sábado, 30 de julho de 2022

Itália: extrema-direita seduz operários / Italy: far-right seduces workers

 


ANÁLISE

Itália: extrema-direita seduz operários

 

Se a Europa se converte aos valores da direita, o fenómeno é mais patente na Itália. A pós-fascista Giorgio Meloni domina o voto operário, suplantando os herdeiros do antigo Partido Comunista, que foi o maior da Europa.

 



Jorge Almeida Fernandes

30 de Julho de 2022, 7:00

https://www.publico.pt/2022/07/30/mundo/analise/italia-extremadireita-seduz-operarios-2015540

 

Em França, é Marine Le Pen quem domina o voto operário. Na Itália, é Giorgia Meloni, líder do partido Irmãos de Itália (FdI, pós-fascista). Não é uma novidade, é a ilustração e a consolidação de um fenómeno bem conhecido.

 

Que dizem as sondagens operárias? “O herdeiro da tradição da esquerda, o Partido Democrático (PD), com 12,5%, está claramente atrás dos FdI (23%), da Liga (21,9%) e do Movimento 5 Estrelas (M5S), escreviam há dias no diário Il Foglio, o jornalista Dario di Vico e o sociólogo Emilio Reyneri. Em compensação, o PD é forte nas classes médias e dirigentes, nos meios urbanos e cosmopolitas. E Meloni está a “roubar” a Salvini o voto operário, inclusivamente em zonas do Norte. E também as donas de casa, antigo baluarte de Berlusconi. Os autores baseiam-se nos inquéritos de Nando Pagnoncelli, director de um instituto de sondagens.

 

A Itália é um dos países mais à direita da Europa: 44% contra 31% que se declaram de esquerda, diz um estudo do instituto francês Fondapol sobre “A conversão da Europa aos valores de direita”, realizado em 2021 na França, Itália, Grã-Bretanha e Alemanha. A direita surge como maioritária em todas as categorias sociais, e mais marcadamente no mundo operário. Note-se que 2021 foi o ano glorioso de Mario Draghi, pouco apreciado pela direita mas largamente apoiado pelos italianos.

 

O mundo operário

Reyneri sublinha uma especificidade italiana relativamente à classe operária: “A faixa dos trabalhos médios contrai-se, a dos baixos cresce e a dos altos cresce pouco.” Consequência? “Isto interrompe a mobilidade social dos filhos dos operários.” E cria um sentimento de frustração que favorece o populismo.

 

A esta frustração, soma-se “uma maior marginalização do operário, seja na fábrica seja na sociedade, devido às mudanças tecnológicas e à deslocalização da produção.” E, na Itália, o aumento da escolarização não se traduz numa maior competência, se comparada por exemplo com os Países Baixos.

 

Uma nota interessante diz respeito à xenofobia. Explica Reyneri: “Nas cidades, os estrangeiros são complementares num mercado em que os postos de trabalho mais altos estão reservados aos italianos, e os recém-chegados destinados aos trabalhos mais baixos. Na província, onde há falta de trabalhadores, os estrangeiros acabam por ser concorrentes dos italianos, o que desencadeia uma espécie de xenofobia e uma distância identitária que se reflecte no voto de direita.”

 

A esquerda é encarada como uma elite, um partido da classe média que não entende os problemas operários. E aqui entra em jogo a questão dos valores, a divergência entre direitos civis e direitos sociais. Anota Di Vico: “Na cidade, criou-se e está adquirida uma opinião pública muito atenta aos direitos das minorias, e com uma capacidade de voice crescente. Em paralelo, o sindicato que era o megafone dos direitos sociais, conserva os inscritos mas viu a sua acção reduzida a serviços assistenciais e administrativos.”

 

Concluem: “O regresso à esquerda das camadas populares é um fenómeno a excluir em absoluto. A polarização do trabalho na versão italiana é uma tendência destinada a continuar por muito tempo.”

 

O dilema da esquerda

Os partidos de esquerda reflectiam historicamente os valores da classe operária, os económico-sociais e os culturais. O divórcio entre eles começou nos anos 1970. O caso francês é dos mais estudados. O historiador e jornalista Jacques Julliard escreveu em 1997 (La Faute aux élites) que o povo, abandonado pelas elites, perdeu a sua bússola para mergulhar no populismo.

 

“Substituíram os operários pelos imigrantes e passaram para estes o duplo sentimento de temor e de compaixão que o proletário geralmente inspira. (….) As classes populares são por natureza mais conservadoras ou repressivas: são as mais expostas, eis tudo.”

 

O declínio da classe operária, com o desemprego, a precarização, a perda da identidade colectiva e do orgulho de classe levam-na a reacções defensivas: contra os imigrantes, contra os assistidos, contra a perda dos valores tradicionais.

 

De forma simplista, pode dizer-se que a social-democracia entrou em declínio no fim dos anos 1970 quando começou a ruptura da aliança entre as classes médias urbanas e a classe operária. A aliança assentava num crescimento económico acelerado, que foi posto em causa após o choque petrolífero de 1973. Ao keynesianismo vai suceder o liberalismo de Reagan e Thatcher.

 

Outro fenómeno, estimulado pelo Maio de 68, vem colocar no primeiro plano as chamadas “questões fracturantes”. O liberalismo cultural vai ocupar o espaço do consenso social. Os socialistas vão adoptar uma linha antiliberal no plano económico, mas uma linha liberal e multicultural no plano dos valores. Mais tarde, render-se-ão ao próprio liberalismo económico.

 

É através desta estrada que Marine Le Pen, muito melhor do que Salvini, se soube tornar em porta-voz dos “de baixo”. O mundo operário abandonado pela esquerda foi muitas vezes ocupado pela extrema-direita. Giorgia Meloni parece estar a iniciar o mesmo percurso.

 

Com a crise da social-democracia, a esquerda procurou uma nova maioria. Ainda a não encontrou. Hoje, o PD continua a discutir se deve virar à esquerda para tentar reconquistar o terreno que perdeu nas áreas populares. É uma tarefa difícil. Os operários (que não são um mundo homogéneo mas diverso) sentem que a esquerda deixou de escutar as suas reivindicações, ocupando-se demasiado com o sub-proletariado dos “excluídos e dominados”.

 

O facto de a direita ser sociologicamente maioritária e de estar em clara vantagem nas sondagens não exclui a esquerda do poder. Se a esquerda italiana está fragmentada, a direita está muito mais dividida do que parece. Até 25 de Setembro muita água correrá debaixo das pontes. Os Irmãos de Itália são os favoritos. Mas ainda é muito incerto que Giorgia Meloni chegue a primeiro-ministro. Os anticorpos são muitos, na Itália e na Europa. E o preço de Draghi pode acabar por ser muito alto.

 

Nota: O Ponto de Vista volta em Setembro


ANALYSIS

Italy: far-right seduces workers

 

If Europe is converted to the values of the right, the phenomenon is more evident in Italy. The post-fascist Giorgio Meloni dominates the labour vote, supplanting the heirs of the former Communist Party, which was the largest in Europe.

 

Jorge Almeida Fernandes

July 30, 2022, 7:00

https://www.publico.pt/2022/07/30/mundo/analise/italia-extremadireita-seduz-operarios-2015540

 

In France, it is Marine Le Pen who dominates the labour vote. In Italy, it is Giorgia Meloni, leader of the Brothers of Italy (FdI, post-fascist) party. It is not a novelty, it is the illustration and consolidation of a well-known phenomenon.

 

What do the work polls say? "The heir to the tradition of the left, the Democratic Party (PD), with 12.5%, is clearly behind the FdI (23%), the League (21.9%) and the 5-Star Movement (M5S), wrote days ago in the daily Il Foglio, journalist Dario di Vico and sociologist Emilio Reyneri. On the other hand, the PD is strong in the middle and leading classes, in urban and cosmopolitan environments. And Meloni is "stealing" Salvini's labour vote, even in northern parts. And also the housewives, berlusconi's former bulwark. The authors are based on the surveys of Nando Pagnoncelli, director of a polling institute.

