A União Europeia quis poupar nas vacinas. Está a colher o
que semeou
A Comissão quis poupar o dinheiro dos contribuintes
europeus? Não creio que, neste caso, nenhum contribuinte europeu lhe agradeça o
esforço.
Teresa de Sousa
31 de Janeiro de
2021, 0:00
1. “No total, o
Reino Unido e os Estados Unidos gastaram antecipadamente cerca de sete vezes
mais per capita no desenvolvimento, compra e produção [da vacina] que o bloco
europeu, de acordo com a informação recolhida pela Airfinity, uma empresa de
análise científica sediada em Londres”, escrevia o Financial Times há poucos
dias.
O diário
britânico acrescentava que, “apesar dos números incluírem tipos diferentes de
financiamento e poderem não ser rigorosamente comparáveis, esta informação
parece indicar que os membros da União Europeia deviam ter usado mais cedo o
seu poder económico para financiar a ampliação de fábricas [das farmacêuticas]
e apoiar os fornecedores da matéria-prima para as vacinas”.
Apenas um
exemplo. A União gastou 1,78 mil milhões de euros em “dinheiro de risco”,
entregue às farmacêuticas sem qualquer garantia de retorno. O Reino Unido
adiantou 1,9 mil milhões e os EUA 9 mil milhões – para, respectivamente, 450
milhões, 62 milhões e 330 milhões de cidadãos. “A União Europeia conseguiu
garantir alguns dos mais baixos preços do mundo [na compra das vacinas]”,
escreve o site Politico.eu. “Mas a que custo?”
Numa carta enviada
ao Financial Times, datada de 28 de Janeiro, Daniel Gros, investigador-chefe do
Centre for European Policy Studies de Bruxelas, escreve o seguinte. “É claro
que a compra conjunta de vacinas pela União Europeia falhou. Um dos principais
fornecedores, a AstraZeneca, acaba de anunciar atrasos no calendário de
entregas, enquanto a pandemia continua a fustigar a Europa.
Como se chegou
aqui? Os negociadores europeus cometeram dois erros. Primeiro, fecharam os
contratos muito mais tarde do que outros grandes compradores – por exemplo,
três meses depois do Reino Unido com a AstraZeneca. A AstraZeneca pôde,
portanto, começar a preparar-se com segurança para aumentar o fornecimento ao
Reino Unido, muito antes de começar a fazê-lo para a União Europeia. Em segundo
lugar, Bruxelas regateou um preço mais baixo, criando um incentivo para as
companhias servirem primeiro quem encomendou mais cedo e pagou mais.”
A Comissão quis poupar o dinheiro dos contribuintes
europeus? Não creio que, neste caso, nenhum contribuinte europeu lhe agradeça o
esforço.
2. No dia 28, os
países da UE tinham vacinado, em media, dois em cada 1000 cidadãos, o Reino
Unido 11 e os EUA sete. Este atraso talvez ajude a compreender melhor a “guerra
das vacinas” que está instalada na União Europeia e que tem a sua expressão
mais recente no conflito entre Bruxelas e a farmacêutica anglo-sueca
AstraZeneca – acusada de não cumprir os prazos de entrega previstos no
contrato.
A farmacêutica
anglo-sueca avisou a Comissão de que não estaria em condições de cumprir a
totalidade das entregas prometidas para o primeiro trimestre. A culpa do atraso
dos programas de vacinação na Europa continental é da AstraZeneca? A resposta é
não. A Pfizer e a Moderna também estão a atrasar as entregas e convém lembrar
que apenas na sexta-feira passada a Agência Europeia de Medicamentos (EMA)
validou a vacina de Oxford, o que quer dizer que não é da sua responsabilidade
a lentidão dos programas de vacinação. Mas encontrou-se um “bode expiatório”
que permite desviar as atenções dos eventuais erros cometidos na estratégia de
compra e de certificação das vacinas. Melhor ainda: a empresa é anglo-sueca e
está “propositadamente” a beneficiar os britânicos, de acordo com as
autoridades de Bruxelas. E os britânicos são, na narrativa preferida da União
Europeia, os maus da fita. Segunda acusação preferida de Bruxelas: a empresa
beneficia quem lhe paga mais porque só pensa no lucro.
Continuamos a
aguardar que o Governo reponha alguma decência nas prioridades de vacinação.
