PERFIL
Mariana Mortágua impôs-se “sem pedir licença a ninguém”
“Serena” ou “sociável”, para uns, “radical” ou
“reservada”, para outros. Ao que tudo indica, Mariana Mortágua será eleita
coordenadora do Bloco de Esquerda no próximo fim-de-semana.
Ana Bacelar
Begonha
21 de Maio de
2023, 6:30
Foi assim que
chegou às bocas do mundo, mas nem só de política e economia se faz a vida de
Mariana Mortágua, mesmo que, para isso, tenha de organizar a agenda ao
milímetro. Gosta de cerveja e até já se aventurou a fazer cerveja artesanal,
tem jeito para cozinhar (sobretudo sobremesas), é mestre a compor palavras de
ordem ou cânticos nas manifestações. Depois dos plenários, das comissões ou das
reuniões de direcção do Bloco de Esquerda (BE), faz boxe, tanto quanto
possível, não deixa de sair com os amigos e lê muito. Em pequena, marcaram-na
livros como a saga Harry Potter de J. K. Rowling, ou o O Velho e o Mar, de
Ernest Hemingway — hoje tem nas estantes, por exemplo, Ryszard Kapuściński ou
Leonardo Padura.
Já foi
classificada como “deputada-estrela”, é reconhecida enquanto economista e até a
apontaram como futura ministra das Finanças. Independentemente do que possa
reservar o futuro, o próximo passo é conhecido: Mariana Mortágua vai ser, sem
grande margem para dúvidas, eleita coordenadora do BE no próximo fim-de-semana.
É feito
relativamente inédito em Portugal — e até na Europa — que uma mulher jovem (faz
37 anos para o mês que vem) e lésbica assuma a liderança de um partido, para
mais sucedendo a outra mulher.
Não era, contudo,
difícil de adivinhar que este viesse a ser o desfecho do percurso da bloquista,
tendo em conta a rápida ascensão dentro do partido e a popularidade que começou
a granjear há dez anos, quando se tornou deputada e desarmou os devedores da
banca nas comissões parlamentares de inquérito. Tornou-se numa das figuras de
maior destaque dentro do BE e até na política portuguesa.
Em Alvito, de
onde é natural, porém, Mortágua continua a ser Mariana. A filha do Camilo e da
Inês, que as pessoas da vila se recordam de ver brincar em pequena nas
escadinhas da câmara municipal ou no coreto da Praça da República. E que,
agora, quando regressa à terra natal, pelo menos uma vez por mês, continuam a
encontrar. Assim que chega, vai logo falar aos “velhotes da praça”, é presença
habitual nas festas da vila e o café do senhor Américo é paragem obrigatória.
Chega a passar uma tarde inteira no café a pôr a conversa em dia ou a trabalhar
no computador. Fez, aliás, parte da tese do doutoramento ali.
Com pouco mais de
mil habitantes, Alvito desenha-se entre Viana do Alentejo e Cuba. Embora os
pais não fossem naturais dessa freguesia de Beja, foi lá que Mariana Mortágua
cresceu, numa pequena quinta fora do centro da vila, e estudou, numa
cooperativa de ensino.
Não é uma terra
da qual não tenham saído outros nomes conhecidos, mas poucos com a notoriedade
de Mariana, como reconhecem duas das suas antigas professoras, que nunca
tiveram dúvidas de que um dia a aluna iria enveredar pela política.
Era “muito
participativa” e “argumentativa”, inteligente”, “assertiva”, tinha um “grande
espírito crítico” e “reivindicativo”, gostava de debater ideias e colocar
problemas, estava atenta às “questões sociais”, resumem Salomé Pires e Cláudia
Marques, que lhe deram aulas de Português e História no ensino básico.
