sábado, 12 de setembro de 2015

A culpa é de quem anda de avião.RICARDO GARCIA.


A culpa é de quem anda de avião
RICARDO GARCIA 13/09/2015 - PÚBLICO

Uma viagem aérea de Lisboa a Londres representa 260 quilos de CO2 a mais na atmosfera por passageiro.

Eu sei por que deu tudo errado naquele dia. Foi a providência a chamar-me a atenção para o ónus que infligiria ao planeta se embarcasse naquele avião.

Forças ocultas tentaram de tudo para me demover. Começaram por estender uma enorme fila de passageiros no check-in, acompanhados do dobro de bagagens e o triplo de parentes.

Ao menos era fila única, a engenhosa invenção em que os expectantes vão sendo atendidos tão logo haja um balcão livre, anulando a universal lei de que a coluna ao lado sempre anda mais rápido.

O aeroporto de Lisboa adoptou, porém, uma variante que deu cabo desse benefício. Depois de longos minutos até chegar à cabeça da serpente humana, o viajante é orientado para se enfileirar atrás de guichés onde outros ainda estão a entregar as bagagens – um acto simples que sempre se complica.

Padeci de uma segunda espera e quando, à minha vez, virei-me à direita para agarrar na mala, fui ultrapassado à esquerda por uma senhora que pretendia despachar uma bengala. Brandiu a cana diante do funcionário que, surpreendido, sussurrou-me “volto já” e desapareceu.

Era um dia daqueles no aeroporto. A confusão era tal que a saída do check-in mesclava-se com a entrada de passageiros prioritários, combinação de enorme poder anárquico.

No raio-X, a crise revelava a sua face mobiliária: faltavam mesas para que mais de uma pessoa de cada vez pudesse cumprir o ritual de abrir a mala, sacar o computador, procurar os líquidos, tirar o cinto, descalçar as botas. Tinha de ser um a um, e invariavelmente alguém se esquecia de ou abrir a mala, ou sacar o computador, ou procurar os líquidos, ou tirar o cinto, ou descalçar as botas.

O dia mal despontara e as cancelas do passaporte electrónico estavam todas fechadas, mostrando que tecnologia também tem sono. Os cafés do lado internacional idem. Restava aguardar, sentado e faminto, pelo embarque.

E assim foi, até que veio a instrução para desamparar a loja. Quem estava sentado foi convidado a levantar-se. A zona das cadeiras foi selada. E formou-se uma fila no exterior do perímetro, para controlo antecipado dos papéis. No final, todos retornaram aos mesmos assentos de onde tinham sido ejectados. Era o pré-embarque, em versão teatro do absurdo.

É claro que, quinze minutos depois, quando o voo foi de facto convocado, todos se precipitaram para o portão como se o mundo fosse acabar, constituindo mais uma aglomeração onde os que deveriam embarcar por último naturalmente estavam à frente dos primeiros.

Inútil impaciência, dado que não havia manga e todos mais uma vez se acotovelaram dentro de um autocarro. O motorista seguiu à risca o procedimento de chegar ao avião antes de este estar pronto e de manter as portas longamente fechadas, para desespero nasal dos passageiros. “Abram as janelas!”, alguém gritou.

O embarque final deu-se pelas duas extremidades da aeronave, metodologia perfeita para colisões no corredor. Entrei por trás, através de uma escada que tinha um desnível de proporções alpinas até à porta do avião. Havia uma rapariga no meu assento. Eu dizia que o lugar era meu, ela dizia que era dela. A culpa é do fabricante, que trocou os autocolantes da fila 17, impondo-lhe uma dislexia alfabética: onde se via A devia ler-se F.


Finalmente instalado, convenci-me de que tudo aquilo era um sinal de alerta. Uma viagem aérea de Lisboa a Londres representa 260 quilos de CO2 a mais na atmosfera por passageiro. De autocarro seriam 50 e de comboio 20. Mas a pressa do ser urbano é incompatível com dois dias de viagem. Olha, então toma.  

Sem comentários: