segunda-feira, 4 de janeiro de 2021

Emigrar para o Reino Unido? Agora é preciso enfrentar um sistema de pontos “arrogante” e “exaustivo”

 



REINO UNIDO

Emigrar para o Reino Unido? Agora é preciso enfrentar um sistema de pontos “arrogante” e “exaustivo”

 

A partir de Janeiro, quem quiser trabalhar ou viver no Reino Unido precisa de ter um mínimo de pontos e as fronteiras fecham-se a migrantes não-qualificados ou que não falam inglês. Para quem planeia levantar voo nos próximos meses, este novo sistema de imigração é “arrogante”, acarreta custos e burocracias e obriga a desenhar planos “sem certezas”.

 

Andreia Friaças

4 de Janeiro de 2021, 8:12

https://www.publico.pt/2021/01/04/p3/noticia/emigrar-reino-unido-preciso-enfrentar-sistema-pontos-arrogante-exaustivo-1944288?fbclid=IwAR3vxnQLof22F3i-1ZIEuxD5KQyLDmHPXFcLABteeBQwwPqTJmWVLWOqHQk

 

2021 é o ano em que Beatriz Marques concretiza o seu grande sonho. Nem a realidade nublosa do “Brexit” nem as reviravoltas da pandemia travaram a vontade que se arrasta desde a adolescência: deixar Lisboa e ir estudar para Londres, no Reino Unido.

 

Aos 15 anos, a jovem meteu “na cabeça” que um dia viveria neste arquipélago e desde então que todas as suas escolhas foram pensadas à luz deste objectivo. Tirou o curso de Gestão (por considerar uma área com futuro internacional) e, há dois anos, começou a trabalhar no banco BNP Paribas para juntar “todos os cêntimos para a viagem”, explica a jovem, hoje com 26 anos.

 

No arranque do novo ano, Beatriz despede-se dos longos turnos a responder às dúvidas dos clientes do banco e prepara-se para finalmente levantar voo: no final de Janeiro começa as aulas de mestrado de Music Business Manager na Universidade de Westminster, em Londres, juntando a formação em Gestão à sua paixão pela música.

 

Mas se até então qualquer cidadão europeu podia residir livremente no Reino Unido, a partir de Janeiro as regras de entrada no país são diferentes: existe um novo sistema de imigração por pontos que pretende atrair apenas migrantes que apresentem níveis altos de competências em áreas qualificadas – o que já era uma bandeira política da campanha do primeiro-ministro, Boris Johnson, e um dos temas mais quentes do debate à volta do “Brexit”.

 

Doravante, para residir ou trabalhar neste país é preciso obter um mínimo de 70 pontos: o domínio da língua inglesa (dez pontos), ter uma oferta de trabalho aprovada pelo Ministério da Administração Interna (20 pontos), adequado ao nível de ensino de candidato (20 pontos), e, na maioria dos casos, com um salário mínimo de 25.600 libras anuais, ou seja, 30.200 euros (20 pontos).

 

Com estes requisitos, o sistema de pontos fecha fronteiras aos trabalhadores europeus sem qualificações – afectando quem trabalha em fábricas, na restauração ou nas limpezas. O mesmo acontece com “licenciados que desempenhem funções não-consideradas governamentalmente como altamente qualificadas ou prioritárias”, explica a investigadora Ana Isabel Xavier, professora associada do Departamento de Relações Internacionais da Universidade Autónoma de Lisboa. Mas, independentemente do perfil de quem emigra, a entrada no Reino Unido implicará, de forma geral, “mais controlo, mais burocracia, mais barreiras e mais custos”, conclui a investigadora.

 

Um sistema “arrogante”

Há mais de um ano que Beatriz tem acompanhado as novidades deste sistema de pontos. “No início, desvalorizei um bocado. Pensei que fosse daquelas coisas do ‘Brexit’ que voltavam atrás”, recorda. Agora, volvidas horas no site do Governo inglês a reler os requisitos necessários, a jovem não poupa nas críticas. “É um sistema arrogante, exaustivo, que mostra frieza, falta de compaixão. Ver o Reino Unido a dizer às pessoas que não são dignas de estar no país só porque não falam bem inglês ou não têm qualificações é assustador”, critica.

 

As exigências deste novo sistema de pontos deram um sabor agridoce ao sonho de Beatriz. Nos últimos meses, foram várias as noites que passou a tratar dos documentos para submeter o pedido do visto de estudante. Em vez de apresentar uma oferta de emprego, teve de partilhar o certificado da universidade (onde constam documentos como as habilitações académicas, a cópia do passaporte ou a cédula pessoal) e o certificado de inglês. Mas o requisito que se revelou mais complicado foi o comprovativo de que tem dinheiro suficiente para pagar o curso e se manter no Reino Unido.

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Do visto geral ao “innovator”

Este novo sistema de imigração por pontos (Points-Based Immigration System), inspirado no sistema australiano, já funcionava para os países fora da União Europeia. Mas, a partir de 2021, também os migrantes europeus enfrentam vários critérios para obter qualquer tipo de visto.

