sexta-feira, 19 de abril de 2024

Polícias. Gerir as expetativas de um vulcão em risco de erupção

 


Valentina Marcelino

EDITORIAL

19 abril 2024 às 01:08

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Polícias. Gerir as expetativas de um vulcão em risco de erupção

 

Uma pessoa pode enganar muita gente durante um certo tempo; pode até mesmo enganar algumas pessoas todo o tempo; mas não será possível enganar todos para sempre.” Poucos não conhecem esta frase atribuída a Abraham Lincoln, 16.º presidente dos Estados Unidos, libertador dos escravos em 1863.

 

Este conselho tem percorrido a História e nunca deixou de ser atual no que diz respeito a uma arma crucial na política: a gestão das expetativas.

 

Ora quando se lê as notícias da manhã desta quinta-feira sobre a ameaça de “movimentos inorgânicos” de polícias se manifestarem no dia 25 de abril em frente à Assembleia da República, boicotarem operações de segurança e voltar (atenção com o “voltar”, pois admitem que já o fizeram) a usar baixas fraudulentas, caso não haja um acordo com o Governo até 10 de maio, em relação ao pagamento de um subsídios de risco equiparado ao da Polícia Judiciária (PJ), é fácil concluir que já estamos na última fase do conselho de Lincoln.

 

Não duvidando de que a ministra da Administração Interna, Margarida Blasco, tem definidos os critérios e o calendário para este pagamento com o aval do ministro das Finanças, Joaquim Miranda Sarmento, é bom que os explique o mais cedo possível - já na reunião do próximo dia 22 com os sindicatos da PSP e associações da GNR.

 

No comunicado oficial que chegou às redações não é isso, porém, que se advinha das intenções da equipa governativa. “Definir e estabelecer a metodologia e protocolo de audição e negocial respetivamente bem como a apresentar os pressupostos do âmbito e objeto para discussão e negociação entre as partes” (sic) são os pontos de agenda atabalhoadamente escritos, sem que nada, mas mesmo nada, se diga que faça arrefecer aquele vulcão que já explodiu no início do ano - com protestos fora de controlo a causar intenso alarme público - e que só interrompeu a sua fúria por causa da realização das eleições legislativas e das expetativas criadas.

 

Em campanha, Luís Montenegro, recorde-se, classificou como “erro imperdoável” o facto de o Executivo de António Costa ter atribuído este subsídio - que tem como fundamento legal os “ónus inerentes ao exercício das funções, bem como ao risco, insalubridade e penosidade que lhes estão associados e que se prolongam no tempo muito para além do exercício das funções” - apenas à PJ. “O que se passa nas forças de segurança é muito grave e não pode ser silenciado. O Governo é o primeiro responsável, porque criou uma desigualdade no suplemento de missão entre a PJ, PSP e GNR”, afirmou, embora nunca se vinculando a valores.

 

Nos últimos dias, já depois da primeira reunião entre os sindicatos e Margarida Blasco, que decorreu no passado dia 12, ouvimos oficiais, agentes, chefes e alguns dirigentes sindicais lamentar que não tenha logo ali sido apresentada pelo Governo uma primeira base negocial.

 

A verdade é que passados quatro meses da publicação do decreto-lei que atribui o suplemento de missão às carreiras especiais da PJ de investigação criminal e de apoio, passando de 478 euros para 1026, nada mais se tem feito a não ser a gestão de expetativas. Carreiras em que a exclusividade, disponibilidade total e exigência de licenciatura são regra.

 

Ainda nenhum dirigente, governamental ou das forças de segurança, teve a coragem de dizer aos polícias o óbvio: até podem vir a ter um subsídio de risco em montante equivalente ao da PJ, mas não será certamente de uma vez, nem pelos mesmos pressupostos. Ser PJ não é ser PSP nem GNR. Sem desvalorizar nenhuma destas instituições. Têm direitos e deveres distintos.

 

Neste momento, ao que soubemos, os polícias acreditam que esses 1026 euros são para já e ninguém lhes explicou porque não pode ser assim. Transparência e diálogo com os representantes das forças de segurança são condições sine qua non para explicar as razões por trás das disparidades salariais e discutir possíveis soluções de forma colaborativa.

 

Analisar as diferenças nas atribuições e responsabilidades das forças de segurança e garantir que as disparidades salariais estejam justificadas por essas diferenças. Mais uma vez, o que é diferente tem de ter tratamento diferente.

 

Realizar um estudo detalhado do impacto financeiro de uma eventual equiparação salarial entre as diferentes forças de segurança, considerando o orçamento disponível e a sustentabilidade a longo prazo. Não esquecer que na PJ são dois mil com este suplemento e na GNR e na PSP seriam 43 mil.

 

Pensar noutras formas de compensação, com melhores serviços de saúde, condições mais justas para passagem à disponibilidade, ajudam sempre, mas neste momento é urgente apresentar um plano.

 

“Não creio que as coisas fiquem serenas se não houver, desde logo, um compromisso com uma solução”, declarou o comandante da PSP do Porto, o superintendente chefe Pedro Gouveia, numa entrevista ao DN, não escondendo a sua preocupação com o efeito da frustração que vê nas suas mulheres e homens. Como ele, outros comandantes também nos têm feito chegar a sua ansiedade em relação às negociações.

 

Nesta dinâmica, Blasco tem como melhores aliados os sindicatos e associações representativas e estes, por seu lado, têm de saber distanciar-se dos perigosos “movimentos inorgânicos” sem nenhuma hesitação, muito menos aproveitar “boleias” dos seus protestos.

 

É uma enorme demonstração de fraqueza que numa autoridade de Estado, ainda mais com competências de investigação criminal, como são a PSP e a GNR, não sejam identificados e isolados os que subvertem as regras da democracia. É uma enorme fraqueza dos seus comandantes. A não ser que lhes convenha. O tal vulcão, esse, não espera.

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