OPINIÃO
CORONAVÍRUS
Covid-19 e as novas oportunidades para o arrendamento em
Lisboa
Não é novidade que, de há cinco anos a esta parte, Lisboa
vive uma crise de habitação sem precedentes, com a escalada galopante de
valores praticados, quer no arrendamento, quer na aquisição de habitação
própria, que se revelam crescentemente proibitivos para a esmagadora maioria da
população portuguesa.
Luís Mendes
27 de Março de
2020, 10:02
A expansão
recente da pandemia de covid-19 tem suscitado alterações no regime de ocupação
de muitas casas no centro histórico de Lisboa, antevendo um arrefecimento na
febre imobiliária da cidade e cativando o potencial interesse dos proprietários
de alojamento local (AL) em canalizar parte das duas dezenas de milhar de
alojamentos de uso turístico existentes no município, agora vazios, para o
mercado de arrendamento de longa duração.
Não é novidade
que, de há cinco anos a esta parte, Lisboa vive uma crise de habitação sem
precedentes, com a escalada galopante de valores praticados, quer no
arrendamento quer na aquisição de habitação própria, que se revelam
crescentemente proibitivos para a esmagadora maioria da população portuguesa. A
conjuntura explicativa não se resume à turistificação, mas prende-se com um
conjunto mais lato e estrutural que não nos interessa aqui explorar.
À semelhança da
política de habitação e de arrendamento acessível que tem vindo a desenvolver,
a Câmara Municipal de Lisboa (CML), como agente de produção e gestão do espaço
urbano e de ordenamento do território municipal, e face ao dever que lhe
assiste nesta matéria, lançou no passado dia 25 de Março uma série de medidas
de apoio às famílias, às empresas e ao emprego, passando muitas delas por
benefícios e isenções aos arrendatários municipais.
Face ao estado de
emergência vigente e ao plano nacional de contingência da covid-19, e como “não
se pode fazer quarentena sem casa”, a CML, pressionada por diversos movimentos
sociais e associações de defesa do direito à habitação, suspendeu os despejos que
estava a levar a cabo em fogos de alguns bairros municipais que estavam
ocupados ilegalmente. Suspende também o pagamento das rendas em todos os fogos
municipais até ao fim de Junho deste ano e permite que a liquidação das renda
se faça por ano e meio sem penalizações, sendo que, a qualquer momento, as
famílias poderão solicitar a reavaliação do valor da renda que pagam, em
virtude de eventual desemprego dos seus membros ou quebra súbita de
rendimentos.
Até ao mesmo
limite temporal, esta suspensão estende-se também ao pagamento de rendas por
todas as instituições de âmbito social, cultural, desportivo e recreativo, bem
como espaços comerciais encerrados, ambos instalados em propriedade municipal.
Perante a grave
crise que se vive no mercado de arrendamento de Lisboa, e aproveitando as
isenções fiscais no Orçamento de Estado 2020, a CML já tinha em vista lançar o
Programa Renda Segura (PRS), visando arrendar casas a proprietários privados
(de alojamento local, imóveis desocupados ou prédios livres) para depois as
subarrendar a preços acessíveis através do seu Programa Renda Acessível. Com o
objectivo até ao fim deste ano de abarcar cerca de um milhar de casas, o papel
da autarquia será o de subsidiar a diferença entre a renda que pagar pelo
imóvel — em contratos de no mínimo cinco anos — e aquela que, depois, vai
cobrar ao inquilino, sendo que o valor máximo que a pessoa ou o agregado paga
pela renda nunca poderá ultrapassar um terço do seu salário líquido.
Prosseguindo uma
narrativa de arrendamento acessível, o PRS, que se encontra ainda em fase de
discussão e aprovação, apresenta, de facto, considerandos positivos. Opta por
um preço travão, com a fixação de valores máximos de renda de acordo com uma
tipologia, que é, em boa verdade, significativamente abaixo dos valores
conhecidos de oferta no mercado de arrendamento para o conjunto das freguesias
de Lisboa. Apresenta também uma possibilidade de captação de propriedades
devolutas ou outras disponíveis no mercado livre para compra e venda para o
mercado de habitação acessível.
Estes aspectos do
PRS ganham novo destaque no actual contexto de crise pandémica. Inicialmente
previsto para, no caso de se atingir uma situação de saturação do mercado de
AL, ser uma oportunidade de desviar propriedades afectas ao AL para habitação
acessível, o PRS alcança agora nova funcionalidade. Por exemplo, foi já criada
uma plataforma que regista centenas de alojamentos (anteriores AL), doravante
disponíveis para reserva de apartamentos e quartos para profissionais de saúde
(médicos, enfermeiros, auxiliares, pessoal técnico e administrativo) que,
sobreexpostos ao coronavírus, se recusam a voltar a casa, tanto pelo receio e
risco de poderem contagiar os seus familiares, como por estarem deslocados do
seu local de residência. Uma iniciativa que tem o patrocínio da Associação de
Alojamento Local em Portugal (ALEP) e do Turismo de Portugal.
Turistificação
Trata-se também
de uma resposta à difícil situação pela qual passam muitos pequenos
proprietários de AL, confrontados com o cancelamento massivo de estadias e
congelamento de novas reservas devido ao estancar da procura e dos fluxos
turísticos. Uma situação sem prazo para retomar à normalidade e que ameaça
colapsar todo um sector de arrendamento de curta duração que cresceu de forma
massificada, muito rapidamente e sem o planeamento devido.
Esta foi a
condição última para o acentuar da turistificação do centro da cidade e da perigosa
hiperespecialização da sua economia e sociedade, que para além de esvaziar a
cidade de gente e descaracterizar a sua identidade e memória, tornou o
território mais vulnerável e menos resiliente a eventos e fenómenos que
configuram ameaça externa à sustentabilidade económica, social e ambiental (ex.
atentados terroristas, catástrofes naturais, instabilidade política, conflitos
e epidemias).
Sobretudo perante
o actual contexto de urgência imposto pela crise de habitação e pelos
sucessivos anos de contínuos despejos que agravam a sangria demográfica da
cidade e as condições de vulnerabilidade residencial de muitos grupos sociais
(idosos, estudantes, imigrantes, sem abrigo), cujas precárias condições de
habitabilidade dificultam o direito ao isolamento e à quarentena em período de
covid-19, bem como pela situação de crise vivida no sector do AL, o PRS pode
representar aqui uma resposta ágil e flexível, quer a situações de emergência
habitacional vividas em Lisboa, quer mobilizando o excedente de stock de
propriedades em AL que podem agora reconverter-se em fogos com função de
arrendamento permanente.
O curioso de tudo
isto é como o tsunami turístico da cidade, associado à monofuncionalidade e à
hiperespecialização do tecido económico e social do seu centro histórico, com
todas as suas externalidades negativas, na verdade, pode abrir caminho para uma
nova oportunidade de resiliência da urbe face à ameaça externa do novo tsunami
social, económico e financeiro que se avizinha com a propagação da covid-19.
Essa é afinal a
fórmula de sucesso do “capitalismo de desastre”, mobilizar todos os esforços
públicos e privados para capitalizar da melhor forma possível a destruição
criativa dos territórios e das paisagens acarretada pelos riscos ou catástrofes
naturais, em que poucos beneficiam muito e muitos tão pouco ou nada.
Geógrafo do
Instituto de Geografia e Ordenamento do Território da Universidade de Lisboa.
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