OPINIÃO
Metamorfoses
A ideia de que pode haver uma “democracia universal”,
“mundial”, “global” ou “planetária” é infantil.
António Barreto
2 de Janeiro de
2021, 6:27
https://www.publico.pt/2021/01/02/opiniao/opiniao/metamorfoses-1944791
Adormecer
português e acordar europeu! Apagar a luz como cidadão e abrir as janelas como
presidente! Acabar o ano com uma grande Europa e começar o novo com uma mais
pequena! Parecem pequenas mudanças, de forma ou de símbolo. Mas são sinais de
profundas transformações em curso.
A pandemia ocupa
o mundo, é natural. O novo Presidente americano prepara-se para chamar as
atenções, é normal. O Presidente Trump arranja-se cuidadosamente para sair com
inesperado ruído, já sabemos. Sem sucessor, a principal líder europeia, Angela
Merkel, faz as suas malas e deixa uma União sem centro de gravidade ou sem
cabeça, como é conhecido. Os países mais pobres do mundo vivem aflitos sem
serviços de saúde, com poucos médicos e sem dinheiro para comprar e distribuir
vacinas, não é novidade. A democracia a recuar em quase todos os continentes, é
sabido. A China a crescer, é notório. Tão importantes, mas menos visíveis, são
os movimentos tectónicos que se pressentem na Europa. Assim como as
transformações na sociedade portuguesa, quase imperceptíveis, que exigem
atenção.
No meio disto, a
nova presidência europeia, a assumir por Portugal desde hoje, mais parece fait
divers. Em certo sentido, é. As presidências da União são uma rotina. Boas, por
serem rotina. Todos os países, quando chega a sua vez, querem ter agendas,
elaborar dossiers, deixar a sua marca, criar plataformas, abrir debates, fazer
reformas, projectar a Europa no mundo... É natural. É bom que assim seja. Mesmo
quando é inútil. O que interessa a Portugal é que o país está lá, que se
cumprem regras e que se tenta consolidar um passado recente. Ainda por cima,
numa altura em que se descobriu que a Europa, depois de crescer, também podia diminuir.
E que os europeus podiam levianamente despedir os ingleses, tal como estes eram
capazes do enorme disparate de dispensar os europeus.
Três semanas
antes de eleger o Presidente português, os portugueses e os europeus receberam
um novo presidente europeu. O sistema rotativo é muito interessante, pouco
democrático e totalmente ineficaz. É de certa maneira um sinal de fraqueza da
Europa. Esta nunca soube fazer da diversidade a sua força e o seu carácter. Em
vez disso, procura instrumentos supletivos de unidade e liderança que não são
mais do que remendos. O que não impede que, por vezes, atrás desta cenografia,
se levem a cabo feitos maiores. A vacinação coincidente de todos os países
europeus, após planeamento colectivo, fez mais pela União Europeia do que uma
“presidência activa” ou uma dúzia de grandes reformas e debates.
A presidência
portuguesa nada nos vai trazer de novo ou importante, a não ser isso mesmo,
acontecer. A rotina é um dos grandes méritos da democracia. Das três
presidências portuguesas que antecederam a actual sobraram uma Estratégia de
Lisboa, um Tratado de Lisboa, duas cimeiras Europa-África, uma reforma da
PAC... Mas a verdade é que, com a excepção de alguns episódios desvairados com
países menos rigorosos, de todas as presidências sobram sempre feitos, reformas
e avanços. A “maquinaria europeia” está muito bem preparada para tratar das
rotinas, o que inclui os dramas das lendárias negociações nocturnas e as
conciliações de madrugada.
Os quatro
presidentes portugueses da Europa foram, por esta ordem, Cavaco Silva, António
Guterres, José Sócrates e agora António Costa. Os presidentes da República eram
Mário Soares, Jorge Sampaio, Cavaco Silva e Marcelo Rebelo de Sousa. Cavaco
Silva esqueceu-se de Mário Soares durante a primeira presidência. António
Guterres marginalizou Jorge Sampaio na segunda. José Sócrates ignorou Cavaco
Silva na terceira. Ainda não se sabe o que fará António Costa com Marcelo
Rebelo de Sousa. São os mistérios do semipresidencialismo.
Muito mais
importante do que estes episódios, cujo carácter imprescindível reside na sua
rotina, é a mudança em curso na sociedade. Os países estão a ficar menos
nacionais, mais cosmopolitas, menos europeus e mais mestiços. Toda a gente pensa
isso, mas é difícil preparar instituições e regras. Há muitas décadas, quando o
governador do Congo se queixava da falta de franceses para desenvolver a
colónia, o general De Gaulle retorquiu: “Meu Caro Governador, você é um
Burguês! O futuro é mestiço!” No caso europeu actual, a mestiçagem começa pelas
nacionalidades europeias e espalha-se depois pelas africanas, mediterrânicas,
árabes, turcas, indianas e outras. Estas misturas são explosivas, como já se
percebeu. Tanto por causa das reacções dos brancos europeus e cristãos, como
devido aos comportamentos dos imigrantes e refugiados. Há xenofobia e racismo
dos dois lados.
Mas essas não são
as únicas ameaças. Outra tão importante como essas é a da geografia da
liberdade. Até nova ordem, o regime democrático tem uma natureza territorial
indelével. Não há soberania popular nem representantes, sem comunidades ou
distritos eleitorais com base regional. Não há democracia nem parlamento sem
eleitorados e sem limites geográficos. A ideia de que pode haver uma “democracia
universal”, “mundial”, “global” ou “planetária” é infantil. Aliás,
curiosamente, os grandes poderes globais e “galácticos” da ficção científica
são sempre impérios e equiparados, ditaduras e regimes totalitários. A União
Europeia, que já foi longe de mais, tem de rever as suas estruturas
democráticas, os seus processos eleitorais, as suas comunidades locais e
nacionais. Sem o que nunca conseguirá definir os contornos da sua democracia,
nem estancar os impulsos nacionalistas.
Outra ameaça é a
da destruição das bases culturais da democracia. Tanto a tradição como a
mestiçagem exigem comunidades de cultura. Olhe-se bem para o mapa da democracia
no mundo. É difícil encontrar exemplos de democracias sem uma qualquer tradição
cultural, sem comunidade de herança e sem identidade histórica. O falhanço,
talvez sem excepção, das tentativas de exportação da democracia deveria dar-nos
ensinamentos para ajudar a tratar da Europa. Actualmente, o recuo da democracia
no mundo deve-se muito à ausência de comunidade e de tradição, ao
cosmopolitismo sem fronteiras nem identidade. Assim como à criação de poderes
políticos desligados das instituições e das comunidades ou bases eleitorais. Os
Estados da Oceânia e da Eurásia (G. Orwell), tal como os reinos dos Elóis e dos
Morlocks (H. G. Wells), não têm bases eleitorais nem geografia. Os países
europeus, se querem manter-se democráticos, não podem perder as suas.
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