CIDADE
O lazer tomou conta das ruas e os moradores perderam o
descanso
Na pandemia foram estabelecidas várias medidas para
tornar as ruas mais humanas, com mais espaço para esplanadas e bicicletas, e
menos para carros. No entanto, na cidade desconfinada e com o turismo em
crescimento, houve um choque com os moradores e as opiniões sobre estas
decisões dividem-se.
Júlia M. Tavares
(Texto), Inês Silva (Texto) e Ana Pinto(Vídeo)
31 de Julho de
2022, 7:37
Já é meia-noite
numa quinta-feira qualquer do mês de Julho. Entre a Travessa do Carvalho e a
Rua de São Paulo, são várias as pessoas que se aglomeram na rua com copos na
mão. Ouve-se as batidas da música que os bares projectam enquanto, à porta do
estabelecimento, os clientes conversam animadamente. Alguns estão de pé, outros
sentam-se nas esplanadas que na pandemia se estenderam pelos passeios e pelos
lugares de estacionamento.
Para mudar, a
cidade vai precisar de mais tempo e de mais diálogo
Para Rita (nome
fictício), que mora na freguesia da Misericórdia desde que nasceu, as
esplanadas vieram agravar um problema que já existe há anos. “[Aqui] existem
demasiados espaços comerciais dedicados à noite em prejuízo dos moradores'’,
diz. Mas os problemas não são só de agora, e foi por essa razão que os
moradores fundaram em 2012 a associação Aqui Mora Gente, após a abertura da Rua
Cor de Rosa no ano anterior.
Mas agora “tudo
está a piorar”. A animação nocturna começou a estender-se pelo centro histórico
e já chegou a Arroios. “A noite veio ter connosco”, lamenta Filipe Dias,
coordenador do grupo de ruído da Associação Vizinhos de Arroios. “[Os
comerciantes] descobriram uma nova forma de fazer negócio e acenam com as
esplanadas na luta contra o carro”. Mas e os moradores, como ficam?
No início da
pandemia, no âmbito do programa municipal Lisboa Protege, foram autorizadas 367
esplanadas temporárias na capital, ocupando 453 lugares de estacionamento.
Arroios foi a freguesia que mais esplanadas viu autorizadas. Atrás delas veio o
ruído. A polémica invadiu as redes sociais, entre as queixas de alguns e a
revolta dos comerciantes que se insurgiram contra a remoção das esplanadas em
Arroios e na Green Street (Rua da Silva). O argumento era de peso: em vez do
carro, o espaço é das pessoas. Vingou e as esplanadas vão permanecer até ao
final do ano, estando a Câmara de Lisboa a analisar a continuação destes
espaços.
Várias esplanadas foram colocadas em Lisboa, durante a
pandemia. Roubaram lugares de estacionamento e causaram problemas de ruído
onde antes não existiam. O que para alguns é motivo de desassossego, para
outros representa a vida na cidade.
Tanto Rita como
Filipe Dias e outros moradores questionam o porquê de apenas se dar voz aos
comerciantes e queixam-se de os residentes nunca serem ouvidos e incluídos nas
decisões das medidas que afectam a sua qualidade de vida. “É importante realçar
a questão das pessoas frágeis e sem voz. O foco está no lado dos que querem ter
esplanadas, mas essa é uma parte da história”, lamenta Rita.
As duas
associações lutam por três objectivos: resolver o problema da falta de
fiscalização, reduzir o horário de funcionamento das esplanadas e voltar a ter
o direito ao descanso. E fazem-no em reuniões de câmara, com queixas a todas as
autoridades competentes e petições. Mas os frutos dessa luta estão longe de ser
colhidos, o que leva alguns a desistir a meio do combate. A Junta da
Misericórdia já pediu à Câmara Municipal de Lisboa (CML) que tome medidas de
limitação do consumo de álcool na via pública e quer impor o encerramento das
esplanadas às 23h. Os proprietários já se manifestaram e criaram uma petição
para que tal não aconteça.
Rita diz que a
freguesia da Misericórdia perdeu 3552 eleitores em nove anos. A culpa é da lei
das rendas mas também do barulho da noite, acredita. Em Arroios, dos membros
que pertenciam à associação, em apenas um ano já duas pessoas desistiram e
foram viver para outros locais mais tranquilos.
Todos se queixam
de “um silêncio total”, inclusive por parte da CML. O que, para os moradores,
demonstra a “falta de vontade do executivo em responder e resolver” os
problemas. Em Arroios, ainda aguardam pela resposta do vereador Ângelo Pereira,
que visitou o local há cerca de três meses, ouviu as suas queixas, assistiu
pessoalmente ao barulho potenciado pelas esplanadas e viu os vídeos da confusão
que se prolonga até tarde. Mas entretanto, a Polícia Municipal destacou dois
agentes para a Rua Maria Andrade para fiscalizarem o ruído e os horários de
funcionamento dos bares.