A Português,
“escrevia com muita sensibilidade” e lia livros para lá do programa, a
História, interessava-se por “tudo o que tivesse a ver com as guerras e as
crises económicas”. Embora hoje seja uma pessoa organizada e metódica, Mariana
não era de ter os cadernos organizados. O que estava organizado eram as “ideias
na cabeça dela”, “ideias revolucionárias” e “criativas” que tentava pôr em
prática na turma, como sugerir que todas as semanas os alunos debatessem textos
de jornais ou crónicas. Chegava ao ponto de as professoras terem de a
“controlar”, para não ser sempre ela a intervir, brinca Cláudia.
A capacidade de
liderança também parecia já lá estar. “A Mariana tinha muita capacidade de
chamar a atenção da plateia; de as ideias dela serem convincentes e conseguir
levar atrás o grupo dos colegas”, afirma Salomé, recordando que os colegas
“sentiam admiração e respeitavam-na”.
Além de “muito
solidária”, “não se comportava de forma diferente e isso faz diferença na
aceitação dos outros”, completa a professora de História. Mas era “diferente”:
tinha “uma cultura mais à frente” e uma “visão mais aberta, muito para além da
vila”, explicam as professoras, que se lembram de como Mariana chegava às aulas
já com uma “opinião formada” sobre a maioria dos assuntos.
Nos tempos
livres, envolvia-se em todas as actividades que conseguia: o grupo de teatro,
da rádio ou de badminton. Gostava de fazer longas caminhadas até aos moinhos ou
à Ermida de Santa Luzia, que, embora degradada, se mantém de pé junto à estrada
que segue até Viana do Alentejo.
Com o passar dos
anos, não perdeu a ligação a Alvito, que admite ter contribuído para a sua
forma de fazer política. “Crescer em Alvito deu-me uma ideia diferente do país,
de outras realidades, do que as pessoas pensam, sentem e sofrem noutros sítios
com muito menos recursos e acessibilidades. E deu-me uma proximidade às
pessoas”, diz ao PÚBLICO.
Ao contrário do
que se poderia esperar da “combativa” deputada, é descrita pelos amigos de
infância como alguém que “mantinha a serenidade” e servia de moderadora. “Não
se metia em brigas e tentava sempre apaziguar as coisas”, conta Vânia Tapisso,
amiga de infância de Mariana, com quem mantém o contacto.
Era “reservada”,
mas isso nunca a impediu de fazer amigos. Das brincadeiras de infância, Vânia
recorda como Mariana, mais “maria-rapaz” do que as outras raparigas, subia às
árvores para distribuir nêsperas pelos amigos. Mas também das noitadas em casa
dos Mortáguas, em que dançavam até de manhã. “Os pais eram muito liberais, não
eram como os outros”, diz.
A filha da
revolução
“A liberdade é
total e a responsabilidade é total”, assim resumia a educação das filhas o
próprio Camilo Mortágua, em entrevista ao PÚBLICO em 2015. A mãe é assistente
social e fez parte do MRPP, o pai um conhecido antifascista que fundou a Liga
de Unidade e Acção Revolucionária (LUAR) e participou no assalto ao paquete
Santa Maria, no desvio de um avião da TAP ou no assalto à dependência do Banco
de Portugal na Figueira da Foz.
Conheceram-se
durante a ocupação da Herdade da Torre Bela, em 1975, mas só 11 anos mais tarde
teriam as gémeas Mariana e Joana (também deputada do BE), quando assentaram no
Alentejo.
Foi no seio
familiar que a consciência política de ambas despontou. Mas também com a
associação Acção para a Justiça e Paz, uma ONG sediada em Coimbra e focada nas
questões feministas, que um dia passou pelo Alvito, era Mariana ainda
adolescente.
Teresa Cunha,
ex-presidente da associação, organizou várias actividades no Alentejo, entre as
quais tertúlias com Camilo Mortágua, Alípio de Freitas ou José Fanha em que
conversavam “sobre o país e o mundo”. E foi aí, entre essas figuras do
antifascismo, que encontrou as irmãs.