Sem que isso aconteça, o número de vitimas mortais continuará a ser assustador
A fábrica da
AstraZeneca na Bélgica foi, entretanto, alvo de uma vistoria pelas autoridades
do país, embora ainda não se conheçam as conclusões. A União adoptou uma norma
que dá aos Estados-membros a possibilidade de bloquear as exportações da
AstraZeneca ou da Pfizer para o Reino Unido, aplicando-se esta restrição também
EUA e ao Canadá e a mais ninguém. Na sexta-feira, perante os protestos de
Dublin e de Belfast, a Comissão teve de voltar atrás numa das cláusulas desta
norma, que permitia o controlo da fronteira entre a Irlanda e o Ulster. O
acordo de saída dos britânicos preserva a ausência de fronteira entre as duas
Irlandas.
“Este belo plano [de vacinação conjunta] está em risco de
correr mal”, escreve o Monde na sua edição de sábado. “A insuficiente
capacidade de produção das empresas farmacêuticas, sob pressão de uma procura
que explode perante a erupção imprevista de novas variantes e a chegada de uma
terceira vaga, semeia o caos nas campanhas de vacinação. De novo, o pânico toma
conta de Bruxelas e das capitais europeias.”
3. Vale a pena
olhar para a forma como o Reino Unido organizou o seu sistema de vacinação, bem
como as respectivas prioridades. O objectivo é ter 14 milhões de pessoas
vacinadas em meados de Fevereiro. Na primeira fase, a Comissão para as Vacinas
e a Imunidade estabeleceu as seguintes prioridades: residentes em lares e
respectivos cuidadores; os trabalhadores do sector da saúde e do apoio social
que estão na linha da frente; todas as pessoas com mais de 70 anos, a que se
juntam as pessoas clinicamente muito vulneráveis. Segundo a Comissão, o
critério é simples: visa cobrir o mais depressa possível os grupos em que se
registaram 88% das mortes. Nada mais claro e mais lógico, se o objectivo for
salvar vidas humanas.
Já foram criados
11 grandes centros de vacinação em estádios ou centros de congressos, que
funcionam 24 horas por dia, sete dias por semana (vão abrir mais), aos quais se
somam os centros de saúde e os hospitais. O exército foi mobilizado para a
distribuição das vacinas e para identificar áreas que não estejam cobertas pela
rede de vacinação instalada. O sector privado da distribuição também foi
mobilizado. O NHS inglês seleccionou a Asda como a primeira rede de
supermercados a fornecer a vacinação nas suas lojas desde o dia 25 de Janeiro.
A rede de farmácias Boots abriu na semana passada o seu primeiro
estabelecimento. Outros se seguirão. Parece ser um modelo eficaz.
4. Na Europa,
cada país definiu as suas prioridades. Na generalidade, as pessoas mais velhas,
cuja taxa de mortalidade é incomparavelmente superior, estão na primeira fase
da vacinação. Menos em Portugal. O processo já nasceu inquinado e ainda não se
endireitou. Em finais de Novembro, quando se começaram a conhecer os critérios
do plano nacional de vacinação preparado por uma “task-force” criada para o
efeito, não foi certamente por acaso que o primeiro-ministro disse em público
que “as vidas não têm prazo de validade”. Nessa altura, António Costa referiu
que era inaceitável que as pessoas com mais de 75 anos não estivessem na
primeira fase da vacinação. Olhando à distância, as suas palavras não tiveram
qualquer efeito.
Foi preciso que,
no dia 21 de Janeiro, a União Europeia insistisse no objectivo comum de vacinar
os mais velhos até ao início da Primavera para que o plano de vacinação
nacional incluísse todas as pessoas com mais de 80 anos na primeira fase. Muito
longe ainda dos 70 ou 75 anos que a maioria dos países europeus fixou.
Nas últimas
semanas, foram raros os dias em que mais um grupo profissional não viesse
reivindicar o seu direito a estar na “linha da frente” da vacinação. Ouvi
representantes sindicais de bombeiros, polícias ou professores reclamarem
acaloradamente o seu direito de preferência, alguns equiparando-se aos
profissionais de saúde.
Não podemos olhar
cada grupo individualmente para avaliar o seu papel mais ou menos fundamental
neste ou naquele serviço à sociedade. Temos de olhar sempre para o conjunto e
pensar: quem é que está em maior risco de perder a vida? Se for este o
critério, conseguiremos estabelecer prioridades mais justas e muito mais
humanas. A única excepção são os profissionais de saúde. E por uma razão que
nem sequer é altruísta: convém que estejam em condições de exercer o melhor
possível as suas funções, para nos salvarem a vida. Tão simples quanto isto.
Entretanto,
continuamos a aguardar que o Governo reponha alguma decência nas prioridades de
vacinação. Sem que isso aconteça, o número de vítimas mortais continuará a ser
assustador.
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