Rita faz questão
de sublinhar que as denúncias feitas pelos moradores têm um preço. Já foi
perseguida até casa por um comerciante de um estabelecimento, após ter pedido
para baixarem o volume da música. Os idosos que se queixam são ameaçados à
porta de casa e também Filipe conta que a associação já foi ameaçada com um
processo judicial caso continuassem a publicar vídeos nas redes sociais. É por
esta razão que insistem na fiscalização dos estabelecimentos e culpam o
Licenciamento Zero pelo facto de estarem a “nascer bares como cogumelos”,
apesar de muitos não cumprirem os regulamentos. “Uma democracia não vive da
denúncia, vive da fiscalização e da acção do estado”, conclui Rita.
Diversão versus
descanso
As consequências
da noite manifestam-se pelas ruas. De manhã, tropeça-se nas garrafas de
cerveja, há lixo espalhado pelo chão e vidro partido. “Perguntamo-nos como é
que se pode viver numa cidade como esta”, em que surgem cada vez mais bares que
não têm as condições de segurança e de insonorização adequadas para o devido
funcionamento. “Há muitos estabelecimentos que não trazem uma mais-valia para a
zona e a cultura da cidade, limitam-se a vender álcool para a rua, de portas
abertas, colunas para fora, ruído e sujidade no espaço público, acréscimo de custo
nas limpezas e destruição de pilaretes e calçadas”, dizem os moradores.
As esplanadas
colocadas durante a pandemia potenciam o barulho que reverbera pelas ruas
estreitas e ouve-se dentro dos prédios antigos, com más condições. A solução
não é fechar as janelas, explicam os vários moradores. Dentro da casa de Rita,
mesmo com as janelas fechadas - que custaram quinze mil euros -, os sons de
baixa frequência propagam-se pela casa. Por esta razão, a moradora insiste,
“são as pessoas mais frágeis que mais sofrem com isto”. “Nesta zona há muita
gente numa situação económica precária”, reforça Filipe. Existem reformados,
pessoas que alugam casas ou quartos, com receio de serem despejadas. Vera
Alves, que vive na freguesia, diz que no prédio em que vive, metade são
nepaleses. Têm crianças pequenas e também são perturbados pelo barulho. Mas,
por serem imigrantes, têm receio das represálias caso chamem a polícia.
Já se reuniram
com os donos de dois estabelecimento, que entraram em contacto com os moradores
após terem sido publicados vídeos devido ao ruído. Filipe diz que os gerentes
afirmaram que o barulho não era oriundo dos seus estabelecimentos, mas após
confrontados com as publicações, responderam que os seus clientes “são pessoas
calmas, mais velhas e que não fazem barulho”. Foi então criado um grupo no
WhatsApp para haver diálogo, mas esta solução não teve sucesso visto que
continuavam a negar que o barulho viesse das suas esplanadas, explicam.
Miguel Leal, um
dos sócios-gerentes da Maria Food Hub — um dos que se reuniram com os moradores
— quis abrir “um espaço para todos a qualquer hora do dia”, num bairro criativo
e diverso, com diferentes nacionalidades. Explica que as pessoas têm
preferência pela esplanada apesar da grande dimensão do estabelecimento, havendo
até quem se recuse a entrar. Questionado acerca do ruído, admite que de facto
há mais barulho nas ruas por causa do desconfinamento. Explica que entraram em
contacto com os moradores porque querem trabalhar para o bairro e considera que
fechar às 23h é uma hora razoável. Mas uma moradora contesta. Apesar dos
comerciantes não terem de se responsabilizar pelos clientes que provocam o
barulho, diz que o horário até às 23h é o responsável pela algazarra nas ruas.
“A diversão não se pode sobrepor ao nosso descanso”, diz.
No Porto, os
problemas são os mesmos. Há muito que os moradores da zona da movida lutam para
que as suas causas sejam ouvidas, sem grande sucesso. Tal como alguns
comerciantes em Lisboa, Rui Pereira, proprietário do Café Santiago da Praça,
foi autorizado, em Maio de 2020, a colocar uma esplanada. A questão do ruído
para este proprietário é “pertinente” e deve ser medida. Porém, argumenta que
“no centro da cidade não é de facto um problema, porque a habitação permanente
tem vindo a diminuir. Existe muita habitação, mas são alojamentos locais e são
pessoas que de certa maneira já vêm preparadas para a animação, portanto, aqui
não existem essas queixas”.
Do outro lado da
rua, no Quiosque Alegria, trabalha Gabriela Carvalho há quatro anos. Embora
reconheça que o aumento das esplanadas foi positivo para o comércio, a
funcionária contrapõe que são vários os moradores da zona que se queixam
“muito” do “barulho” e da “sujidade”. “É muito barulho, especialmente durante a
noite, toda a gente se queixa mesmo” e a perda de lugares de estacionamento
“tem incomodado muito”. O mesmo confirma uma moradora em Arroios que, após 45
minutos à procura de lugar para estacionar perto de casa, começou a chorar.