O interesse pela
política vem do “historial familiar, com todo aquele ambiente que se vivia em
Alvito”. “A Mariana sempre foi uma miúda que gostou da companhia das pessoas
mais velhas e de ouvir. Ela ouvia muito. Tudo isso fazia já sentido na cabeça
dela”, conta Teresa Cunha.
Mas foi a
associação que lhe “trouxe a oportunidade de pôr em prática essas coisas”,
nomeadamente, o “interesse pelas perspectivas feministas”. Ainda em jovem,
Mariana veio a fazer parte da direcção e juntou-se a causas como a marcha
internacional das mulheres, a descriminalização do aborto, o Fórum Mundial
Social ou as campanhas pela paz no Iraque.
Em miúda, era de
“primeiro ouvir, fazer os seus próprios raciocínios, reflectir, tomar a sua
posição e depois então falar. Sempre foi ponderada”, lembra Teresa. “Hoje em
dia não tem papas na língua”, graceja. Mas continua a ser “capaz de estar
impávida e serena a ouvir barbaridades para depois intervir”.
Outro aspecto que
ainda lhe parece assentar — ou não se tivesse tornado imagem de marca de Mariana
vestir-se informalmente —, é o facto de nunca ter sido “vaidosa”. “Era uma
miúda que não dava — e ainda hoje não dá — importância a roupas. É muito
simples. Estava claramente interessada noutras coisas desde muito jovem”, diz.
Ou então ser
“extremamente trabalhadora”, descrição recorrente quando se fala de Mariana
Mortágua, não só devido ao trabalho no Parlamento, mas também como
investigadora.
A “marrona” que
chegou a economista
Depois de ter
feito a escola primária e básica em Alvito, Mortágua foi para Beja tirar o
secundário na área da Economia, um caminho que não deixou desde então. Fez
tanto a licenciatura como o mestrado em Economia no Iscte, em Lisboa, em 2008 e
2011. E também o doutoramento na School of Oriental and African Studies, em
Londres, que acabou em 2019, à distância. No ano passado, ainda juntou ao
currículo uma pós-graduação em Gestão Fiscal Avançada no ISEG.
É investigadora
integrada e professora convidada no Iscte, onde dá aulas de Economia Política
da Financeirização ao nível do mestrado e, antes disso, foi também professora
no ISCAL. Tem cinco livros assinados, um deles em nome próprio, e escreveu
outros tantos capítulos e artigos científicos, inclusive em co-autoria com
camaradas bloquistas, Francisco Louçã, José Manuel Pureza e Jorge Costa.
Actualmente, está debruçada sobre a união bancária e a teoria e ontologia da
moeda e das criptomoedas.
“Em linguagem
antiga, eu diria que a Mariana é marrona, agarra-se aos livros, trabalha e leva
isso muito a sério. Gosta dos números e da matemática”. O perfil foi traçado
pelo pai e mantém-se actual.
Também o
orientador da tese de mestrado de Mortágua, Ricardo Paes Mamede, destaca a
“enorme capacidade de trabalho, fora do comum”, que encontrou em Mariana
durante esse tempo. E de que é prova o facto “impressionante” de ter conseguido
publicar em revistas científicas internacionais ao mesmo tempo que era
deputada.
Embora admita que
seja “exigente” enquanto orientador, com a Mariana não teve de “fazer um
esforço excessivo”. “É capaz de organizar bem o trabalho e de levar os assuntos
a fundo. Domina muito bem os temas da economia e da financeirização da
política, conhece bem a literatura e exemplos práticos”, aponta o economista e
colunista do PÚBLICO.
Mais tarde,
cruzaram-se também como colegas no Iscte, onde a cadeira de Mariana tem tido um
“grande sucesso de procura”. Além do feedback “positivo” dos alunos, tem “boas
classificações” enquanto docente.
