55 médicos já recusaram fazer mais de 150 horas extra.
Equipas de urgência geral em risco
É a maior unidade de saúde do distrito de Setúbal. E
desde junho que as urgências de ginecologia-obstetrícia estão a funcionar com
limitações, devido à falta de médicos. Mas esta situação também já está a
colocar em risco as escalas da urgência geral. Médicos internistas e cirurgiões
do Garcia de Orta, que têm vindo a apresentar escusas de responsabilidade pelas
condições em que trabalham, estão a recusar fazer mais do que as 150 horas
extras previstas na lei, porque a maioria já as fez. O DN contactou o hospital,
mas não obteve resposta.
Quando há falta de médicos, são os doentes que ficam em
risco, porque não há condições de lhes dar resposta
Ana Mafalda
Inácio
31 Julho 2022 —
00:06
Na semana que
termina houve mais um dia em que o CODU (Centro de Orientação de Doentes
Urgentes) foi informado de que tinha de desviar as ambulâncias destinadas ao
Hospital Garcia de Orta para as unidades de Lisboa. "Não havia médicos
suficientes para garantir cuidados aos doentes graves. E é a única solução,
porque senão eram os doentes que ficariam em risco", explicaram ao DN
fontes hospitalares.
Dias antes, no
final de um turno de urgência geral a equipa de serviço enviou mais um pedido
de escusa de responsabilidade aos sindicatos e à Ordem dos Médicos, pelas
condições em que esteve a trabalhar e a tentar dar resposta aos utentes. O DN
sabe que nesse dia a equipa da urgência funcionou no turno diurno com dois
especialistas e quatro internos e à noite com dois especialistas e cinco
internos do ano comum (IAC) - os quais "ainda não são médicos, estão a
fazer o Ano Comum, ainda não acabaram o curso", sublinharam as mesmas
fontes.
Acrescentando:
"Sempre que fazemos um banco acabamos por enviar um pedido de escusa de
responsabilidade. Nos últimos tempos, há, pelo menos, um todas as semanas.
Somos poucos, poucos diferenciados e temos de enfrentar algumas situações
graves". Por exemplo, "com o fecho das urgências de pediatria e de
ginecologia-obstetrícia já tivemos de receber na urgência de adultos crianças e
grávidas. Têm sido situações pontuais, mas são graves, porque se alguma coisa
corre mal, podemos não ter preparação para as resolver, do ponto de vista
técnico e até emocional. E tudo isto tem vindo a causar um grande desgaste aos
profissionais e a degradar o ambiente".
Se não bastavam
os pedidos de escusa de responsabilidade pela falta de condições de trabalho,
nos últimos dias começaram a ser enviados para o Conselho de Administração e a
serem dados a conhecer aos sindicatos pedidos de escusa para mais de 150 horas
extraordinárias nas urgências, já que a maioria dos profissionais já as
completou e são só estas que a lei define.
Segundo referiram
ao DN, só nos últimos dias, o Sindicato dos Médicos da Zona Sul (SMZS) recebeu
55 pedidos de médicos especialistas de Medicina Interna e de Cirurgia Geral e
de internos de escusa a mais de 150 horas extraordinárias nas urgências. E
estes "são as especialidades que asseguram as urgências
presencialmente", explicaram-nos. Isto porque, "a maioria dos médicos
internistas e cirurgiões dos quadros que asseguram a urgência geral já
completaram esse número de horas extras, que são as que a lei prevê que podem
ser realizadas ao longo do ano".
Quando
questionamos o que poderá acontecer com esta decisão, quando entra o mês de
agosto, respondem: "Sinceramente, não sabemos", mas "neste
momento, os especialistas já asseguram um banco extra aos que têm de fazer
normalmente, mas com este número de pessoas a apresentar recusa a mais horas,
provavelmente este vai deixar de ser assegurado". E especificam: "Nos
bancos normais já não somos suficientes, com mais pessoas a fazerem menos horas
extras alguma coisa tem de ser eliminada".