O ruído da noite
tem reflexos na saúde dos residentes. Uma moradora da Misericórdia, que não
quis ser identificada, explica que todas as noites acorda com o coração
acelerado, devido ao barulho. Outra moradora confessa que sente a sua saúde
mental deteriorada por não conseguir descansar. Rita revela que sofreu de
convulsões nocturnas por causa do cansaço.
Fechada ao
trânsito mas ruidosa
“As pessoas que
vivem em ruas que foram encerradas ao trânsito têm neste momento condições
muito difíceis por causa dos horários dos estabelecimentos”, adianta Rita.
Durante o mês de Maio, fizeram-se ouvir as vozes do protesto nas redes sociais
contra o reaparecimento do trânsito na chamada Green Street, a Rua da Silva. O
nome surgiu por causa da iniciativa de um dos moradores que quando regressou de
Itália encheu a sua varanda de plantas, sendo seguido pelos vizinhos. E, de um
projecto verde comunitário, nasceu nesta rua um pequeno jardim.
Durante a
pandemia, foram dadas licenças aos comerciantes para que colocassem esplanadas
na rua, que passou a estar fechada ao trânsito. Mas, em Junho, segundo Tatiana
Araújo, funcionária do Restaurante A Obra, sem aviso prévio, veio a ordem para
remover as mesas e cadeiras. Face à polémica, a Junta de Freguesia da
Misericórdia conseguiu uma licença para quatro mesas, e as esplanadas voltaram
à rua.
Mas os moradores
contestam o ruído que sobe pela estreita via. Uma moradora que vive numa rua
paralela considera que o problema do barulho passa por quem frequenta os bares
e a falta de fiscalização. “Os comerciantes são cuidadosos: lavam, valorizam,
cuidam da rua e tratam das plantas. O problema são os comportamentos dos
turistas”.
Ciclovias também
dão polémica
As medidas
tomadas durante a pandemia estão agora a chocar com uma cidade já totalmente
desconfinada e todos pedem ajustes. O apoio às esplanadas não foi o único que
gerou polémica, as “ciclovias pop-up” também não são consensuais.
A mais famosa de
todas, a da Avenida Almirante Reis, anima debates intensos. Para o presidente
da Associação Vizinhos de Arroios, Luís Castro, é um erro colocar uma ciclovia
numa artéria da cidade que já está “muito próxima do seu limite de capacidade
de tráfego”. A redução da via para dar lugar às bicicletas, diz, conduziu a um
aumento da poluição sonora, atmosférica e térmica e prejudicou os passageiros
da Carris. Defende que, para se reduzir os automóveis na cidade, deveria de se
apostar nos transportes públicos, passes de transporte grátis para todas as
pessoas e criar à entrada da cidade mais parques de estacionamento para as
pessoas que vêm de outros concelhos.
Já Inês Pascoal,
presidente da direcção da Mubi — Associação pela Mobilidade Urbana em
Bicicleta, admite que a ciclovia da Avenida Almirante Reis tem alguns problemas
de segurança, “como todas as ciclovias do concelho de Lisboa e a nível
nacional”. Existem problemas nas intersecções, que se resolvem fazendo
“alterações urbanísticas”. Defende que Lisboa tem de acompanhar a tendência de
outras cidades europeias e explica que a ciclovia na Avenida Almirante Reis não
teria problemas caso fosse implementada uma Zona de Emissões Reduzidas,
reduzindo o tráfego que entra na Baixa.
No Porto, a
polémica é reduzida porque também é reduzido o número de ciclovias. Muito está
por fazer e a pandemia não foi aproveitada para dar um salto neste capítulo, ao
contrário de Lisboa. Duarte Brandão, coordenador da Mubi Porto, diz que falta
criar uma interligação das vias para bicicletas na cidade. “Em 2020, foi
apresentado o Plano de Recuperação do Espaço Público, onde foram apresentados
35 quilómetros de ciclovias até ao final do ano. Mas desses, só cerca de 14 é
que foram feitos, que foi a ciclovia que liga os pólos [universitários] e a rua
da Constituição”, afirma.
Embora o debate
sobre ciclovias, mais acesso em Lisboa, mova paixões, o movimento parece
imparável embora apresente dores de crescimento, tratáveis com alguma mudança
de mentalidades, melhor planeamento das vias, mais diálogo com os moradores.
Mas há outros problemas que persistem, idênticos nas duas cidades. “A
velocidade e a quantidade de carros” são parte dos maiores desafios, a par dos
“carros mal estacionados”, veículos “estacionados nas ciclovias”,
automobilistas que “não respeitam as distâncias de segurança” e “pessoas que
não estão familiarizadas com as alterações mais recentes do código da estrada”,
nomeadamente ser permitido “circular a par” e “a posição do ciclista” não ser
“na berma, ou à beira do passeio”, mas sim “na estrada para ser visível e para
se poder desviar de obstáculos”, explica Duarte Brandão.
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