segunda-feira, 29 de maio de 2023

21 de Maio de 2023: Mariana Mortágua impôs-se “sem pedir licença a ninguém”

 



PERFIL

Mariana Mortágua impôs-se “sem pedir licença a ninguém”

 

“Serena” ou “sociável”, para uns, “radical” ou “reservada”, para outros. Ao que tudo indica, Mariana Mortágua será eleita coordenadora do Bloco de Esquerda no próximo fim-de-semana.

 

Ana Bacelar Begonha

21 de Maio de 2023, 6:30

https://www.publico.pt/2023/05/21/politica/perfil/mariana-mortagua-imposse-pedir-licenca-ninguem-2049839

 

Foi assim que chegou às bocas do mundo, mas nem só de política e economia se faz a vida de Mariana Mortágua, mesmo que, para isso, tenha de organizar a agenda ao milímetro. Gosta de cerveja e até já se aventurou a fazer cerveja artesanal, tem jeito para cozinhar (sobretudo sobremesas), é mestre a compor palavras de ordem ou cânticos nas manifestações. Depois dos plenários, das comissões ou das reuniões de direcção do Bloco de Esquerda (BE), faz boxe, tanto quanto possível, não deixa de sair com os amigos e lê muito. Em pequena, marcaram-na livros como a saga Harry Potter de J. K. Rowling, ou o O Velho e o Mar, de Ernest Hemingway — ​hoje tem nas estantes, por exemplo, Ryszard Kapuściński ou Leonardo Padura.

 

Já foi classificada como “deputada-estrela”, é reconhecida enquanto economista e até a apontaram como futura ministra das Finanças. Independentemente do que possa reservar o futuro, o próximo passo é conhecido: Mariana Mortágua vai ser, sem grande margem para dúvidas, eleita coordenadora do BE no próximo fim-de-semana.

 

É feito relativamente inédito em Portugal — e até na Europa — que uma mulher jovem (faz 37 anos para o mês que vem) e lésbica assuma a liderança de um partido, para mais sucedendo a outra mulher.

 

Não era, contudo, difícil de adivinhar que este viesse a ser o desfecho do percurso da bloquista, tendo em conta a rápida ascensão dentro do partido e a popularidade que começou a granjear há dez anos, quando se tornou deputada e desarmou os devedores da banca nas comissões parlamentares de inquérito. Tornou-se numa das figuras de maior destaque dentro do BE e até na política portuguesa.

 

Em Alvito, de onde é natural, porém, Mortágua continua a ser Mariana. A filha do Camilo e da Inês, que as pessoas da vila se recordam de ver brincar em pequena nas escadinhas da câmara municipal ou no coreto da Praça da República. E que, agora, quando regressa à terra natal, pelo menos uma vez por mês, continuam a encontrar. Assim que chega, vai logo falar aos “velhotes da praça”, é presença habitual nas festas da vila e o café do senhor Américo é paragem obrigatória. Chega a passar uma tarde inteira no café a pôr a conversa em dia ou a trabalhar no computador. Fez, aliás, parte da tese do doutoramento ali.

 

Com pouco mais de mil habitantes, Alvito desenha-se entre Viana do Alentejo e Cuba. Embora os pais não fossem naturais dessa freguesia de Beja, foi lá que Mariana Mortágua cresceu, numa pequena quinta fora do centro da vila, e estudou, numa cooperativa de ensino.

 

Não é uma terra da qual não tenham saído outros nomes conhecidos, mas poucos com a notoriedade de Mariana, como reconhecem duas das suas antigas professoras, que nunca tiveram dúvidas de que um dia a aluna iria enveredar pela política.

 

Era “muito participativa” e “argumentativa”, inteligente”, “assertiva”, tinha um “grande espírito crítico” e “reivindicativo”, gostava de debater ideias e colocar problemas, estava atenta às “questões sociais”, resumem Salomé Pires e Cláudia Marques, que lhe deram aulas de Português e História no ensino básico.