Agora, a
“prioridade” de Mortágua é a coordenação do Bloco, desafio que a própria diz
assumir com “muita alegria e entusiasmo”. Mas quer manter um pé na investigação
e na docência. “A minha vida é isto. É um equilíbrio em que umas vezes vou mais
para a academia e passo menos tempo na política parlamentar” e vice-versa, afirma.
Dos movimentos
sociais ao Bloco
Não estava nos
planos de Mariana Mortágua enveredar por um percurso político-partidário, ao
contrário de uma carreira na investigação, que planeava seguir. “Nunca me
passou pela cabeça”, confessa. Mas, puxada pela irmã e pelas pessoas do BE que
conheceu nos movimentos sociais de que fazia parte, feministas, anti-racistas
ou pela paz, acabou por se juntar ao Bloco em 2009.
A bloquista
admite que na altura tinha alguma desconfiança sobre a relação dos partidos com
os activismos, mas esses encontros serviram para “desconstruir alguns mitos”.
No Bloco, deu de caras com uma organização em que as pessoas pensavam como ela
e um espaço onde pôde “desenvolver” aquilo em que acreditava. Nomeadamente
sobre a crise económica, que foi outro elemento de politização para Mortágua.
Já escrevia sobre a crise, trabalhava com organizações internacionais, dava
conferências fora de Portugal. E o Bloco permitiu-lhe “juntar muito bem o papel
de economista heterodoxa com a actividade política”, explica.
Após um breve
período a seguir à licenciatura em que trabalhou como consultora de sistemas
informáticos para “pagar as contas”, tornou-se assessora de economia e finanças
no grupo parlamentar do BE.
Quatro anos
depois de se filiar, já era deputada municipal em Lisboa e na Assembleia da
República, aonde chegou em substituição de Ana Drago, pelo círculo de Lisboa,
tornando-se na mais jovem deputada daquela legislatura, com 27 anos, o que a
obrigou a regressar de Londres.
Mas a escolha de
Mariana Mortágua, que saltou à frente de nove candidatos da lista da capital
devido ao seu perfil técnico, não foi isenta de contestação por parte dos
militantes do partido — 100 filiados enviaram uma carta aos órgãos do BE a
questionar a escolha.
Ao PÚBLICO,
Francisco Louçã admite que foi uma “decisão ousada” de João Semedo e Catarina
Martins, na altura ambos coordenadores do BE, com base na “competência” de
Mortágua. Mas compensou. “Valorizaram o que a Mariana podia ser e acertaram em
cheio.”
O ex-líder do
partido e também economista conheceu primeiro Joana, que se filiou no BE cinco
anos antes, em 2004. Confessa que ao início era difícil distinguir as irmãs
gémeas e que até deve ter trocado uma com a outra em algumas situações. Isso
mudou rapidamente: em 2012, ano em que Louçã deixou a coordenação do partido,
já tinham assinado um livro juntos, a A Dívidadura. Embora não tenham tido
“contacto político” — não se cruzaram na Assembleia nem na direcção do partido
—, a parceria entre os dois não ficaria por aí. Em 2021, escreveram um novo
livro, o Manual de Economia Política.
O capítulo que,
aos 26 anos, Mortágua escreveu para o livro A Europa à Beira do Abismo com o
Nobel da Economia Joseph Stiglitz chamou-lhe “a atenção”, mas as suas
intervenções na Assembleia da República e, em particular, nas comissões de
inquérito, que Louçã acompanhou à distância, não ficaram atrás.
Além de “muito
sistemática, tem uma capacidade de trabalho notável”, nota o fundador do BE,
sem deixar de mencionar que Mariana é também “muito alegre, muito sociável”.
Embora Francisco
Louçã seja apontado como a figura que a catapultou, rejeita que a bloquista
seja uma “cópia” sua e acredita que essas comparações apenas são feitas por ser
mulher. Não só garante que a deputada é “totalmente independente”, mas assegura
até que ela tem “mais conhecimento sobre a estrutura bancária”.
