quarta-feira, 17 de maio de 2023

Português mais rico do mundo oculta grande parte da fortuna

 


INVESTIGAÇÃO

Português mais rico do mundo oculta grande parte da fortuna

 

Nas semanas que antecederam e sucederam a invasão da Ucrânia, Roman Abramovich escondeu bens numa estrutura “obscura” de offshores.

 

Paulo Curado

17 de Maio de 2023, 6:02

https://www.publico.pt/2023/05/17/sociedade/noticia/portugues-rico-mundo-oculta-parte-fortuna-2049857

 

Logo após a invasão russa da Ucrânia, a 24 de Fevereiro de 2022, e antes de ser sancionado pelo Governo britânico, a 10 de Março, com o congelamento de milhares de milhões de euros, Roman Abramovich ocultou 760 milhões de libras (874 milhões de euros) num complexo emaranhado de estruturas offshore. Abramovich é português desde 30 de Abril de 2021, ao abrigo da Lei da Nacionalidade, que concede a naturalização aos descendentes de judeus sefarditas que receberam ordem de expulsão de Portugal no final do século XV.

 

É o próprio Governo do Reino Unido a confirmar esta ocultação, numa circular do Ministério dos Negócios Estrangeiros, de 12 de Abril, onde é ainda referenciado um cidadão cipriota, Demetris Ioannides, que trabalhou com Abramovich durante as duas últimas décadas. As autoridades britânicas consideram que foi ele o “responsável pela criação das estruturas offshore obscuras” para o multimilionário russo, israelita e português esconder parte da sua vasta fortuna.

 

“Face às sanções internacionais sem precedentes impostas em resposta à invasão ilegal e em grande escala da Ucrânia por [Vladimir] Putin — com mais de 18 mil milhões de libras [20,7 mil milhões de euros] de activos russos e de outros países congelados só no Reino Unido —, os oligarcas têm-se esforçado por proteger a sua riqueza com a ajuda de intermediários financeiros, fundos fiduciários offshore, empresas de fachada e até mesmo recorrendo aos seus familiares”, revela a nota governamental, assinada pelo ministro dos Negócios Estrangeiros, James Cleverly.

 

“Os especialistas britânicos descobriram as suas redes financeiras, localizando os responsáveis pela facilitação da actividade e sancionando-os directamente com o congelamento de bens, proibições de viagem, sanções de transporte e sanções de serviços fiduciários”, prosseguiu o governante, confirmando que entre os sancionados está Demetris Ioannides, assim como outro contabilista, Christodoulos Vassiliades, neste caso envolvido com o oligarca russo Alisher Usmanov.

 

Usmanov é um dos homens mais ricos da Rússia, com uma fortuna estimada em 14,4 mil milhões de dólares (13,2 mil milhões de euros), pela revista norte-americana Forbes, especializada em negócios e economia. Já a riqueza de Roman Abramovich e da sua família situa-se nos 9,2 mil milhões de dólares (8,5 mil milhões de euros), segundo a mesma publicação, que tem os dados actualizados. Valores que fazem de Abramovich, de longe, o português mais rico do mundo.

 

Estamos a fechar a rede sobre a elite russa e sobre aqueles que tentam ajudá-la a esconder o seu dinheiro para a guerra. Não há lugar para se esconderem. Continuaremos a cortar-lhes o acesso a bens que pensavam estar escondidos com sucesso

James Cleverly, ministro dos Negócios Estrangeiros do Reino Unido

 

“Estamos a fechar a rede sobre a elite russa e sobre aqueles que tentam ajudá-la a esconder o seu dinheiro para a guerra”, concluiu James Cleverly: “Não há lugar para se esconderem. Continuaremos a cortar-lhes o acesso a bens que pensavam estar escondidos com sucesso.”

 

O contabilista

Demetris Ioannides, nascido em Limassol, a segunda maior cidade de Chipre, a 28 de Setembro de 1943, é um contabilista certificado que abriu a sua própria empresa, a MeritServus, em 1988, em parceria com a empresa de auditoria global Deloitte. Em 2005, a empresa tornou-se independente com a designação MeritServus HC Limited.

 

No site da empresa explica-se que “uma sociedade holding cipriota é a porta de entrada perfeita na UE [União Europeia]”. Nos anos seguintes, em conjunto com outros contabilistas, advogados e bancos em Chipre, Ioannides atraiu grandes fortunas, em particular russas.

 

No início de Abril, na sequência de mais um pacote de sanções financeiras contra a Rússia, como retaliação pela invasão da Ucrânia, o Governo britânico acrescentou também o nome de Ioannides e da sua empresa à lista de sancionados. O Ministério dos Negócios Estrangeiros acusa-o de ser “facilitador de oligarcas” que operam em Chipre, não escondendo as preocupações com o papel desta sua antiga colónia (independente desde 1960) como placa giratória da circulação do capital russo no passado e, eventualmente, no presente.

