O destino cigano
António Guerreiro
29 de Janeiro de
2021, 8:53
https://www.publico.pt/2021/01/29/culturaipsilon/cronica/destino-cigano-1948026
Falo de uma
questão que emergiu recentemente com alguma intensidade no espaço público:
trata-se dos ciganos, uma vexata quaestio sobre a qual se guarda demasiado
silêncio, certamente porque, ao contrário de outros grupos afectados pela
exclusão racial, não são vistos no centro das grandes cidades, um território
estranho aos seus modos de vida.
Falo dos ciganos
a partir de um saber meramente empírico e recente, que certamente é demasiado superficial
e imediato quando confrontado com o trabalho de investigadores. Falo a partir
de um observatório que é uma aldeia alentejana, nos arredores de Évora, onde
habito parcialmente há cerca de três anos. O tempo suficiente para ser
confrontado com os ciganos e as formas de vida a que, em muitos aspectos, a
história os obrigou, mas que lhes cabem não como história mas como destino.
Poucos dias depois de chegar à aldeia, falei com um adolescente cigano que
deambulava pelas ruas, com um cão. Entusiasmado com a minha hospitalidade
(coisa para ele nunca vista), começou a querer negociar comigo tudo o que tinha
para vender, até um cavalo. Este breve encontro daria para confirmar um
lugar-comum das representações negativas dos ciganos: que eles só têm vocação
de traficantes, para a qual desenvolveram as malas-artes da astúcia e da
fraude. Disso mesmo me avisou um vizinho que assistiu de longe à cena. Com
alguma indulgência, por eu ser ali um novato, disse-me depois que eu devia
evitar as conversas com “essa gente que é a pior coisa que por aí apareceu”.
Não me chegou a
dizer que eu devia escorraçá-los (embora não negligenciasse essa solução que
comporta os seus perigos, dada a violência congénita desta “gente do pior”),
mas chegou-me aos ouvidos, mais de um ano depois, que circulou pela população
um abaixo-assinado que reclamava a expulsão dos ciganos daquele pequeno
território. Fiquei assim a par da justa medida da rejeição: os ciganos não têm
condição civil. Esta oposição entre os civis e os selvagens, de longa memória,
emerge por estes lados constantemente e ambas as partes confirmam diariamente o
papel que lhes está reservado, a não ser raramente, quando os civis também são
um pouco selvagens e os selvagens são um pouco civis. É bem conhecida esta lei
da sobrevivência, que faz com que os ciganos não possam senão encarnar o papel
que lhes foi reservado ao longo de mais de cinco séculos (em Portugal) de
rejeição total e falta de reconhecimento, confirmando assim diariamente os
piores lugares-comuns com que são identificados. É assim com todas as minorias
que sofrem uma dura exclusão: conformam-se aos estereótipos em que foram
encerrados e deixam de poder sair deles. Não trabalham? Pois não, pelo menos de
acordo com uma certa definição de trabalho. Mas nem ousem procurar porque
ninguém lhes dá emprego. O melhor, então, é deixar de querer. Orgulhosamente. A
contingência torna-se um destino e a perseguição engendra uma cultura que se
vai essencializando e acaba por constituir uma auto-reclusão. Não se pense que
o problema se resolve com boas intenções e muito proselitismo. Do alto do seu
saber, as instituições governamentais ostentam uma palavra mágica,
“integração”, sem fazerem a mínima ideia de que essa palavra já não serve para
nada. Quanto aos poderes mais próximos do problema, as autarquias, preferem
ficar calados ou ser cúmplices de práticas que fazem lembrar as leis raciais
para solucionar de vez o “instinto obscuro da estirpe”, como se disse noutro
contexto histórico para uma outra classe de Untermenschen, de sub-pessoas.
Perante os vícios maléficos dos selvagens, as virtudes do homem civil são
reclamadas com uma tão grande evidência que o racismo mais extremo tornou-se
uma prática naturalizada. Não dói a quem o pratica, não é censurado e, pior que
tudo, nem chega a ser percebido como tal. É uma persistência que não existe e
que ninguém por estas bandas contribui para que ele comece a ser representável.
É bastante significativo que mesmo quando havia uma hegemonia do Partido
Comunista no Alentejo os ciganos nunca tiveram direito a nenhuma forma de
subjectivação política. Nem na vanguarda do povo nem na retaguarda.
E assim temos, diante dos olhos que querem
ver, uma situação que só tem um equivalente nos momentos extremos do racismo
anti-semita, muito embora neste caso não se trate de um racismo transformado em
lei da nação e a aguardar uma solução final.
Livro de recitações
“São muitas
décadas de empobrecimento e de secundarização das Humanidades”
António Carlos
Cortez, “Explicar André Ventura ou um aviso à navegação”, in PÚBLICO,
25/01/2021
Gostaríamos de
acreditar nesta tese de que as Humanidades imunizam contra o Mal; e de que elas
inoculam um reforço cívico. Infelizmente (mas não teríamos também muito a
perder com esta tese transformada em axioma?), tal não se verifica. Nem
precisamos, para refutá-la, de recorrer ao exemplo de George Steiner, formulado
mais ou menos nestes termos: como é que tão perto de Weimar nasceu o campo de
Buchenwald? De resto, a interrogação a que Steiner tenta responder não tem uma lógica
diferente da afirmação de António Carlos Cortez, na medida em que também
pressupõe uma superioridade moral, cívica e civilizacional das Humanidades.
Ambos, no fundo, continuam a querer tornar operacional uma oposição que já
Burckhardt, no final do século XIX, tinha dito que era não pertinente: a
oposição entre civilização e barbárie. Por outro lado, a quantidade de
celerados, terroristas e energúmenos que integram com o seu génio a história
das Humanidades deita por terra esta tese benevolente.
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