 

O visto geral para qualificados exige uma oferta de emprego, adequada ao nível de ensino do candidato, com um salário mínimo de 25.600 libras (30.200 euros), e o domínio da língua inglesa. Existe também um visto de trabalhadores das áreas da saúde e prestação de cuidados – neste caso, a entrada é prioritária, os candidatos têm apoio exclusivo durante o processo de requerimento, e não lhes é exigido alguns requisitos, nomeadamente o cumprimento do salário mínimo.

 

As pessoas altamente qualificadas e investigadores nas áreas de ciências, humanidades, engenheira, arte e tecnologia, podem pedir um visto de talento global, que permite entrar no Reino Unido sem oferta de emprego – há também os vistos start-up e innovator, e também um visto especial para outras profissões, como desportistas.

 

Existe ainda o visto de estudante (é preciso uma vaga de uma instituição com licença do Ministério da Administração Interna, domínio da língua inglesa, e ter meios financeiros suficientes para se sustentar e pagar o seu curso) e ainda o visto de licenciado para ficar a trabalhar no Reino Unido ou para procurar trabalho por um período máximo de dois anos (três anos para estudantes de doutoramento).

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Segundo as contas do Governo inglês, para entrarem no país os alunos europeus têm de ter, à partida, o valor da propina (a partir de 2021 as propinas duplicam para os estudantes europeus, que deixam de pagar o mesmo que os alunos ingleses e pagam a propina exigida aos não-europeus, o que pode implicar cerca de 20 mil libras, ou 21.977 euros, anuais) e o valor suficiente para viver pelo menos durante nove meses no país (se estudarem em Londres, o Governo inglês calcula cerca de 1465 euros por mês).

 

Como o arranque do mestrado estava previsto para Setembro (a pandemia abriu a excepção de os alunos poderem começar em Janeiro), em princípio Beatriz ainda pagará o mesmo que os alunos ingleses (cerca de 10.500 libras, ou 11.684 euros). No entanto, não contava que lhe fosse já exigido o dinheiro para viver durante nove meses. Uma vez que não conseguiu atingir este valor, teve de partilhar o extracto da sua conta bancária e da sua mãe, que também teve de assinar uma carta comprometendo-se a enviar dinheiro, caso seja necessário. “Acredito que, se não fosse teimosa, já teria desistido”, conclui Beatriz, que ainda aguarda aprovação do Governo inglês para obter o visto.

 

“Não perco muito em tentar”

Helena Monteiro é também uma das várias portuguesas que se preparam para chegar ao Reino Unido nos próximos meses. Em 2018, a jovem de 24 anos terminou o curso de Enfermagem no Porto e não tardou até encontrar emprego: trabalhou em farmácias, clínicas de análises e no Centro de Contacto do Serviço Nacional de Saúde. Mas muitos destes trabalhos eram pagos a recibos verdes e com salários que a impediam de sair de casa da família.

 

Para ganhar autonomia e poder investir na sua formação, Helena trabalhou na Bélgica no último ano, mas a barreira linguística fê-la procurar alternativas. No Reino Unido atraem-na principalmente as ofertas de emprego que dão “segurança e estabilidade” e as impressões de quem lá vive. “Conheço bastantes enfermeiros a trabalhar lá que são felizes na sua escolha”, diz. “Se não fosse o ‘Brexit’, provavelmente teria emigrado há mais tempo para lá. No entanto, decidi que não perco muito em tentar”, acrescenta.

 

Já recebeu uma oferta de emprego de um hospital inglês e já enviou vários documentos (como o registo criminal, comprovativo de morada, certidão de nascimento) exigidos pela entidade reguladora da profissão (Nursing and Midwifery Council). Apesar de este já ser “um processo exaustivo”, ainda não iniciou o pedido do visto.

 

Para a jovem, o sistema de pontos ainda não é claro e ainda não sabe se cumpre todos os requisitos – nomeadamente o valor que receberá anualmente. Mas não está preocupada: como é enfermeira, advinha-se um processo mais simples, uma vez que existem agências especializadas que ajudam a tratar da burocracia junto do Ministério da Administração Interna. Além disso, os enfermeiros são uma das grandes excepções deste sistema: como constam na lista de carência de empregos do Governo inglês, não precisam de cumprir todos os requisitos (como o limite mínimo de salário).

 

Segundo a investigadora Ana Isabel Xavier, estas brechas no sistema de migração deixam “margem suficiente para alguma parcialidade, subjectividade e falta de transparência que vai permitir análises ‘caso a caso’”, defende.

 

Aspirações migratórias

O Reino Unido é um dos principais destinos dos portugueses. No entanto, em 2016 o “sim” no referendo do “Brexit” ditou uma baixa no fluxo migratório – que só foi contrariada em 2019, por se prever uma emigração de “última hora” devido às novas regras de entrada no país.

