3, ser jovem é,
acima de tudo, ser “inconformado”.
Mas, por muito
“entusiasmante” que seja, “não deixa de ser difícil por todos os obstáculos” já
desabafados nesta ode (pouco laudativa, convenhamos) à juventude. O resumo de
Gil: “Ser jovem em 2021 é uma luta pela nossa vida futura, pelo direito a
termos uma vida que nos concretiza. Acho que é ‘bué’ isso que as pessoas andam
a tentar fazer. Andamos todos a tentar viver.” O de Andreia: “É ter vivido e
esperar viver um conjunto de crises durante a nossa juventude e saber que é
possível que o mundo seja diferente, fazer para que seja. É acreditar na
mudança.” Seja 2021 ou em 2081 — quando este site já não for tão jovem assim.
Pelo menos (e, prometemos, unicamente) na certidão de nascimento.
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