 

A Português, “escrevia com muita sensibilidade” e lia livros para lá do programa, a História, interessava-se por “tudo o que tivesse a ver com as guerras e as crises económicas”. Embora hoje seja uma pessoa organizada e metódica, Mariana não era de ter os cadernos organizados. O que estava organizado eram as “ideias na cabeça dela”, “ideias revolucionárias” e “criativas” que tentava pôr em prática na turma, como sugerir que todas as semanas os alunos debatessem textos de jornais ou crónicas. Chegava ao ponto de as professoras terem de a “controlar”, para não ser sempre ela a intervir, brinca Cláudia.

 

A capacidade de liderança também parecia já lá estar. “A Mariana tinha muita capacidade de chamar a atenção da plateia; de as ideias dela serem convincentes e conseguir levar atrás o grupo dos colegas”, afirma Salomé, recordando que os colegas “sentiam admiração e respeitavam-na”.

 

Além de “muito solidária”, “não se comportava de forma diferente e isso faz diferença na aceitação dos outros”, completa a professora de História. Mas era “diferente”: tinha “uma cultura mais à frente” e uma “visão mais aberta, muito para além da vila”, explicam as professoras, que se lembram de como Mariana chegava às aulas já com uma “opinião formada” sobre a maioria dos assuntos.

 

Nos tempos livres, envolvia-se em todas as actividades que conseguia: o grupo de teatro, da rádio ou de badminton. Gostava de fazer longas caminhadas até aos moinhos ou à Ermida de Santa Luzia, que, embora degradada, se mantém de pé junto à estrada que segue até Viana do Alentejo.

 

Com o passar dos anos, não perdeu a ligação a Alvito, que admite ter contribuído para a sua forma de fazer política. “Crescer em Alvito deu-me uma ideia diferente do país, de outras realidades, do que as pessoas pensam, sentem e sofrem noutros sítios com muito menos recursos e acessibilidades. E deu-me uma proximidade às pessoas”, diz ao PÚBLICO.

 

Ao contrário do que se poderia esperar da “combativa” deputada, é descrita pelos amigos de infância como alguém que “mantinha a serenidade” e servia de moderadora. “Não se metia em brigas e tentava sempre apaziguar as coisas”, conta Vânia Tapisso, amiga de infância de Mariana, com quem mantém o contacto.

 

Era “reservada”, mas isso nunca a impediu de fazer amigos. Das brincadeiras de infância, Vânia recorda como Mariana, mais “maria-rapaz” do que as outras raparigas, subia às árvores para distribuir nêsperas pelos amigos. Mas também das noitadas em casa dos Mortáguas, em que dançavam até de manhã. “Os pais eram muito liberais, não eram como os outros”, diz.

 

A filha da revolução

“A liberdade é total e a responsabilidade é total”, assim resumia a educação das filhas o próprio Camilo Mortágua, em entrevista ao PÚBLICO em 2015. A mãe é assistente social e fez parte do MRPP, o pai um conhecido antifascista que fundou a Liga de Unidade e Acção Revolucionária (LUAR) e participou no assalto ao paquete Santa Maria, no desvio de um avião da TAP ou no assalto à dependência do Banco de Portugal na Figueira da Foz.

 

Conheceram-se durante a ocupação da Herdade da Torre Bela, em 1975, mas só 11 anos mais tarde teriam as gémeas Mariana e Joana (também deputada do BE), quando assentaram no Alentejo.

 

Foi no seio familiar que a consciência política de ambas despontou. Mas também com a associação Acção para a Justiça e Paz, uma ONG sediada em Coimbra e focada nas questões feministas, que um dia passou pelo Alvito, era Mariana ainda adolescente.

