domingo, 31 de janeiro de 2021

A União Europeia quis poupar nas vacinas. Está a colher o que semeou

 



A União Europeia quis poupar nas vacinas. Está a colher o que semeou

 

A Comissão quis poupar o dinheiro dos contribuintes europeus? Não creio que, neste caso, nenhum contribuinte europeu lhe agradeça o esforço.

 

Teresa de Sousa

31 de Janeiro de 2021, 0:00

https://www.publico.pt/2021/01/31/opiniao/opiniao/uniao-europeia-quis-poupar-vacinas-colher-semeou-1948638

 

1. “No total, o Reino Unido e os Estados Unidos gastaram antecipadamente cerca de sete vezes mais per capita no desenvolvimento, compra e produção [da vacina] que o bloco europeu, de acordo com a informação recolhida pela Airfinity, uma empresa de análise científica sediada em Londres”, escrevia o Financial Times há poucos dias.

 

O diário britânico acrescentava que, “apesar dos números incluírem tipos diferentes de financiamento e poderem não ser rigorosamente comparáveis, esta informação parece indicar que os membros da União Europeia deviam ter usado mais cedo o seu poder económico para financiar a ampliação de fábricas [das farmacêuticas] e apoiar os fornecedores da matéria-prima para as vacinas”.

 

Apenas um exemplo. A União gastou 1,78 mil milhões de euros em “dinheiro de risco”, entregue às farmacêuticas sem qualquer garantia de retorno. O Reino Unido adiantou 1,9 mil milhões e os EUA 9 mil milhões – para, respectivamente, 450 milhões, 62 milhões e 330 milhões de cidadãos. “A União Europeia conseguiu garantir alguns dos mais baixos preços do mundo [na compra das vacinas]”, escreve o site Politico.eu. “Mas a que custo?”

 

 

Numa carta enviada ao Financial Times, datada de 28 de Janeiro, Daniel Gros, investigador-chefe do Centre for European Policy Studies de Bruxelas, escreve o seguinte. “É claro que a compra conjunta de vacinas pela União Europeia falhou. Um dos principais fornecedores, a AstraZeneca, acaba de anunciar atrasos no calendário de entregas, enquanto a pandemia continua a fustigar a Europa.

 

Como se chegou aqui? Os negociadores europeus cometeram dois erros. Primeiro, fecharam os contratos muito mais tarde do que outros grandes compradores – por exemplo, três meses depois do Reino Unido com a AstraZeneca. A AstraZeneca pôde, portanto, começar a preparar-se com segurança para aumentar o fornecimento ao Reino Unido, muito antes de começar a fazê-lo para a União Europeia. Em segundo lugar, Bruxelas regateou um preço mais baixo, criando um incentivo para as companhias servirem primeiro quem encomendou mais cedo e pagou mais.”

 

A Comissão quis poupar o dinheiro dos contribuintes europeus? Não creio que, neste caso, nenhum contribuinte europeu lhe agradeça o esforço.

 

2. No dia 28, os países da UE tinham vacinado, em media, dois em cada 1000 cidadãos, o Reino Unido 11 e os EUA sete. Este atraso talvez ajude a compreender melhor a “guerra das vacinas” que está instalada na União Europeia e que tem a sua expressão mais recente no conflito entre Bruxelas e a farmacêutica anglo-sueca AstraZeneca – acusada de não cumprir os prazos de entrega previstos no contrato.

 

A farmacêutica anglo-sueca avisou a Comissão de que não estaria em condições de cumprir a totalidade das entregas prometidas para o primeiro trimestre. A culpa do atraso dos programas de vacinação na Europa continental é da AstraZeneca? A resposta é não. A Pfizer e a Moderna também estão a atrasar as entregas e convém lembrar que apenas na sexta-feira passada a Agência Europeia de Medicamentos (EMA) validou a vacina de Oxford, o que quer dizer que não é da sua responsabilidade a lentidão dos programas de vacinação. Mas encontrou-se um “bode expiatório” que permite desviar as atenções dos eventuais erros cometidos na estratégia de compra e de certificação das vacinas. Melhor ainda: a empresa é anglo-sueca e está “propositadamente” a beneficiar os britânicos, de acordo com as autoridades de Bruxelas. E os britânicos são, na narrativa preferida da União Europeia, os maus da fita. Segunda acusação preferida de Bruxelas: a empresa beneficia quem lhe paga mais porque só pensa no lucro.

