REINO UNIDO
Emigrar para o Reino Unido? Agora é preciso enfrentar um
sistema de pontos “arrogante” e “exaustivo”
A partir de Janeiro, quem quiser trabalhar ou viver no
Reino Unido precisa de ter um mínimo de pontos e as fronteiras fecham-se a
migrantes não-qualificados ou que não falam inglês. Para quem planeia levantar
voo nos próximos meses, este novo sistema de imigração é “arrogante”, acarreta
custos e burocracias e obriga a desenhar planos “sem certezas”.
Andreia Friaças
4 de Janeiro de
2021, 8:12
2021 é o ano em
que Beatriz Marques concretiza o seu grande sonho. Nem a realidade nublosa do
“Brexit” nem as reviravoltas da pandemia travaram a vontade que se arrasta
desde a adolescência: deixar Lisboa e ir estudar para Londres, no Reino Unido.
Aos 15 anos, a
jovem meteu “na cabeça” que um dia viveria neste arquipélago e desde então que
todas as suas escolhas foram pensadas à luz deste objectivo. Tirou o curso de
Gestão (por considerar uma área com futuro internacional) e, há dois anos,
começou a trabalhar no banco BNP Paribas para juntar “todos os cêntimos para a
viagem”, explica a jovem, hoje com 26 anos.
No arranque do
novo ano, Beatriz despede-se dos longos turnos a responder às dúvidas dos
clientes do banco e prepara-se para finalmente levantar voo: no final de
Janeiro começa as aulas de mestrado de Music Business Manager na Universidade
de Westminster, em Londres, juntando a formação em Gestão à sua paixão pela
música.
Mas se até então
qualquer cidadão europeu podia residir livremente no Reino Unido, a partir de
Janeiro as regras de entrada no país são diferentes: existe um novo sistema de
imigração por pontos que pretende atrair apenas migrantes que apresentem níveis
altos de competências em áreas qualificadas – o que já era uma bandeira
política da campanha do primeiro-ministro, Boris Johnson, e um dos temas mais
quentes do debate à volta do “Brexit”.
Doravante, para
residir ou trabalhar neste país é preciso obter um mínimo de 70 pontos: o
domínio da língua inglesa (dez pontos), ter uma oferta de trabalho aprovada
pelo Ministério da Administração Interna (20 pontos), adequado ao nível de
ensino de candidato (20 pontos), e, na maioria dos casos, com um salário mínimo
de 25.600 libras anuais, ou seja, 30.200 euros (20 pontos).
Com estes
requisitos, o sistema de pontos fecha fronteiras aos trabalhadores europeus sem
qualificações – afectando quem trabalha em fábricas, na restauração ou nas
limpezas. O mesmo acontece com “licenciados que desempenhem funções
não-consideradas governamentalmente como altamente qualificadas ou
prioritárias”, explica a investigadora Ana Isabel Xavier, professora associada
do Departamento de Relações Internacionais da Universidade Autónoma de Lisboa.
Mas, independentemente do perfil de quem emigra, a entrada no Reino Unido
implicará, de forma geral, “mais controlo, mais burocracia, mais barreiras e
mais custos”, conclui a investigadora.
Um sistema
“arrogante”
Há mais de um ano
que Beatriz tem acompanhado as novidades deste sistema de pontos. “No início, desvalorizei
um bocado. Pensei que fosse daquelas coisas do ‘Brexit’ que voltavam atrás”,
recorda. Agora, volvidas horas no site do Governo inglês a reler os requisitos
necessários, a jovem não poupa nas críticas. “É um sistema arrogante,
exaustivo, que mostra frieza, falta de compaixão. Ver o Reino Unido a dizer às
pessoas que não são dignas de estar no país só porque não falam bem inglês ou
não têm qualificações é assustador”, critica.
As exigências
deste novo sistema de pontos deram um sabor agridoce ao sonho de Beatriz. Nos
últimos meses, foram várias as noites que passou a tratar dos documentos para
submeter o pedido do visto de estudante. Em vez de apresentar uma oferta de
emprego, teve de partilhar o certificado da universidade (onde constam documentos
como as habilitações académicas, a cópia do passaporte ou a cédula pessoal) e o
certificado de inglês. Mas o requisito que se revelou mais complicado foi o
comprovativo de que tem dinheiro suficiente para pagar o curso e se manter no
Reino Unido.
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Do visto
geral ao “innovator”
Este novo
sistema de imigração por pontos (Points-Based Immigration System), inspirado no
sistema australiano, já funcionava para os países fora da União Europeia. Mas,
a partir de 2021, também os migrantes europeus enfrentam vários critérios para
obter qualquer tipo de visto.
O visto
geral para qualificados exige uma oferta de emprego, adequada ao nível de
ensino do candidato, com um salário mínimo de 25.600 libras (30.200 euros), e o
domínio da língua inglesa. Existe também um visto de trabalhadores das áreas da
saúde e prestação de cuidados – neste caso, a entrada é prioritária, os
candidatos têm apoio exclusivo durante o processo de requerimento, e não lhes é
exigido alguns requisitos, nomeadamente o cumprimento do salário mínimo.