 

Teresa Cunha, ex-presidente da associação, organizou várias actividades no Alentejo, entre as quais tertúlias com Camilo Mortágua, Alípio de Freitas ou José Fanha em que conversavam “sobre o país e o mundo”. E foi aí, entre essas figuras do antifascismo, que encontrou as irmãs.

 

O interesse pela política vem do “historial familiar, com todo aquele ambiente que se vivia em Alvito”. “A Mariana sempre foi uma miúda que gostou da companhia das pessoas mais velhas e de ouvir. Ela ouvia muito. Tudo isso fazia já sentido na cabeça dela”, conta Teresa Cunha.

 

Mas foi a associação que lhe “trouxe a oportunidade de pôr em prática essas coisas”, nomeadamente, o “interesse pelas perspectivas feministas”. Ainda em jovem, Mariana veio a fazer parte da direcção e juntou-se a causas como a marcha internacional das mulheres, a descriminalização do aborto, o Fórum Mundial Social ou as campanhas pela paz no Iraque.

 

Em miúda, era de “primeiro ouvir, fazer os seus próprios raciocínios, reflectir, tomar a sua posição e depois então falar. Sempre foi ponderada”, lembra Teresa. “Hoje em dia não tem papas na língua”, graceja. Mas continua a ser “capaz de estar impávida e serena a ouvir barbaridades para depois intervir”.

 

 

Outro aspecto que ainda lhe parece assentar — ou não se tivesse tornado imagem de marca de Mariana vestir-se informalmente —, é o facto de nunca ter sido “vaidosa”. “Era uma miúda que não dava — e ainda hoje não dá — importância a roupas. É muito simples. Estava claramente interessada noutras coisas desde muito jovem”, diz.

 

Ou então ser “extremamente trabalhadora”, descrição recorrente quando se fala de Mariana Mortágua, não só devido ao trabalho no Parlamento, mas também como investigadora.

 

A “marrona” que chegou a economista

Depois de ter feito a escola primária e básica em Alvito, Mortágua foi para Beja tirar o secundário na área da Economia, um caminho que não deixou desde então. Fez tanto a licenciatura como o mestrado em Economia no Iscte, em Lisboa, em 2008 e 2011. E também o doutoramento na School of Oriental and African Studies, em Londres, que acabou em 2019, à distância. No ano passado, ainda juntou ao currículo uma pós-graduação em Gestão Fiscal Avançada no ISEG.

 

É investigadora integrada e professora convidada no Iscte, onde dá aulas de Economia Política da Financeirização ao nível do mestrado e, antes disso, foi também professora no ISCAL. Tem cinco livros assinados, um deles em nome próprio, e escreveu outros tantos capítulos e artigos científicos, inclusive em co-autoria com camaradas bloquistas, Francisco Louçã, José Manuel Pureza e Jorge Costa. Actualmente, está debruçada sobre a união bancária e a teoria e ontologia da moeda e das criptomoedas.

 

“Em linguagem antiga, eu diria que a Mariana é marrona, agarra-se aos livros, trabalha e leva isso muito a sério. Gosta dos números e da matemática”. O perfil foi traçado pelo pai e mantém-se actual.

 

Também o orientador da tese de mestrado de Mortágua, Ricardo Paes Mamede, destaca a “enorme capacidade de trabalho, fora do comum”, que encontrou em Mariana durante esse tempo. E de que é prova o facto “impressionante” de ter conseguido publicar em revistas científicas internacionais ao mesmo tempo que era deputada.

 

Embora admita que seja “exigente” enquanto orientador, com a Mariana não teve de “fazer um esforço excessivo”. “É capaz de organizar bem o trabalho e de levar os assuntos a fundo. Domina muito bem os temas da economia e da financeirização da política, conhece bem a literatura e exemplos práticos”, aponta o economista e colunista do PÚBLICO.

 

Mais tarde, cruzaram-se também como colegas no Iscte, onde a cadeira de Mariana tem tido um “grande sucesso de procura”. Além do feedback “positivo” dos alunos, tem “boas classificações” enquanto docente.