 

“Ficheiros dos oligarcas”

Esta medida foi tomada após o jornal britânico The Guardian ter divulgado os denominados “ficheiros dos oligarcas”, um conjunto de mais de 300 mil documentos dos arquivos da MeritServus e de empresas associadas. Esta vasta informação foi disponibilizada ao jornal por um denunciador anónimo.

 

Para o título de referência britânico, os documentos sugerem que, no ano passado, a empresa ajudou Abramovich a remodelar com urgência os fundos fiduciários que o oligarca utilizava para gerir a sua fortuna, eventualmente para evitar o congelamento de bens, na sequência do conflito ucraniano.

 

Apesar de efectivamente prestar aconselhamento fiscal e contabilístico, a parte substancial do trabalho da MeritServus e das suas filiadas envolveria a criação e gestão de sociedades offshore — empresas constituídas em países com benefícios tributários e com sigilo — e trusts — onde o património de um indivíduo é administrado por um titular formal para determinado fim específico, ocultado o seu verdadeiro beneficiário final. A MeritServus forneceria um rosto público de fachada como accionista e director, mas as sociedades seriam realmente detidas pelos seus clientes que permaneceriam na sombra.

 

Abramovich ou “Mr. Blue”

O seu maior cliente seria Abramovich, para quem os funcionários da MeritServus tinham um sugestivo nome de código: “Mr. Blue”, numa provável alusão ao clube de futebol londrino Chelsea, que foi propriedade do multimilionário até ao ano passado. Este nome surgia frequentemente em trocas de emails a que o The Guardian teve acesso.

 

A relação com o multimilionário era antiga e terá começado em 2001, no ano que foi criada a empresa Millhouse Capital, a sociedade que geria as participações da estrutura empresarial de Abramovich. A MeritServus ajudaria a movimentar os milhares de milhões do oligarca para as economias europeias, revela o jornal. Ioannides terá estado ainda envolvido na aquisição do Chelsea, em 2003.

 

Em resposta ao ponto “indicador de risco de cliente” num formulário, sem data, relacionado com uma empresa de Abramovich — a Anadoria Investments Limited —, a MeritServus garantiu que o seu cliente “nunca” tinha sido uma “pessoa politicamente exposta”, termo que avalia as ligações políticas que possam tornar alguém um risco elevado em relação a subornos e corrupção.

 

Isto apesar da grande proximidade entre o empresário e o Presidente russo, e de Abramovich ter sido governador do distrito autónomo russo de Chukotka, no extremo Leste da federação, entre 2000 e 2008, e ter sido deputado da Duma (Parlamento russo), eleito por essa região.

 

O mesmo documento refere ainda que a empresa de Abramovich não foi identificada em países com “níveis significativos de corrupção”.

 

O “aliado” Chipre

De acordo com estimativas recolhidas pelo The Guardian, o capital russo em instituições bancárias cipriotas representaria mais de mil milhões de euros em 2021. E, segundo o Banco Central do país, a Rússia é ainda o mais importante parceiro em termos de investimento interno e externo. Em 2013, o Governo do estado insular mediterrânico abriu um esquema de “passaportes dourados”, para vender a cidadania em troca de investimentos. Foram captados sete mil milhões de euros, grande parte proveniente de fortunas russas.

 

Um ano antes, em 2012, os fluxos de capitais russos para a ilha atingiram um pico de mais de 21 mil milhões de euros, de acordo com dados da agência de notação Moody’s, o que representaria um terço de todos os depósitos do país. Parte deste dinheiro pertenceria a Abramovich.

 

Em 2012, na sequência de uma grave crise do sistema financeiro cipriota, resultante do colapso da dívida nacional da Grécia, em finais de 2009 e inícios de 2010, a Rússia concedeu a Chipre um empréstimo de 2,5 mil milhões de euros, sem evitar o resgate económico do Fundo Europeu de Estabilidade Financeira.

 

Podemos questionar-nos sobre se Chipre foi totalmente corrompido pelo capital russo. O dinheiro russo está tão enraizado em Chipre, que muitos membros da elite [russa] adquiriram a cidadania cipriota

Timothy Ash, membro associado do grupo de reflexão Chatham House

“Podemos questionar-nos sobre se Chipre foi totalmente corrompido pelo capital russo. O dinheiro russo está tão enraizado em Chipre, que muitos membros da elite [russa] adquiriram a cidadania cipriota”, diz Timothy Ash, membro associado do grupo de reflexão Chatham House, sediado em Londres, citado pelo The Guardian.

 

A via suíça

Os bens de Abramovich estão ainda estão sob escrutínio na Suíça. Aqui, o caso envolve também o banco Credit Suisse — recentemente comprado pelo banco UBS —, que tinha entre os seus maiores accionistas a Arábia Saudita e o Qatar. De acordo com documentos (provenientes de duas fugas de informação) obtidos pelo consórcio de jornalistas de investigação do Organized Crime and Corruption Reporting Project (OCCRP), esta instituição bancária, que está a atravessar uma grave crise financeira e lutou pela sobrevivência, emprestou centenas de milhões de euros às empresas offshore de Abramovich.