 

Continuamos a aguardar que o Governo reponha alguma decência nas prioridades de vacinação. Sem que isso aconteça, o número de vitimas mortais continuará a ser assustador

A fábrica da AstraZeneca na Bélgica foi, entretanto, alvo de uma vistoria pelas autoridades do país, embora ainda não se conheçam as conclusões. A União adoptou uma norma que dá aos Estados-membros a possibilidade de bloquear as exportações da AstraZeneca ou da Pfizer para o Reino Unido, aplicando-se esta restrição também EUA e ao Canadá e a mais ninguém. Na sexta-feira, perante os protestos de Dublin e de Belfast, a Comissão teve de voltar atrás numa das cláusulas desta norma, que permitia o controlo da fronteira entre a Irlanda e o Ulster. O acordo de saída dos britânicos preserva a ausência de fronteira entre as duas Irlandas.

 

“Este belo plano [de vacinação conjunta] está em risco de correr mal”, escreve o Monde na sua edição de sábado. “A insuficiente capacidade de produção das empresas farmacêuticas, sob pressão de uma procura que explode perante a erupção imprevista de novas variantes e a chegada de uma terceira vaga, semeia o caos nas campanhas de vacinação. De novo, o pânico toma conta de Bruxelas e das capitais europeias.”

 

3. Vale a pena olhar para a forma como o Reino Unido organizou o seu sistema de vacinação, bem como as respectivas prioridades. O objectivo é ter 14 milhões de pessoas vacinadas em meados de Fevereiro. Na primeira fase, a Comissão para as Vacinas e a Imunidade estabeleceu as seguintes prioridades: residentes em lares e respectivos cuidadores; os trabalhadores do sector da saúde e do apoio social que estão na linha da frente; todas as pessoas com mais de 70 anos, a que se juntam as pessoas clinicamente muito vulneráveis. Segundo a Comissão, o critério é simples: visa cobrir o mais depressa possível os grupos em que se registaram 88% das mortes. Nada mais claro e mais lógico, se o objectivo for salvar vidas humanas.

 

Já foram criados 11 grandes centros de vacinação em estádios ou centros de congressos, que funcionam 24 horas por dia, sete dias por semana (vão abrir mais), aos quais se somam os centros de saúde e os hospitais. O exército foi mobilizado para a distribuição das vacinas e para identificar áreas que não estejam cobertas pela rede de vacinação instalada. O sector privado da distribuição também foi mobilizado. O NHS inglês seleccionou a Asda como a primeira rede de supermercados a fornecer a vacinação nas suas lojas desde o dia 25 de Janeiro. A rede de farmácias Boots abriu na semana passada o seu primeiro estabelecimento. Outros se seguirão. Parece ser um modelo eficaz.

 

4. Na Europa, cada país definiu as suas prioridades. Na generalidade, as pessoas mais velhas, cuja taxa de mortalidade é incomparavelmente superior, estão na primeira fase da vacinação. Menos em Portugal. O processo já nasceu inquinado e ainda não se endireitou. Em finais de Novembro, quando se começaram a conhecer os critérios do plano nacional de vacinação preparado por uma “task-force” criada para o efeito, não foi certamente por acaso que o primeiro-ministro disse em público que “as vidas não têm prazo de validade”. Nessa altura, António Costa referiu que era inaceitável que as pessoas com mais de 75 anos não estivessem na primeira fase da vacinação. Olhando à distância, as suas palavras não tiveram qualquer efeito.

 

 

Foi preciso que, no dia 21 de Janeiro, a União Europeia insistisse no objectivo comum de vacinar os mais velhos até ao início da Primavera para que o plano de vacinação nacional incluísse todas as pessoas com mais de 80 anos na primeira fase. Muito longe ainda dos 70 ou 75 anos que a maioria dos países europeus fixou.

 

Nas últimas semanas, foram raros os dias em que mais um grupo profissional não viesse reivindicar o seu direito a estar na “linha da frente” da vacinação. Ouvi representantes sindicais de bombeiros, polícias ou professores reclamarem acaloradamente o seu direito de preferência, alguns equiparando-se aos profissionais de saúde.

 

Não podemos olhar cada grupo individualmente para avaliar o seu papel mais ou menos fundamental neste ou naquele serviço à sociedade. Temos de olhar sempre para o conjunto e pensar: quem é que está em maior risco de perder a vida? Se for este o critério, conseguiremos estabelecer prioridades mais justas e muito mais humanas. A única excepção são os profissionais de saúde. E por uma razão que nem sequer é altruísta: convém que estejam em condições de exercer o melhor possível as suas funções, para nos salvarem a vida. Tão simples quanto isto.

 

Entretanto, continuamos a aguardar que o Governo reponha alguma decência nas prioridades de vacinação. Sem que isso aconteça, o número de vítimas mortais continuará a ser assustador.

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