 

Agora, a “prioridade” de Mortágua é a coordenação do Bloco, desafio que a própria diz assumir com “muita alegria e entusiasmo”. Mas quer manter um pé na investigação e na docência. “A minha vida é isto. É um equilíbrio em que umas vezes vou mais para a academia e passo menos tempo na política parlamentar” e vice-versa, afirma.

 

Dos movimentos sociais ao Bloco

Não estava nos planos de Mariana Mortágua enveredar por um percurso político-partidário, ao contrário de uma carreira na investigação, que planeava seguir. “Nunca me passou pela cabeça”, confessa. Mas, puxada pela irmã e pelas pessoas do BE que conheceu nos movimentos sociais de que fazia parte, feministas, anti-racistas ou pela paz, acabou por se juntar ao Bloco em 2009.

 

A bloquista admite que na altura tinha alguma desconfiança sobre a relação dos partidos com os activismos, mas esses encontros serviram para “desconstruir alguns mitos”. No Bloco, deu de caras com uma organização em que as pessoas pensavam como ela e um espaço onde pôde “desenvolver” aquilo em que acreditava. Nomeadamente sobre a crise económica, que foi outro elemento de politização para Mortágua. Já escrevia sobre a crise, trabalhava com organizações internacionais, dava conferências fora de Portugal. E o Bloco permitiu-lhe “juntar muito bem o papel de economista heterodoxa com a actividade política”, explica.

 

Após um breve período a seguir à licenciatura em que trabalhou como consultora de sistemas informáticos para “pagar as contas”, tornou-se assessora de economia e finanças no grupo parlamentar do BE.

 

Quatro anos depois de se filiar, já era deputada municipal em Lisboa e na Assembleia da República, aonde chegou em substituição de Ana Drago, pelo círculo de Lisboa, tornando-se na mais jovem deputada daquela legislatura, com 27 anos, o que a obrigou a regressar de Londres.

 

Mas a escolha de Mariana Mortágua, que saltou à frente de nove candidatos da lista da capital devido ao seu perfil técnico, não foi isenta de contestação por parte dos militantes do partido — 100 filiados enviaram uma carta aos órgãos do BE a questionar a escolha.

 

Ao PÚBLICO, Francisco Louçã admite que foi uma “decisão ousada” de João Semedo e Catarina Martins, na altura ambos coordenadores do BE, com base na “competência” de Mortágua. Mas compensou. “Valorizaram o que a Mariana podia ser e acertaram em cheio.”

 

O ex-líder do partido e também economista conheceu primeiro Joana, que se filiou no BE cinco anos antes, em 2004. Confessa que ao início era difícil distinguir as irmãs gémeas e que até deve ter trocado uma com a outra em algumas situações. Isso mudou rapidamente: em 2012, ano em que Louçã deixou a coordenação do partido, já tinham assinado um livro juntos, a A Dívidadura. Embora não tenham tido “contacto político” — não se cruzaram na Assembleia nem na direcção do partido —, a parceria entre os dois não ficaria por aí. Em 2021, escreveram um novo livro, o Manual de Economia Política.

 

O capítulo que, aos 26 anos, Mortágua escreveu para o livro A Europa à Beira do Abismo com o Nobel da Economia Joseph Stiglitz chamou-lhe “a atenção”, mas as suas intervenções na Assembleia da República e, em particular, nas comissões de inquérito, que Louçã acompanhou à distância, não ficaram atrás.

 

Além de “muito sistemática, tem uma capacidade de trabalho notável”, nota o fundador do BE, sem deixar de mencionar que Mariana é também “muito alegre, muito sociável”.

 

Embora Francisco Louçã seja apontado como a figura que a catapultou, rejeita que a bloquista seja uma “cópia” sua e acredita que essas comparações apenas são feitas por ser mulher. Não só garante que a deputada é “totalmente independente”, mas assegura até que ela tem “mais conhecimento sobre a estrutura bancária”.