A própria
Mariana, que não entrou no Bloco por intermédio de uma das tendências internas,
ressalva que, além de Louçã, houve outras figuras que a influenciaram no
partido. Os fundadores Miguel Portas — do qual foi mais próxima inicialmente
(assim como do Política XXI, facção socialista democrática do BE) — e Luís
Fazenda foram “muito importantes” quando entrou no Bloco; e "aprendeu
muito” com Helena Pinto, Cecília Honório e João Semedo quando chegou ao
Parlamento.
A
“deputada-estrela” ou “radical”
Foi na Assembleia
da República, onde assumiu a dianteira das finanças e da economia durante a
crise, que ganhou a visibilidade que a levou a ser descrita como uma “estrela”
pela Bloomberg, em 2016. Ganhou cedo atenção mediática pelas intervenções
contra a política de austeridade do Governo PSD/CDS, pela rejeição do tratado
orçamental ou a reestruturação da dívida. Mas foi sobretudo na comissão de
inquérito ao BES/GES, em que se destacou pelo estilo e a preparação técnica,
que se tornou popular.
“Não deixa de ser
bastante curioso que o ‘dono disto tudo’ nos tenha aparecido aqui hoje como a
vítima disto tudo”, disse a Ricardo Salgado. “É um bocadinho amadorismo para
quem ganhou tantos prémios de melhor CEO do ano, de melhor CEO da Europa e
arredores, não é?...”, perguntou a Zeinal Bava. As frases correram as redes
sociais.
Depois,
consolidou essa popularidade quando enfrentou Carlos Costa e Vítor Constâncio,
a propósito do Banco de Portugal; Joe Berardo, no inquérito à gestão da Caixa
Geral de Depósitos; ou Luís Filipe Vieira e Moniz da Maia, sobre o Novo Banco.
A Mariana é uma
mulher jovem que se impôs num cenário político que ainda hoje é masculino,
tendencialmente envelhecido, sem pedir licença a ninguém. O que contribuiu para
a notoriedade é as pessoas perceberem o que ela diz, ser frontal, directa”,
resume Fabian Figueiredo, dirigente do BE e amigo de Mortágua, acrescentando
que a bloquista “consegue tratar temas complexos com bastante clarividência e
comunicá-los de forma eficaz”.
Também o
ex-deputado e dirigente do BE Jorge Costa destaca a comissão de inquérito ao
BES como o momento fulcral para a notoriedade de Mariana, porque foi capaz de
“interpretar” e “expor”, de forma “muito potente”, a falência dos “grandes
mitos” da elite bancária e empresarial, bem como de “protagonizar a
perplexidade e a zanga da sociedade” perante essa “fraude e incompetência”.
Serão poucos,
mesmo entre os adversários, os que não lhe reconhecem competência. Ou não
tivesse o próprio ex-presidente do BES, Ricardo Salgado, elogiado a deputada
por “estudar bem os assuntos” e ter “qualidades de analista importantes e
objectivas”.
Mortágua não se
alonga muito sobre as consequências que essa visibilidade teve na sua vida:
“Faz parte do ofício.” Mas admite que tem de estar num “permanente estado de
defesa” porque “o ataque é muito banalizado”.
Apesar disso, não
se arrepende do caminho que escolheu. Além de permitir “resolver problemas” que
“podem mudar a vida das pessoas” e de o Parlamento ser, “por natureza, o espaço
do combate político”, aquilo que a chamou à vida parlamentar foi o facto de ser
“muito versátil”. “Para quem está interessado e quer estudar sobre os assuntos,
[ser deputada] dá um alcance de conhecimento sobre determinados temas que é
muito difícil ter de outra forma, e isso é muito aliciante”, afirma.
Um dos momentos
que destaca desse trabalho é a “ligação aos lesados do BES”. “Conhecer aquelas
histórias foi um factor de muita emotividade até.” Mas também o facto de ter
“negociado” e “imposto” medidas com o PS durante a “geringonça”, entre 2015 e
2019, e depois, entre 2019 e 2021.
