O
“camarada Corbyn” ou o drama da social-democracia
TERESA DE SOUSA
13/09/2015 - PÚBLICO
O
destino do Labour é mais um sério aviso sobre o que se está a
passar na paisagem política europeia, com a emergência de forças
de natureza populista ou extremista, à direita e à esquerda.
1. Na sexta-feira,
numa breve entrevista a Chris Patten, o conservador britânico mais
europeísta e mais lúcido que conheço, disse uma frase que resume
na perfeição o que se passa com o Labour: “Há gente que manda
parar o mundo para desembarcar”. A impensável vitória de Jeremy
Corbyn nas eleições para a nova liderança do Labour é um desses
momentos. O Labour acabou de sair do mundo.
A humilhante derrota
de Ed Miliband nas legislativas de Maio abria inevitavelmente a porta
para um duro confronto pela identidade do partido. Quando, em 2010,
Miliband foi eleito, vencendo o seu irmão mais velho David que
representava a mudança na continuidade do blairismo, o resultado foi
uma meia surpresa. David era o preferido do establishment. Ed apostou
na viragem à esquerda, tirando proveito da revolta dos trabalhistas
contra o “liberalismo” de Blair. Nos últimos cinco anos tentou
encontrar uma linha de rumo que respondesse às preocupações de uma
vasta classe média “espremida” pelos anos do neoliberalismo
económico e pelos primeiros efeitos da crise financeira na Europa.
Nunca conseguiu acertar num caminho que não fosse de curvas e
contracurvas. Deixou o seu partido perder aquilo que Blair lhe tinha
oferecido desde 1994, garantindo três vitórias eleitorais
consecutivas: a credibilidade na gestão da economia e o sentido das
realidades novas que desafiavam a sociedade britânica na era da
globalização. Sinal dos tempos, o Labour acaba de eleger para a sua
liderança uma figura da “pré-história” que nos remete para os
anos 80, quando o Labour atravessou 18 anos de oposição, defendendo
uma linha radical que Jeremy Corbyn foi retirar a um baú do qual já
ninguém se lembrara. Há um par de meses, a hipótese da sua vitória
não era sequer levada em conta. No último dia para apresentar
candidaturas, teve de pedir aos outros candidatos que lhe
emprestassem os 35 deputados necessários para formalizá-la. O mundo
mudou radicalmente nas últimas décadas. Corbyn não. Quer ser um
Syriza em ponto grande, na versão anterior à conversão de Alexis
Tsipras à ortodoxia europeia. Não se trata apenas do programa
económico de outro tempo. O seu perfil político, do qual pouca
gente deu conta (votou quase sempre contra qualquer proposta do
Labour em Westminster) inclui o antiamericanismo e o antimilitarismo
típicos da extrema-esquerda. Responsabiliza o Ocidente por todos os
males do mundo. Foi visita frequente de Chávez, de Putin ou de
Teerão. Queria o desmantelamento da NATO quando acabou a Guerra
Fria. Quer acabar com a frota nuclear britânica. Mesmo assim
conseguiu uma enorme mobilização de jovens à procura de uma causa
ou de trabalhadores fartos de austeridade. “Os apoiantes jovens do
Labour não querem alguém que torne o partido elegível, querem
alguém exprima a sua revolta”, escreve Robert Colvil, antigo
comentador do Telegraph, no site Politico
2. O resultado da
escolha do novo líder do Labour surge num momento particularmente
adverso. Não porque a economia britânica não esteja a recuperar
mais depressa do que as suas congéneres europeias, com o desemprego
a cair acentuadamente, mas porque o Reino Unido enfrenta uma das
decisões com consequências mais pesadas para o seu futuro: o
referendo sobre a União Europeia. Não se sabe exactamente o que
pensa o novo líder trabalhista sobre o assunto, que evitou
cuidadosamente. O que se sabe é que considera que “a Europa não
favorece os interesses dos trabalhadores” e que votou contra a
adesão no referendo organizado pelo então primeiro-ministro
trabalhista Harold Wilson em 1975. Ora, uma posição forte e clara
do Labour a favor da Europa seria decisiva para vencer o referendo.