 

A própria Mariana, que não entrou no Bloco por intermédio de uma das tendências internas, ressalva que, além de Louçã, houve outras figuras que a influenciaram no partido. Os fundadores Miguel Portas — do qual foi mais próxima inicialmente (assim como do Política XXI, facção socialista democrática do BE) — e Luís Fazenda foram “muito importantes” quando entrou no Bloco; e "aprendeu muito” com Helena Pinto, Cecília Honório e João Semedo quando chegou ao Parlamento.

 

A “deputada-estrela” ou “radical”

Foi na Assembleia da República, onde assumiu a dianteira das finanças e da economia durante a crise, que ganhou a visibilidade que a levou a ser descrita como uma “estrela” pela Bloomberg, em 2016. Ganhou cedo atenção mediática pelas intervenções contra a política de austeridade do Governo PSD/CDS, pela rejeição do tratado orçamental ou a reestruturação da dívida. Mas foi sobretudo na comissão de inquérito ao BES/GES, em que se destacou pelo estilo e a preparação técnica, que se tornou popular.

 

“Não deixa de ser bastante curioso que o ‘dono disto tudo’ nos tenha aparecido aqui hoje como a vítima disto tudo”, disse a Ricardo Salgado. “É um bocadinho amadorismo para quem ganhou tantos prémios de melhor CEO do ano, de melhor CEO da Europa e arredores, não é?...”, perguntou a Zeinal Bava. As frases correram as redes sociais.

 

Depois, consolidou essa popularidade quando enfrentou Carlos Costa e Vítor Constâncio, a propósito do Banco de Portugal; Joe Berardo, no inquérito à gestão da Caixa Geral de Depósitos; ou Luís Filipe Vieira e Moniz da Maia, sobre o Novo Banco.

 

A Mariana é uma mulher jovem que se impôs num cenário político que ainda hoje é masculino, tendencialmente envelhecido, sem pedir licença a ninguém. O que contribuiu para a notoriedade é as pessoas perceberem o que ela diz, ser frontal, directa”, resume Fabian Figueiredo, dirigente do BE e amigo de Mortágua, acrescentando que a bloquista “consegue tratar temas complexos com bastante clarividência e comunicá-los de forma eficaz”.

 

Também o ex-deputado e dirigente do BE Jorge Costa destaca a comissão de inquérito ao BES como o momento fulcral para a notoriedade de Mariana, porque foi capaz de “interpretar” e “expor”, de forma “muito potente”, a falência dos “grandes mitos” da elite bancária e empresarial, bem como de “protagonizar a perplexidade e a zanga da sociedade” perante essa “fraude e incompetência”.

 

Serão poucos, mesmo entre os adversários, os que não lhe reconhecem competência. Ou não tivesse o próprio ex-presidente do BES, Ricardo Salgado, elogiado a deputada por “estudar bem os assuntos” e ter “qualidades de analista importantes e objectivas”.

 

Mortágua não se alonga muito sobre as consequências que essa visibilidade teve na sua vida: “Faz parte do ofício.” Mas admite que tem de estar num “permanente estado de defesa” porque “o ataque é muito banalizado”.

 

Apesar disso, não se arrepende do caminho que escolheu. Além de permitir “resolver problemas” que “podem mudar a vida das pessoas” e de o Parlamento ser, “por natureza, o espaço do combate político”, aquilo que a chamou à vida parlamentar foi o facto de ser “muito versátil”. “Para quem está interessado e quer estudar sobre os assuntos, [ser deputada] dá um alcance de conhecimento sobre determinados temas que é muito difícil ter de outra forma, e isso é muito aliciante”, afirma.