 

Segundo a investigadora Ana Isabel Xavier, é expectável um impacto nas aspirações migratórias dos portugueses que planeiam emigrar para o Reino Unido nos próximos anos, principalmente dos trabalhadores não-qualificados – em que, segundo os últimos dados dos censos britânicos, em 2010, figuram a maioria (65%) dos emigrantes portugueses, apesar de a migração jovem e instruída ter aumentado nos últimos anos.

 

O mesmo poderá acontecer com a migração jovem. Com o “Brexit”, as universidades britânicas deixam de fazer parte de programas de mobilidade jovem, como o Erasmus, ou de projectos de apoio à investigação, como o Horizonte 2020. “Há uma indústria que sempre viveu dos intercâmbios entre universidades privadas de estudantes europeus e não-europeus que pode arriscar-se a ser eclipsada a muito curto prazo”, conclui a investigadora e subdirectora do Observare – Observatório de Relações Externas.

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Prescindir de imigração “barata” e investir em ingleses “inactivos”

No início do ano, a ministra do Interior, Priti Patel, apresentou o novo sistema de imigração por pontos com o objectivo de forçar os empregadores a prescindirem da “mão-de-obra barata” vinda de fora e permitir que o país retome o “controlo absoluto” das fronteiras.

 

“Neste momento há mais de 8,5 milhões de pessoas, com idades compreendidas entre os 16 e os 64 anos, economicamente inactivas. Queremos que as empresas invistam neles, invistam nas suas competências e lhes dêem formação”, disse Priti Patel em Fevereiro.

 

No entanto, várias entidades empresariais alertaram para o previsível impacto negativo da política no recrutamento nos sectores da agricultura, hotelaria ou restauração – este tipo de “imigração barata” foi fundamental para o desenvolvimento da economia inglesa nos anos 2000 e, de acordo com o Observatório das Migrações britânico, 21% dos que desempenham funções não qualificadas no sector da construção continuam a vir de outros países europeus, tal como 17% dos trabalhadores em fábricas, 13% dos trabalhadores do sector da preparação da comida, 11% dos condutores e 8% dos trabalhadores da área do lazer.

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De forma geral, este novo sistema de pontos assinala uma mudança inédita no Reino Unido, que “já não pretende ser a potência cultural e económica de outros tempos”, acrescenta a investigadora Ana Isabel Xavier. Através do argumento da qualificação, “transparece neste processo um aproveitamento político para, a pretexto, endurecer a política de imigração. Foi um compromisso de Boris Johnson e a pandemia e o ‘Brexit’ têm servido estrategicamente para as legitimar”, defende.

 

“Será que continuo a servir para o Governo inglês?”

E, perante estas várias limitações, o Reino Unido continuará a ser um destino atractivo, mesmo para os migrantes qualificados? Como alerta a investigadora Ana Isabel Xavier, “será essencialmente o impacto económico da pandemia, mais do que o ‘Brexit’, que irá ditar ou não a atractividade de novos imigrantes” em países como o Reino Unido.

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E quem já residia no Reino Unido?

Os cidadãos europeus que já residiam no Reino Unido puderam, juntamente com a família, requerer o Estatuto de Residente no Reino Unido para cidadãos da UE (EU Settlement Scheme) para continuar a viver no Reino Unido – a data limite para apresentar o requerimento é 30 de Junho de 2021.

 

A investigação “O Brexit e os emigrantes Portugueses no Reino Unido”, de Raquel Xavier Rocha, Jennifer McGarrigle  e Alina Esteves, reúne o testemunho de 1012 portugueses residentes no Reino Unido e conclui que, apesar de a maioria ser contra o Brexit, continua a querer permanecer no país (cerca de metade deseja permanecer no país até à saída oficial e os restantes aguardam novos progressos nas negociações entre a União Europeia e o Reino Unido).

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No entanto, para Helena, este arquipélago continua a ser a primeira escolha. Apesar do clima de insegurança causado pelo “Brexit” e pela pandemia, tenta “manter-se positiva”. “Acredito que é melhor do que trabalhar em Portugal”, defende. A jovem parte sem data de regresso – mas adianta que “tudo vai depender” da adaptação ao país e ao emprego. No entanto, a grande preocupação em conceber planos a longo prazo é não conseguir levar a mãe para o Reino Unido. “Ela não cumpre os requisitos, não fala inglês, não tem um elevado nível de escolaridade”, explica.

 

O “Brexit” também obriga Beatriz a delinear os seus planos “sem certezas”. “Depois de estudar, queria ficar lá a viver. Agora já não tenho essa vontade. Todo o processo do ‘Brexit’ mostra a xenofobia que ainda existe”, defende a jovem, que já tem alternativas em mente. “Barcelona também tem ofertas de emprego na área de gestão musical que me atraem. Acho que agora preferiria trabalhar lá”, conclui. Por enquanto, Beatriz depara-se com mais perguntas do que respostas. “Agora sou estudante e cumpro os requisitos. E depois? Será que continuo a servir para o Governo inglês?”

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