Além do mais,
reforçam, "a escala de urgência interna, que é assegurada por um médico
que dá apoio a todos os doentes internados, também está comprometida, porque é
totalmente garantida pela medicina interna". Ou seja, com estes pedidos de
escusa, e "se mais médicos recusarem fazer horas extras, não haverá escala
de urgência interna nem bancos ao domingo, que é o extra".
O DN contactou o
gabinete de comunicação do HGO ao início da tarde de sexta-feira para
confrontar o Conselho de Administração com tais situações e saber como estas
serão resolvidas, mas não obteve resposta até ao fecho desta edição.
.Houve
situações em que doentes estiveram à espera 20 horas para serem observados.
Recusa de horas extras leva a menos equipas nas urgências
As mesmas fontes
hospitalares, que aceitaram falar ao DN sob anonimato, garantem que a situação
que agora se vive não tem só a ver com um problema de férias, mas com "o
arrastar de situações de há muito tempo. Na altura da pandemia, os
profissionais deram tudo. Agora, estão exaustos. As urgências de medicina
interna e de cirurgia só são asseguradas com muitas horas extras. Durante a
pandemia, todos os médicos aceitaram fazer bancos de 24 horas todas as semanas.
Só os internos faziam 12 horas, que é o que está previsto no regulamento do
internato, mas este ano quando a situação começou a acalmar a maior parte
recusou-se e voltámos às escalas de 12 horas. Isto faz com que haja menos
pessoas de cada vez".
Ao que apurámos,
habitualmente há dois especialistas por turno, que é o mínimo definido para
assegurar os cuidados pela Ordem dos Médicos, mas "as equipas chegam a ter
cinco elementos, mas com médicos mais ao menos diferenciados".
Neste momento,
por exemplo, o Serviço de Medicina Interna tem 28 especialistas, porque cinco
saíram nos últimos tempos e os três internos que se formaram também. E deste
total, três têm mais de 60 anos e não fazem urgência, um só faz turnos diurnos,
outro só aos fins de semana e três têm horário de amamentação.
Antes da saída
dos oito profissionais, "o serviço tinha uma escala para a urgência com
sete equipas, agora tem seis e com a recusa de horas extras deve ter de
diminuir ainda mais e a partir de agosto não vamos conseguir assegurar as
escalas, porque é preciso um número mínimo de especialistas", sublinharam
os mesmos, desabafando que "as urgências já são asseguradas sob grande
pressão e, às vezes, sob grande risco. Aos doentes mais graves, que são logo
detetados, até conseguimos dar resposta, mas o problema são os doentes triados
com pulseiras amarelas ou verdes, que já têm queixas há algum tempo, que acabam
por esperar 20 horas ou mais, como já aconteceu, e que, se calhar, estão ali a
desenvolver alguma coisa grave. Estas são as situações complicadas e que podem
passar despercebidas".
A verdade é que,
nesta altura, não são os serviços de Medicina Interna e de Cirurgia que estão
com dificuldades em assegurar as escalas das urgências. "A escala da
Ortopedia é outro grande problema. Saíram quatro especialistas do serviço de
uma vez só, muito recentemente, um dos quais assegurava mais de 50% das horas
extras na urgência, e isso fez descambar a escala deste serviço. Quando não há
o número mínimo de especialistas, o bloco do poli trauma fecha e não podemos
receber doentes de acidentes de viação ou com quedas graves. E isto vai
sobrecarregar outros hospitais. Imagine que Setúbal e o Barreiro também estão
sem capacidade para receber estes doentes ou outros doentes urgentes e que estão
a desviá-los também. A certa altura, os doentes não podem ser todos desviados
para Lisboa e o que pode acontecer é não conseguirmos dar resposta à população,
que não tem a mínima noção deste tipo de crise", sublinharam. "Neste
momento, fala-se muito da obstetrícia, mas o problema também afeta outras áreas
e o risco é sempre para os doentes. Sobretudo para os que não são abordados em
tempo útil".