Foi uma das
principais interlocutoras do Bloco durante esses tempos — assim como depois deu
a cara pelo chumbo do Orçamento do Estado de 2022 — e várias medidas tiveram o
seu cunho, a mais famosa das quais foi o imposto adicional ao IMI, que ficou
conhecido como o “imposto Mortágua”. Além das finanças, a habitação é outra das
áreas em que tomou a dianteira.
Não deixou de
fazer adversários e de ser alvo de críticas, particularmente à direita, por ser
considerada “radical”, seja devido às posições que defende ou à postura — o que
se acentuou com o aparecimento da Iniciativa Liberal e do Chega. Mas mesmo no
seio do PS (pelo menos, dos socialistas mais à direita). Foi precisamente por
causa do AIMI que causou atrito na rentrée dos socialistas de 2016, em Coimbra,
em que anunciou a medida e defendeu: “A primeira coisa que temos de fazer é
perder a vergonha de ir buscar dinheiro a quem está a acumular dinheiro”.
Jorge Costa, para
quem o perfil de Mariana se definiu também no confronto com a “lógica de Mário
Centeno das contenções orçamentais e dos brilharetes do défice” ou com o Chega,
considera que foi esse imposto, assim como “ter confrontado os donos de
Portugal”, que levaram a passar essa imagem de Mariana. Mas rejeita que seja
mais radical do que os anteriores líderes.
Era uma miúda que não dava — e ainda hoje não dá — importância
a roupas. É muito simples. Estava claramente interessada noutras coisas desde
muito jovem
Teresa Cunha
Os dirigentes do
BE garantem que esta é uma candidatura de continuidade, assente no socialismo,
e os próprios opositores internos reivindicam para si a polarização do partido.
Mesmo fora do Bloco e do outro lado do hemiciclo, há quem desvalorize as
críticas de radicalização.
Fernando Negrão,
deputado do PSD e ex-vice-presidente da Assembleia da República, contrapõe
esses perigos com o “bom senso” da bloquista. Para o também ex-presidente das
comissões de inquérito, a futura líder “terá capacidade de tranquilidade”, o
que, nota, advém do facto de “acreditar profundamente nas ideias que defende”.
Os elogios vão
mais longe. Aponta-lhe uma “grande capacidade de trabalho” e acredita que
Mortágua tem “um grande feeling político” e um “bom sentido de oportunidade”.
Já Cecília
Meireles, ex-deputada do CDS que partilhou com Mortágua o palco nas comissões
de inquérito e com quem partilha o programa da SIC Notícias Linhas Vermelhas,
assume que o “Bloco defende ideias radicais” e é um “partido de
extrema-esquerda”, sendo Mariana “uma das principais caras” dessas ideias.
Mas apelida a
bloquista de “inteligente” e “exigente”, garantindo que lhe tem “respeito e
admiração”. “Foi sempre possível ter debates com elevação" e nas comissões
de inquérito foi “fácil” trabalharem lado a lado. “Era visível que quase
continuávamos os questionários uma da outra”, diz.
Por sua vez,
Alexandra Leitão, deputada do PS e ex-ministra, admite que Mortágua pode ser
“inflexível” ou ter “teimosia”. Ainda assim, acredita que terá “todas as
condições para ser uma boa líder”, essencialmente por possuir três
características: “coragem”, “inteligência” e “verticalidade”. “Tem assertividade
e empenho no que faz e uma grande coerência ideológica”, afirma.
Na década que
acumula como deputada, não se livrou de polémicas, como um processo por ter
acumulado o subsídio de exclusividade enquanto deputada com o comentário
político na SIC Notícias. Mariana Mortágua alegou “desconhecimento” sobre uma
alteração de 2020 ao estatuto dos deputados que tornou incompatível o regime de
exclusividade com a actividade paga num programa televisivo. Devolveu o
montante recebido, alterou a declaração de interesses e passou a integrar o
programa de forma pro bono. Foi ainda alvo de um processo por difamação ao CEO
da Global Media, Marco Galinha, que acusou de ter ligações à oligarquia russa.