David Cameron sabe o risco que corre se o resultado não for o
pretendido. Deixou de poder contar com um “aliado”. Corbyn é um
“pacifista”. O primeiro-ministro britânico pode, aliás, sentir
imediatamente na pele o seu pacifismo quando apresentar no Parlamento
a autorização para participar nos bombardeamentos contra o Estado
islâmico.
3. O destino do
Labour é mais um sério aviso sobre o que se está a passar na
paisagem política europeia, com a emergência de forças de natureza
populista ou extremista, à direita e à esquerda, que desafiam cada
vez mais o establishment político europeu num sentido que pode
acabar por ser fatal. Corbyn é a última confirmação de que a
social-democracia europeia ainda não conseguiu encontrar um caminho
suficientemente distinto do centro-direita em matéria de economia
para atrair a confiança da mesma classe média “espremida” que
está cansada de pagar a globalização económica (nos últimos
trinta anos, os seus rendimentos praticamente estagnaram em muitos
países europeus e nos Estados Unidos, enquanto a riqueza aumentava
para cada vez menos). O problema para o qual a social-democracia
procura uma resposta é o mesmo: como salvar o Estado social em
condições em que a concorrência internacional nunca foi tão
forte, a demografia tão desfavorável e a desigualdade tão
acentuada. A globalização trouxe outros países para a competição
mundial, com os seus baixos salários e as suas condições sociais
limitadas mas também a possibilidade de retirar da pobreza milhões
de pessoas. O dilema do centro-esquerda é como conciliar
competitividade económica com menos desigualdade social.
4. Houve um tempo,
na segunda metade dos anos 90 até meados da primeira década deste
século, em que a resposta parecia estar encontrada. Era a “Terceira
Via” de Tony Blair, inspirada nos novos Democratas de Clinton, que
rapidamente se estendeu ao continente e fez com que uma maioria de
partidos de centro-esquerda dominassem as grandes decisões
europeias. A ideia era simples: aceitar o funcionamento livre dos
mercados na economia mas não na sociedade. O combate às
desigualdades no novo contexto mundial seria feito através da
educação e da capacitação das pessoas. A competitividade
ganhava-se com o conhecimento e a inovação. Gerhard Schroeder
abraçou a nova fórmula chamando-lhe o “Novo Meio”. Reformou a
economia alemã, ainda a sofrer as penas da unificação, deixando a
Merkel uma magnífica herança mas criando uma forte crise de
identidade no SPD que até agora ainda não foi superada. Em
Portugal, Guterres chamou-lhe a “Via Europeia”. Em Espanha, o
PSOE de Felipe González foi um dos mais reformistas da Europa. Na
própria França, os socialistas começaram a invejar a economia
britânica em forte crescimento e a perguntar-se: porque não?
Seguiu-se a queda do Lehman Brothers e uma catástrofe financeira de
proporções colossais. Os ensinamentos da Grande Depressão levaram
os governos (nos EUA, na EU mas também na China) a injectar liquidez
na economia em grande escala. Houve ainda um breve momento em que a
esquerda acreditou que a crise significaria o seu regresso, ao
obrigar o Estado a salvar a economia da loucura dos mercados. Não
foi assim. A direita gere o que está. A esquerda quer transformar o
que está. Quando as diferenças se tornam mínimas (ou abissais) há
um problema. A crise do euro e a sua gestão alemã fixaram uma
receita única, deixando um caminho ainda mais estreito para uma
alternativa social-democrata. “Estamos a assistir à emergência de
uma nova clivagem que é consequência da globalização”, disse ao
Público há já um par de anos, o sociólogo alemão Wolfgang
Merkel. Entre os “viajantes frequentes” mais educados e mais
preparados para tirar partido da internacionalização e os
“comunitários nacionais” que viram as suas vidas afectadas, que
tendem para o proteccionismo, que são contra a imigração. Os
sociais-democratas, diz Merkel, vêem-se divididos entre estas duas
camadas. Corbyn nunca apareceu na televisão mas passou os últimos
trinta anos a cultivar as pequenas comunidades. “Mudámos a
política britânica” disse ontem Corbyn. Pelo menos isso é
consensual. Talvez Philip Stephens tenha alguma razão quando escreve
na sua coluna do Financial Times: “Corbyn for leader? Blame the
bankers”. Ou seja, a crise não reformou o capitalismo liberal, as
elites financeiras estão bem, obrigado, e os cidadãos comuns
continuam a pagar a crise com a austeridade.
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