 

Por sua vez, estas sociedades, que tinham propriedade secreta, emprestaram somas avultadas umas às outras, que foram depois misteriosamente devolvidas ou anuladas. Especialistas disseram ao OCCRP, em Janeiro deste ano, que estes movimentos poderiam ter objectivos legítimos, mas que também poderiam indiciar um esquema para ocultar a origem dos fundos e para branquear capitais.

 

“Os empréstimos sem qualquer justificação real podem ser uma forma eficaz de branquear fundos ilícitos através de redes complexas de empresas. Se esses empréstimos forem rapidamente reembolsados ou utilizados para transacções repetidas, como é sugerido aqui, devem ser colocadas sérias questões sobre a sua legitimidade”, disse à OCCRP Kush Amin, advogado da Transparência Internacional, uma organização sem fins lucrativos anticorrupção, com sede em Berlim.

 

Os documentos do Credit Suisse e da prestadora de serviços cipriota MeritServus revelam que o oligarca russo detinha mais de 2000 milhões de euros em activos ou dinheiro no Credit Suisse, no também suíço UBS e no britânico Barclays. No Credit Suisse, o multimilionário detinha activos de mais de 1,4 mil milhões de euros, através das empresas offshore, mantidas até há pouco tempo em segredo.

 

Ainda segundo o OCCRP, as sociedades offshore de Abramovich detinham acções de primeira linha de empresas americanas, que utilizariam como garantia para grandes empréstimos no Credit Suisse. O empresário controlava, nomeadamente, participações de quase 500 milhões de dólares (460 milhões de euros) em duas das maiores empresas siderúrgicas americanas, a United States Steel Corporation e a Steel Dynamics, Inc. Estas participações serviram de garantia para um empréstimo de 300 milhões de dólares (276 milhões de euros) concedido pelo banco helvético.

 

Abramovich possuía ainda acções de outras grandes empresas norte-americanas, como a Uber, a Microsoft ou a Amazon. Detinha também acções do UBS e do próprio Credit Suisse.

 

“Estar nas listas [de sanções] do Reino Unido e da União Europeia provavelmente dificulta significativamente o seu [Abramovich] acesso ao sistema financeiro dos EUA”, defendeu ao OCCRP Justyna Gudzowska, do grupo de defesa anticorrupção The Sentry, sediado nos EUA: “Os bancos americanos geralmente seguem as sanções do Reino Unido e da UE como uma questão de política, se não como uma questão de lei.”

 

Para já, o oligarca, visita frequente dos EUA antes da invasão da Ucrânia, tem escapado às sanções do Departamento do Tesouro, que o colocou na denominada “Lista do Kremlin”, divulgada em 2018, onde foram incluídos os oligarcas e políticos russos com um papel significativo na economia do país e alegadamente ligados ao poder em Moscovo.

 

No início deste ano, o The Guardian — através de documentos internos provenientes do Credit Suisse (obtidos pela start-up alemã Paper Trail Media); e de uma outra fuga de dados da MeritServus (divulgada inicialmente pelo site de denúncias Distributed Denial of Secrets) — revelou como Abramovich transferiu um fundo trust para o nome de dois dos seus filhos, semanas antes da invasão da Ucrânia.

 

Os bancos americanos geralmente seguem as sanções do Reino Unido e da UE como uma questão de política, se não como uma questão de lei

Justyna Gudzowska, do grupo de defesa anticorrupção The Sentry, sediado nos EUA

Em resposta às questões colocadas pelo OCCRP, o Credit Suisse recusou comentar “potenciais relações com clientes”, garantindo que opera “em estrita conformidade com todas as leis, regras e regulamentos aplicáveis” e que tem “mecanismos de controlo rigorosos” para evitar crimes financeiros e o cumprimento das sanções impostas.

 

Já Roman Abramovich e os seus representantes não responderam a nenhum pedido de comentário do OCCRP e do The Guardian.

 

Parceria com o Kremlin

Um mês antes desta investigação, em Dezembro do ano passado, a organização de jornalistas independentes revelara também que o oligarca tinha uma parceria secreta com o Kremlin numa grande empresa florestal na Rússia.

 

Tratava-se da Russia Forest Products, onde tinha investido 230 milhões de dólares (211,5 milhões de euros) entre 2008 e 2016, tendo o Governo russo entrado no capital da empresa em 2013, através de uma subsidiária de uma sociedade detida pelo fundo soberano do país.

 

Esta sociedade foi conhecida após mais uma fuga de documentos, que revelaram uma estrutura empresarial complexa que pretenderia ocultar estes laços financeiros, sempre negados. O empresário e o Estado russo alienaram as respectivas participações na sociedade em Janeiro de 2022, um mês antes da entrada das tropas russas em território ucraniano.

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