Internamento de 24 camas, chega a ter 60 e 90 doentes
Estes
profissionais do HGO são perentórios ao afirmarem: "Nenhum médico ou
hospital quer que as urgências fechem. O objetivo não é esse. O que não se quer
é ter lá doentes para os quais não temos resposta. É isso que nos aflige".
Ao que o DN soube, a urgência de adultos do HGO tem recebido uma média diária
de 200 a 250 episódios.
No espaço para
internamento, que só tem 24 camas, chegam a estar 27, e nos corredores o dobro
destes doentes em macas. "Nos últimos dias, tem havido entre 60 a 70
internamentos nas urgências, mas já chegámos a ter 90 doentes internados em
macas nos corredores, que se misturavam com os outros que entram e saem. São
muitos doentes internados, mas não há vagas nos serviços", justificou uma
das fontes ouvidas pelo DN.
Outra especifica:
"Na zona de internamento, que é como se fosse uma sala de observação,
ficam os doentes potencialmente instáveis e os que têm de ser mais vigiados. Os
restantes, numa zona considera de balcão, partilham o mesmo espaço com os
doentes que estão a entrar da rua para serem observados". Segundo contam,
"a situação do espaço também se agravou devido à pandemia, pela
necessidade de haver mais vagas para cuidados intensivos. Isto fez com que uma
zona do serviço de urgência perdesse espaço", mas "a administração
comprometeu-se a fazer obras para aumentar o espaço da urgência. Em outubro,
vai ser libertado um espaço que era da esterilização e a urgência vai ficar com
ele, mas ainda vai ser sujeito a obras e até lá a urgência continuará naquele
espaço pequeno".
Administração deveria apoiar mais equipas da casa
Os profissionais
admitem que "a administração do HGO tem noção da falta de médicos e que
não tem muita margem de manobra para pagar mais aos profissionais dos quadros -
ou pelo menos pagarem como pagam aos tarefeiros".
Dizem mesmo que a
administração "está a tentar contratar pessoas de fora diferenciadas, mas
ninguém quer fazer bancos. Os internatos da especialidade são muito pesados e
os internos não têm tempo para fazer mais bancos fora do seu hospital. Sobram
os médicos indiferenciados, alguns com alguma qualidade outros nem por isso.
Daí que também haja alguma renitência em pagar mais ou em fazer contratos,
porque depois a qualidade deixa muito a desejar".
O que custa a
estes profissionais "é a administração não apoiar os médicos dos quadros,
não assumirem que têm as equipas desfalcadas e não fazerem mais pressão para
quem está acima. Eles sabem que os problemas existem".
Neste momento, as
especialidades com mais dificuldades nas escalas das urgências são precisamente
aquelas que as têm de assegurar presencialmente e que "têm de dar resposta
a tudo, com mais ou menos sofrimento". Especialidades como cardiologia,
neurologia e neurocirurgia, estão no hospital, mas nos seus serviços, de
prevenção, e dão resposta durante 24 horas à urgência, quando são chamados. Mas
também já houve "falhas na neurologia, embora muito pontualmente, e o CODU
teve de desviar os doentes da Via Verde AVC para outras unidades", comentaram.
As especialidades
como endocrinologia, reumatologia, psiquiatria, pneumologia, infecciologia,
gastro e outras, não têm a pressão das urgências. "Dão apoio durante o
dia, menos ao fim de semana, mas não estão em presença na urgência. Foram
retiradas desta tarefa, o que fez com que os serviços de urgência ficassem na
dependência de internistas, cirurgiões e ortopedistas".
Ao DN, estes
profissionais do HGO concordaram que é preciso um grande investimento no
Serviço Nacional de Saúde, nomeadamente nos cuidados primários, para que estes
possam dar resposta aos utentes, evitando que vão às urgências. "É preciso
que estes voltem a ser serviços com a função para as quais foram criadas, para
casos urgentes, onde devem estar os melhores médicos, que saibam reconhecer que
a situação é grave e como se deve agir, e não médicos desgastados ou
indiferenciados". Por outro lado, concordaram também ter de ser feito
investimento na educação para a saúde, para que os "doentes saibam onde e
quando se devem dirigir a uma urgência".
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