A crise dos refugiados é uma
crise geopolítica
João Marques de Almeida
5/9/2015, OBSERVADOR
Devemos ter consciência de que os
instintos admiráveis não resolvem os problemas a médio e longo prazo. Como a
Europa sabe muito bem, a integração de imigrantes é uma questão muito
complicada.
As imagens são
terríveis (e algumas muito tristes) e os instintos da maioria dos europeus são
admiráveis. Aliás não haverá em qualquer outra região do mundo sociedades com
instintos tão solidários como as europeias. Os cidadãos europeus mobilizam-se
para ajudar quem sofre, fazem campanhas para ajudar estrangeiros e colocam
pressão política sobre os seus governos. Perante estes instintos, qualquer
europeu deve sentir orgulho na Europa. E há mesmo Europa e europeus. De
Portugal à Suécia, há europeus com reações semelhantes. Do Reino Unido à
Alemanha, os editoriais dos jornais exprimem os mesmos argumentos. Por tudo isso,
é difícil de entender que muitos daqueles que mostram a existência de uma
Europa de cidadãos solidários simultaneamente ataquem a Europa. Ela está à
frente dos seus olhos, eles fazem parte dela (e estão a construi-la); e mesmo
assim não notam que ela existe. Estou convencido – mas não tenho como provar –
que a educação de várias gerações numa Europa aberta e cosmopolita contribuiu
para a emergência de europeus que entendem que a solidariedade e a obrigação de
ajudar aqueles cujos direitos fundamentais foram grosseiramente violados não se
esgota nas fronteiras nacionais.
Mas se os
instintos são admiráveis, por vezes a lucidez do debate é insuficiente. Devemos
ter, antes de mais, a consciência de que os instintos admiráveis não resolvem
os problemas a médio e longo prazo. Como a Europa sabe muito bem, a integração
de imigrantes é uma questão muito complicada. E o choque que a tragédia
provoca, infelizmente, não altera o problema de fundo. Os novos imigrantes
terão que trabalhar e as economias europeias não criam empregos com a rapidez
desejável. Terão que se integrar em países com costumes, línguas e hábitos
muito diferentes. Não será fácil, nem para eles nem para os locais. Mas,
sobretudo, há um problema político. Não faltam na Europa políticos populistas,
demagogos e com discursos anti-democráticos que olham para esta crise dos
imigrantes como uma grande oportunidade política. E ninguém tenha dúvidas. Vão
fazer tudo para a aproveitar.
Muita gente tem
criticado a reação dos governos britânico e francês, mas convêm entender a
situação política nos dois países. O Reino Unido prepara-se para organizar um
referendo sobre a Europa. A imigração será o principal tema da campanha. O UKIP
e Farage tudo farão para usar os imigrantes de modo a que a maioria dos
britânicos vote para abandonar a União Europeia. A importância da manutenção do
Reino Unido na UE obriga-nos a entender a reação de Cameron (embora reconheça
que alguma da linguagem usada foi muito infeliz).
Em França, a
ameaça não será a saída da UE, mas é igualmente má: chama-se Frente Nacional. Marine
Le Pen e a sua gente olham para a crise dos refugiados como uma oportunidade
para crescer politicamente. O Presidente francês tem que lidar com os
refugiados com a ameaça de Le Pen em mente. Se não o fizesse, seria altamente
irresponsável. A eleição de Marine Le Pen em 2017 seria um preço demasiado
elevado a pagar. Por isso, julgo que Hollande está a comportar-se muito bem,
conseguindo um equilíbrio notável entre a solidariedade e o realismo político.
Como é óbvio, a
Europa não poderá integrar todos os refugiados que se preparam para abandonar o
Médio Oriente e África. O problema de fundo terá que ser resolvido nessas
regiões. Aqui, chegamos à questão central: a questão geopolítica. Na verdade,
estamos perante uma dupla questão. Por um lado, a grande maioria dos refugiados
parte de países a viverem guerras civis: Síria, Iraque e Afeganistão. Se o
número de refugiados continuar a aumentar, os países europeus voltarão a
discutir os méritos (e os perigos) das intervenções humanitárias. Será uma
questão de tempo. Se a Europa se vê obrigada a lidar com uma crise de
refugiados, como resultado de guerras civis e de regimes políticos radicais e
violentos, deixa de haver legitimidade para argumentar que os assuntos internos
desses países não dizem respeito aos países europeus. Claro que dizem. A
estabilidade da Europa começa nesses países.
Por outro lado,
há uma estratégia propositada do Estado Islâmico e dos grupos radicais para
enviar refugiados para a Europa. Não é por acaso que o número de refugiados
aumenta com o reforço do poder do EI. Os radicais islâmicos perceberam que os
refugiados irão, a prazo, aumentar a instabilidade política na Europa e favorecer
os nossos próprios radicais. A Europa democrática está duplamente ameaçada:
entre os radicais islâmicos de um lado e as Frentes Nacionais do outro. Os
instintos admiráveis mostram as virtudes democráticas. Mas não serão
suficientes para defender a democracia dessa dupla ameaça. Para isso, será
necessário muita lucidez e muito realismo.
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