 

Italy is one of the rightmost countries in Europe: 44% against 31% who declare themselves left-wing, says a study by the French institute Fondapol on "The conversion of Europe to right-wing values", conducted in 2021 in France, Italy, Britain and Germany. The right emerges as a majority in all social categories, and more markedly in the working world. It should be noted that 2021 was the glorious year of Mario Draghi, little appreciated by the right but largely supported by the Italians.

 

The working world

Reyneri underlines an Italian specificity in relation to the working class: "The range of average jobs contract, the low one swells and the highs grow little." Consequence? "This disrupts the social mobility of the workers' children." And it creates a sense of frustration that favors populism.

 

To this frustration, there is "greater marginalization of the worker, whether in the factory or in society, due to technological changes and the relocation of production." And in Italy, the increase in schooling does not translate into greater competence compared to the Netherlands, for example.

 

An interesting note concerns xenophobia. Reyneri explains: "In cities, foreigners are complementary in a market where the highest jobs are reserved for Italians, and newcomers destined for the lowest jobs. In the province, where there is a lack of workers, foreigners end up competing with the Italians, which triggers a kind of xenophobia and an identity gap that is reflected in the right-wing vote."

 

The left is seen as an elite, a middle-class party that does not understand the problems of workers. And here comes the question of values, the divergence between civil rights and social rights. Di Vico notes: "In the city, a public opinion very attentive to the rights of minorities has been created and gained, and with a growing voice capacity. At the same time, the union that was the megaphone of social rights, retains the registrants but saw its action reduced to welfare and administrative services."

 

They conclude: "The return to the left of the popular layers is a phenomenon to be excluded at all. The polarization of work in the Italian version is a trend destined to continue for a long time."

 

The dilemma of the left

The left-wing parties historically reflected the values of the working class, the economic and social and the cultural. Their divorce began in the 1970s. The French case is one of the most studied. Historian and journalist Jacques Julliard wrote in 1997 (La Faute aux élites) that the people, abandoned by the elites, lost their compass to immerse themselves in populism.

 

"They replaced the workers with the immigrants and passed on to them the double feeling of fear and compassion that the proletarian usually inspires. (....) The popular classes are by nature more conservative or repressive: they are the most exposed, that's all."

 

The decline of the working class, unemployment, precarious, the loss of collective identity and class pride lead it to defensive reactions: against immigrants, against the assisted, against the loss of traditional values.

 

In a simplistic way, it can be said that social democracy declined in the late 1970s when the rupture of the alliance between the urban middle classes and the working class began. The alliance was based on accelerated economic growth, which was called into question after the oil shock of 1973. Keynesianism will succeed the liberalism of Reagan and Thatcher.

 

Another phenomenon, stimulated by May 1968, puts the so-called "fractural issues" at the foreground. Cultural liberalism will occupy the space of social consensus. The Socialists will adopt an anti-liberal economic line, but a liberal and multicultural line of values. Later, they will surrender to economic liberalism itself.

 

It is through this road that Marine Le Pen, much better than Salvini, was able to become the spokesperson of the "bottom". The labourer world abandoned by the left was often occupied by the far right. Giorgia Meloni seems to be starting the same route.

 

With the crisis of social democracy, the left sought a new majority. You haven't found her yet. Today, the PD continues to discuss whether to turn left to try to regain the land it lost in popular areas. It's a difficult task. The workers (who are not a homogeneous but diverse world) feel that the left has stopped listening to their claims, taking too much care of the sub-proletariat of the "excluded and dominated".

 

The fact that the right is sociologically majority and is in clear advantage in the polls does not exclude the left from power. If the Italian left is fragmented, the right is much more divided than it seems. Until September 25th, plenty of water will run under the bridges. The Brothers of Italy are the favorites. But it is still very uncertain that Giorgia Meloni will become prime minister. The antibodies are many in Italy and Europe. And Draghi's price could end up being too high.

 

Note: The Viewpoint returns in September


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