 

Um dos momentos que destaca desse trabalho é a “ligação aos lesados do BES”. “Conhecer aquelas histórias foi um factor de muita emotividade até.” Mas também o facto de ter “negociado” e “imposto” medidas com o PS durante a “geringonça”, entre 2015 e 2019, e depois, entre 2019 e 2021.

 

Foi uma das principais interlocutoras do Bloco durante esses tempos — assim como depois deu a cara pelo chumbo do Orçamento do Estado de 2022 — e várias medidas tiveram o seu cunho, a mais famosa das quais foi o imposto adicional ao IMI, que ficou conhecido como o “imposto Mortágua”. Além das finanças, a habitação é outra das áreas em que tomou a dianteira.

 

Não deixou de fazer adversários e de ser alvo de críticas, particularmente à direita, por ser considerada “radical”, seja devido às posições que defende ou à postura — o que se acentuou com o aparecimento da Iniciativa Liberal e do Chega. Mas mesmo no seio do PS (pelo menos, dos socialistas mais à direita). Foi precisamente por causa do AIMI que causou atrito na rentrée dos socialistas de 2016, em Coimbra, em que anunciou a medida e defendeu: “A primeira coisa que temos de fazer é perder a vergonha de ir buscar dinheiro a quem está a acumular dinheiro”.

 

Jorge Costa, para quem o perfil de Mariana se definiu também no confronto com a “lógica de Mário Centeno das contenções orçamentais e dos brilharetes do défice” ou com o Chega, considera que foi esse imposto, assim como “ter confrontado os donos de Portugal”, que levaram a passar essa imagem de Mariana. Mas rejeita que seja mais radical do que os anteriores líderes.

 

Era uma miúda que não dava — e ainda hoje não dá — importância a roupas. É muito simples. Estava claramente interessada noutras coisas desde muito jovem

Teresa Cunha

 

Os dirigentes do BE garantem que esta é uma candidatura de continuidade, assente no socialismo, e os próprios opositores internos reivindicam para si a polarização do partido. Mesmo fora do Bloco e do outro lado do hemiciclo, há quem desvalorize as críticas de radicalização.

 

Fernando Negrão, deputado do PSD e ex-vice-presidente da Assembleia da República, contrapõe esses perigos com o “bom senso” da bloquista. Para o também ex-presidente das comissões de inquérito, a futura líder “terá capacidade de tranquilidade”, o que, nota, advém do facto de “acreditar profundamente nas ideias que defende”.

 

Os elogios vão mais longe. Aponta-lhe uma “grande capacidade de trabalho” e acredita que Mortágua tem “um grande feeling político” e um “bom sentido de oportunidade”.

 

Já Cecília Meireles, ex-deputada do CDS que partilhou com Mortágua o palco nas comissões de inquérito e com quem partilha o programa da SIC Notícias Linhas Vermelhas, assume que o “Bloco defende ideias radicais” e é um “partido de extrema-esquerda”, sendo Mariana “uma das principais caras” dessas ideias.

 

Mas apelida a bloquista de “inteligente” e “exigente”, garantindo que lhe tem “respeito e admiração”. “Foi sempre possível ter debates com elevação" e nas comissões de inquérito foi “fácil” trabalharem lado a lado. “Era visível que quase continuávamos os questionários uma da outra”, diz.

 

Por sua vez, Alexandra Leitão, deputada do PS e ex-ministra, admite que Mortágua pode ser “inflexível” ou ter “teimosia”. Ainda assim, acredita que terá “todas as condições para ser uma boa líder”, essencialmente por possuir três características: “coragem”, “inteligência” e “verticalidade”. “Tem assertividade e empenho no que faz e uma grande coerência ideológica”, afirma.