Ambos os processos foram arquivados.
Recentemente, a
esse respeito, classificou os casos como “perseguição política” por parte de
adversários como o Chega, por ser “mulher, de esquerda, lésbica e filha de um
resistente antifascista". Mais: “Ou porque tenho o dom de incomodar
pessoas com muito poder.”
Mariana Mortágua,
que quando a ex-ministra Graça Fonseca se assumiu como lésbica considerou o
“acto corajoso e importante politicamente”, reitera agora que ter dito
publicamente que é homossexual tem um “significado político”. “Quem diz que não
se deve dizer porque é do foro pessoal é prova de que é uma questão política”,
afirma.
Das bases à
liderança
Internamente, foi
activa nos Jovens do Bloco e envolveu-se na concelhia de Lisboa. Entrou para os
órgãos nacionais pela altura em que se tornou deputada — a mesa, a comissão
política e o secretariado —, coordena a distrital da capital e é
vice-presidente do grupo parlamentar. Os ingredientes estavam todos lá para
assumir a coordenação do partido.
Como militante e
dirigente, Adriano Campos, membro do secretariado e amigo de Mariana,
descreve-a, em primeiro lugar, como alguém “sempre disponível” e “extremamente
solidária”. “A Mariana faz o que a Catarina já fazia. Depois de um dia inteiro
no Parlamento, termina a noite com uma reunião de organização e ainda é capaz
de ter conversas, fazer contactos”, conta.
Depois, tem
outras duas características: é uma “desbloqueadora” capaz de “gerar consensos”
e “aproximar posições” quando estas parecem extremar-se e é “muito exigente”, o
que, se, por um lado, pode ser lido como “teimosia”, por outro, obriga o
partido a “inovar tarefas”.
“A Mariana
conhece muito bem o BE — as estruturas de base e intermédias e de direcção —, e
conhece muito bem o país. Acumula muita experiência militante com conhecimento
de causa”, acrescenta Fabian Figueiredo, lembrando que a candidata a líder já
correu o país em campanha.
É também por essa
razão que os bloquistas rejeitam que Mortágua possa ter dificuldade nas ruas,
embora se tenham levantado dúvidas sobre a sua capacidade de empatia,
comparativamente a Catarina Martins, que nunca teve problemas nesse campo. Os
dirigentes garantem que Mariana “conhece a rua”, é “afectuosa com as pessoas” e
entende “a necessidade de construção de pontes”, não existindo “muita gente que
consiga reunir esta ambivalência”.
“Há uma grande
simpatia e ela tem facilidade de diálogo com as pessoas. As pessoas abordam-na,
agradecem a combatividade, dizem para ela não desistir”, conta Fabian.
Entre os que a
recebem de forma “mais entusiástica”, diz Jorge Costa, estão os jovens, uma das
camadas da população que Mariana conseguiu captar ao longo dos anos, por ser,
também ela, jovem quando entrou na política e porque protagonizou alguns
movimentos das gerações mais novas, como os feministas ou os ambientalistas.
“Os jovens vêem nela uma espécie de expressão da juventude na política.”
Aliando o perfil
mais técnico ao perfil nas ruas, os bloquistas esperam que Mariana — que tem o
apoio da maioria dos militantes, da cúpula do partido e da actual coordenadora
—, possa afirmar o BE no combate à maioria absoluta depois da série de maus
resultados eleitorais que tiveram, particularmente os das últimas legislativas
(os piores dos últimos 20 anos).
Em 2015, foi
apontada como uma das chaves para o bom resultado do BE na Madeira e é
precisamente aí que Mariana irá, assim que for eleita. Depois, vai
correr o país.
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