As pessoas
altamente qualificadas e investigadores nas áreas de ciências, humanidades,
engenheira, arte e tecnologia, podem pedir um visto de talento global, que
permite entrar no Reino Unido sem oferta de emprego – há também os vistos
start-up e innovator, e também um visto especial para outras profissões, como
desportistas.
Existe
ainda o visto de estudante (é preciso uma vaga de uma instituição com licença
do Ministério da Administração Interna, domínio da língua inglesa, e ter meios
financeiros suficientes para se sustentar e pagar o seu curso) e ainda o visto
de licenciado para ficar a trabalhar no Reino Unido ou para procurar trabalho
por um período máximo de dois anos (três anos para estudantes de doutoramento).
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Segundo as contas
do Governo inglês, para entrarem no país os alunos europeus têm de ter, à
partida, o valor da propina (a partir de 2021 as propinas duplicam para os
estudantes europeus, que deixam de pagar o mesmo que os alunos ingleses e pagam
a propina exigida aos não-europeus, o que pode implicar cerca de 20 mil libras,
ou 21.977 euros, anuais) e o valor suficiente para viver pelo menos durante
nove meses no país (se estudarem em Londres, o Governo inglês calcula cerca de
1465 euros por mês).
Como o arranque
do mestrado estava previsto para Setembro (a pandemia abriu a excepção de os
alunos poderem começar em Janeiro), em princípio Beatriz ainda pagará o mesmo
que os alunos ingleses (cerca de 10.500 libras, ou 11.684 euros). No entanto,
não contava que lhe fosse já exigido o dinheiro para viver durante nove meses.
Uma vez que não conseguiu atingir este valor, teve de partilhar o extracto da
sua conta bancária e da sua mãe, que também teve de assinar uma carta
comprometendo-se a enviar dinheiro, caso seja necessário. “Acredito que, se não
fosse teimosa, já teria desistido”, conclui Beatriz, que ainda aguarda
aprovação do Governo inglês para obter o visto.
“Não perco muito
em tentar”
Helena Monteiro é
também uma das várias portuguesas que se preparam para chegar ao Reino Unido
nos próximos meses. Em 2018, a jovem de 24 anos terminou o curso de Enfermagem
no Porto e não tardou até encontrar emprego: trabalhou em farmácias, clínicas
de análises e no Centro de Contacto do Serviço Nacional de Saúde. Mas muitos
destes trabalhos eram pagos a recibos verdes e com salários que a impediam de
sair de casa da família.
Para ganhar
autonomia e poder investir na sua formação, Helena trabalhou na Bélgica no
último ano, mas a barreira linguística fê-la procurar alternativas. No Reino
Unido atraem-na principalmente as ofertas de emprego que dão “segurança e
estabilidade” e as impressões de quem lá vive. “Conheço bastantes enfermeiros a
trabalhar lá que são felizes na sua escolha”, diz. “Se não fosse o ‘Brexit’,
provavelmente teria emigrado há mais tempo para lá. No entanto, decidi que não
perco muito em tentar”, acrescenta.
Já recebeu uma
oferta de emprego de um hospital inglês e já enviou vários documentos (como o
registo criminal, comprovativo de morada, certidão de nascimento) exigidos pela
entidade reguladora da profissão (Nursing and Midwifery Council). Apesar de
este já ser “um processo exaustivo”, ainda não iniciou o pedido do visto.
Para a jovem, o
sistema de pontos ainda não é claro e ainda não sabe se cumpre todos os
requisitos – nomeadamente o valor que receberá anualmente. Mas não está
preocupada: como é enfermeira, advinha-se um processo mais simples, uma vez que
existem agências especializadas que ajudam a tratar da burocracia junto do
Ministério da Administração Interna. Além disso, os enfermeiros são uma das
grandes excepções deste sistema: como constam na lista de carência de empregos
do Governo inglês, não precisam de cumprir todos os requisitos (como o limite
mínimo de salário).
Segundo a
investigadora Ana Isabel Xavier, estas brechas no sistema de migração deixam
“margem suficiente para alguma parcialidade, subjectividade e falta de
transparência que vai permitir análises ‘caso a caso’”, defende.
Aspirações
migratórias
O Reino Unido é
um dos principais destinos dos portugueses. No entanto, em 2016 o “sim” no
referendo do “Brexit” ditou uma baixa no fluxo migratório – que só foi
contrariada em 2019, por se prever uma emigração de “última hora” devido às
novas regras de entrada no país.
Segundo a
investigadora Ana Isabel Xavier, é expectável um impacto nas aspirações
migratórias dos portugueses que planeiam emigrar para o Reino Unido nos
próximos anos, principalmente dos trabalhadores não-qualificados – em que,
segundo os últimos dados dos censos britânicos, em 2010, figuram a maioria
(65%) dos emigrantes portugueses, apesar de a migração jovem e instruída ter
aumentado nos últimos anos.