 

Na década que acumula como deputada, não se livrou de polémicas, como um processo por ter acumulado o subsídio de exclusividade enquanto deputada com o comentário político na SIC Notícias. Mariana Mortágua alegou “desconhecimento” sobre uma alteração de 2020 ao estatuto dos deputados que tornou incompatível o regime de exclusividade com a actividade paga num programa televisivo. Devolveu o montante recebido, alterou a declaração de interesses e passou a integrar o programa de forma pro bono. Foi ainda alvo de um processo por difamação ao CEO da Global Media, Marco Galinha, que acusou de ter ligações à oligarquia russa. Ambos os processos foram arquivados.

 

Recentemente, a esse respeito, classificou os casos como “perseguição política” por parte de adversários como o Chega, por ser “mulher, de esquerda, lésbica e filha de um resistente antifascista". Mais: “Ou porque tenho o dom de incomodar pessoas com muito poder.”

 

Mariana Mortágua, que quando a ex-ministra Graça Fonseca se assumiu como lésbica considerou o “acto corajoso e importante politicamente”, reitera agora que ter dito publicamente que é homossexual tem um “significado político”. “Quem diz que não se deve dizer porque é do foro pessoal é prova de que é uma questão política”, afirma.

 

Das bases à liderança

Internamente, foi activa nos Jovens do Bloco e envolveu-se na concelhia de Lisboa. Entrou para os órgãos nacionais pela altura em que se tornou deputada — a mesa, a comissão política e o secretariado —, coordena a distrital da capital e é vice-presidente do grupo parlamentar. Os ingredientes estavam todos lá para assumir a coordenação do partido.

 

Como militante e dirigente, Adriano Campos, membro do secretariado e amigo de Mariana, descreve-a, em primeiro lugar, como alguém “sempre disponível” e “extremamente solidária”. “A Mariana faz o que a Catarina já fazia. Depois de um dia inteiro no Parlamento, termina a noite com uma reunião de organização e ainda é capaz de ter conversas, fazer contactos”, conta.

 

Depois, tem outras duas características: é uma “desbloqueadora” capaz de “gerar consensos” e “aproximar posições” quando estas parecem extremar-se e é “muito exigente”, o que, se, por um lado, pode ser lido como “teimosia”, por outro, obriga o partido a “inovar tarefas”.

 

“A Mariana conhece muito bem o BE — as estruturas de base e intermédias e de direcção —, e conhece muito bem o país. Acumula muita experiência militante com conhecimento de causa”, acrescenta Fabian Figueiredo, lembrando que a candidata a líder já correu o país em campanha.

 

É também por essa razão que os bloquistas rejeitam que Mortágua possa ter dificuldade nas ruas, embora se tenham levantado dúvidas sobre a sua capacidade de empatia, comparativamente a Catarina Martins, que nunca teve problemas nesse campo. Os dirigentes garantem que Mariana “conhece a rua”, é “afectuosa com as pessoas” e entende “a necessidade de construção de pontes”, não existindo “muita gente que consiga reunir esta ambivalência”.

 

“Há uma grande simpatia e ela tem facilidade de diálogo com as pessoas. As pessoas abordam-na, agradecem a combatividade, dizem para ela não desistir”, conta Fabian.

 

Entre os que a recebem de forma “mais entusiástica”, diz Jorge Costa, estão os jovens, uma das camadas da população que Mariana conseguiu captar ao longo dos anos, por ser, também ela, jovem quando entrou na política e porque protagonizou alguns movimentos das gerações mais novas, como os feministas ou os ambientalistas. “Os jovens vêem nela uma espécie de expressão da juventude na política.”

 

Aliando o perfil mais técnico ao perfil nas ruas, os bloquistas esperam que Mariana — que tem o apoio da maioria dos militantes, da cúpula do partido e da actual coordenadora —, possa afirmar o BE no combate à maioria absoluta depois da série de maus resultados eleitorais que tiveram, particularmente os das últimas legislativas (os piores dos últimos 20 anos).

 

Em 2015, foi apontada como uma das chaves para o bom resultado do BE na Madeira e é precisamente aí que Mariana irá, assim que for eleita. Depois, vai correr o país.

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