A
culpa é de quem anda de avião
RICARDO GARCIA
13/09/2015 - PÚBLICO
Uma
viagem aérea de Lisboa a Londres representa 260 quilos de CO2 a mais
na atmosfera por passageiro.
Eu sei por que deu
tudo errado naquele dia. Foi a providência a chamar-me a atenção
para o ónus que infligiria ao planeta se embarcasse naquele avião.
Forças ocultas
tentaram de tudo para me demover. Começaram por estender uma enorme
fila de passageiros no check-in, acompanhados do dobro de bagagens e
o triplo de parentes.
Ao menos era fila
única, a engenhosa invenção em que os expectantes vão sendo
atendidos tão logo haja um balcão livre, anulando a universal lei
de que a coluna ao lado sempre anda mais rápido.
O aeroporto de
Lisboa adoptou, porém, uma variante que deu cabo desse benefício.
Depois de longos minutos até chegar à cabeça da serpente humana, o
viajante é orientado para se enfileirar atrás de guichés onde
outros ainda estão a entregar as bagagens – um acto simples que
sempre se complica.
Padeci de uma
segunda espera e quando, à minha vez, virei-me à direita para
agarrar na mala, fui ultrapassado à esquerda por uma senhora que
pretendia despachar uma bengala. Brandiu a cana diante do funcionário
que, surpreendido, sussurrou-me “volto já” e desapareceu.
Era um dia daqueles
no aeroporto. A confusão era tal que a saída do check-in
mesclava-se com a entrada de passageiros prioritários, combinação
de enorme poder anárquico.
No raio-X, a crise
revelava a sua face mobiliária: faltavam mesas para que mais de uma
pessoa de cada vez pudesse cumprir o ritual de abrir a mala, sacar o
computador, procurar os líquidos, tirar o cinto, descalçar as
botas. Tinha de ser um a um, e invariavelmente alguém se esquecia de
ou abrir a mala, ou sacar o computador, ou procurar os líquidos, ou
tirar o cinto, ou descalçar as botas.
O dia mal despontara
e as cancelas do passaporte electrónico estavam todas fechadas,
mostrando que tecnologia também tem sono. Os cafés do lado
internacional idem. Restava aguardar, sentado e faminto, pelo
embarque.
E assim foi, até
que veio a instrução para desamparar a loja. Quem estava sentado
foi convidado a levantar-se. A zona das cadeiras foi selada. E
formou-se uma fila no exterior do perímetro, para controlo
antecipado dos papéis. No final, todos retornaram aos mesmos
assentos de onde tinham sido ejectados. Era o pré-embarque, em
versão teatro do absurdo.
É claro que, quinze
minutos depois, quando o voo foi de facto convocado, todos se
precipitaram para o portão como se o mundo fosse acabar,
constituindo mais uma aglomeração onde os que deveriam embarcar por
último naturalmente estavam à frente dos primeiros.
Inútil impaciência,
dado que não havia manga e todos mais uma vez se acotovelaram dentro
de um autocarro. O motorista seguiu à risca o procedimento de chegar
ao avião antes de este estar pronto e de manter as portas longamente
fechadas, para desespero nasal dos passageiros. “Abram as
janelas!”, alguém gritou.
O embarque final
deu-se pelas duas extremidades da aeronave, metodologia perfeita para
colisões no corredor. Entrei por trás, através de uma escada que
tinha um desnível de proporções alpinas até à porta do avião.
Havia uma rapariga no meu assento. Eu dizia que o lugar era meu, ela
dizia que era dela. A culpa é do fabricante, que trocou os
autocolantes da fila 17, impondo-lhe uma dislexia alfabética: onde
se via A devia ler-se F.
Finalmente
instalado, convenci-me de que tudo aquilo era um sinal de alerta. Uma
viagem aérea de Lisboa a Londres representa 260 quilos de CO2 a mais
na atmosfera por passageiro. De autocarro seriam 50 e de comboio 20.
Mas a pressa do ser urbano é incompatível com dois dias de viagem.
Olha, então toma.
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