O mesmo poderá
acontecer com a migração jovem. Com o “Brexit”, as universidades britânicas
deixam de fazer parte de programas de mobilidade jovem, como o Erasmus, ou de
projectos de apoio à investigação, como o Horizonte 2020. “Há uma indústria que
sempre viveu dos intercâmbios entre universidades privadas de estudantes europeus
e não-europeus que pode arriscar-se a ser eclipsada a muito curto prazo”,
conclui a investigadora e subdirectora do Observare – Observatório de Relações
Externas.
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Prescindir
de imigração “barata” e investir em ingleses “inactivos”
No início
do ano, a ministra do Interior, Priti Patel, apresentou o novo sistema de
imigração por pontos com o objectivo de forçar os empregadores a prescindirem
da “mão-de-obra barata” vinda de fora e permitir que o país retome o “controlo
absoluto” das fronteiras.
“Neste momento
há mais de 8,5 milhões de pessoas, com idades compreendidas entre os 16 e os 64
anos, economicamente inactivas. Queremos que as empresas invistam neles,
invistam nas suas competências e lhes dêem formação”, disse Priti Patel em
Fevereiro.
No entanto,
várias entidades empresariais alertaram para o previsível impacto negativo da
política no recrutamento nos sectores da agricultura, hotelaria ou restauração
– este tipo de “imigração barata” foi fundamental para o desenvolvimento da
economia inglesa nos anos 2000 e, de acordo com o Observatório das Migrações
britânico, 21% dos que desempenham funções não qualificadas no sector da
construção continuam a vir de outros países europeus, tal como 17% dos
trabalhadores em fábricas, 13% dos trabalhadores do sector da preparação da
comida, 11% dos condutores e 8% dos trabalhadores da área do lazer.
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De forma geral,
este novo sistema de pontos assinala uma mudança inédita no Reino Unido, que
“já não pretende ser a potência cultural e económica de outros tempos”, acrescenta
a investigadora Ana Isabel Xavier. Através do argumento da qualificação,
“transparece neste processo um aproveitamento político para, a pretexto,
endurecer a política de imigração. Foi um compromisso de Boris Johnson e a
pandemia e o ‘Brexit’ têm servido estrategicamente para as legitimar”, defende.
“Será que
continuo a servir para o Governo inglês?”
E, perante estas
várias limitações, o Reino Unido continuará a ser um destino atractivo, mesmo
para os migrantes qualificados? Como alerta a investigadora Ana Isabel Xavier,
“será essencialmente o impacto económico da pandemia, mais do que o ‘Brexit’,
que irá ditar ou não a atractividade de novos imigrantes” em países como o
Reino Unido.
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E quem já
residia no Reino Unido?
Os cidadãos
europeus que já residiam no Reino Unido puderam, juntamente com a família,
requerer o Estatuto de Residente no Reino Unido para cidadãos da UE (EU
Settlement Scheme) para continuar a viver no Reino Unido – a data limite para
apresentar o requerimento é 30 de Junho de 2021.
A
investigação “O Brexit e os emigrantes Portugueses no Reino Unido”, de Raquel
Xavier Rocha, Jennifer McGarrigle e
Alina Esteves, reúne o testemunho de 1012 portugueses residentes no Reino Unido
e conclui que, apesar de a maioria ser contra o Brexit, continua a querer
permanecer no país (cerca de metade deseja permanecer no país até à saída
oficial e os restantes aguardam novos progressos nas negociações entre a União
Europeia e o Reino Unido).
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No entanto, para
Helena, este arquipélago continua a ser a primeira escolha. Apesar do clima de
insegurança causado pelo “Brexit” e pela pandemia, tenta “manter-se positiva”.
“Acredito que é melhor do que trabalhar em Portugal”, defende. A jovem parte
sem data de regresso – mas adianta que “tudo vai depender” da adaptação ao país
e ao emprego. No entanto, a grande preocupação em conceber planos a longo prazo
é não conseguir levar a mãe para o Reino Unido. “Ela não cumpre os requisitos,
não fala inglês, não tem um elevado nível de escolaridade”, explica.
O “Brexit” também
obriga Beatriz a delinear os seus planos “sem certezas”. “Depois de estudar,
queria ficar lá a viver. Agora já não tenho essa vontade. Todo o processo do
‘Brexit’ mostra a xenofobia que ainda existe”, defende a jovem, que já tem
alternativas em mente. “Barcelona também tem ofertas de emprego na área de
gestão musical que me atraem. Acho que agora preferiria trabalhar lá”, conclui.
Por enquanto, Beatriz depara-se com mais perguntas do que respostas. “Agora sou
estudante e cumpro os requisitos. E depois? Será que continuo a servir para o
Governo inglês?”
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