segunda-feira, 6 de abril de 2020

Eurogrupo: A tocar violino enquanto a covid-19 incendeia Roma, Madrid e a zona euro com elas?



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OPINIÃO CORONAVÍRUS
Eurogrupo: A tocar violino enquanto a covid-19 incendeia Roma, Madrid e a zona euro com elas?

Estamos, por conseguinte, confrontados com um diálogo de surdos que esta crise testará ao limite.

RICARDO CABRAL
6 de Abril de 2020, 6:00

Mário Centeno tem uma tarefa hercúlea, não invejável, como presidente do Eurogrupo. Está obrigado a procurar construir um consenso sobre o novo instrumento de financiamento (ou comum, i.e., dívida mutualizada, ou de índole nacional) de combate à covid-19. Mas, na qualidade de presidente do Eurogrupo, deve liderar e definir a agenda, de forma a que o Eurogrupo possa definir políticas macroeconómicas eficazes e actuantes para a zona euro.

Senão vejamos. A proposta de Mário Centeno é que o Mecanismo Europeu de Estabilidade (MEE) conceda financiamento aos Estados-membros da zona euro, até ao limite de 2% do PIB, com “alguma” condicionalidade, i.e., os países devedores estariam obrigados a cumprir algumas condições orçamentais para obterem empréstimos do MEE de até 2% do PIB.

Itália e Espanha não querem aceitar qualquer condicionalidade. Mas os governos dos países do norte da Europa – que mais beneficiam e beneficiaram com o euro –, nomeadamente a Holanda, a Finlândia, Áustria e a Alemanha, exigem a referida condicionalidade.

Diálogo de surdos na Zona Euro
Não é que esses Estados-membros do Norte da Europa não vejam a necessidade de estímulos orçamentais de elevada dimensão para combater a covid-19. Por exemplo, a Alemanha aprovou um pacote de cerca de 15% do PIB (500 mil milhões de euros). Contudo, esses Estados-membros consideram que esses programas devem ser de índole nacional, i.e., cada um por si.

Na realidade, a crise mostra que a percepção sobre o que é a zona euro difere entre os Estados-membros do Norte da Europa, credores, e os Estados-membros do Sul da Europa, devedores.

Para os primeiros, os benefícios que derivam do euro resultam do mérito das economias dos seus países, internacionalmente mais “competitivas”. Pelo que não entendem porque estão obrigados a apoiar os Estados-membros do Sul da Europa que não sabem ser “competitivos”. Não entendem – ou não querem entender – que o euro é a principal razão pela qual as economias dos Estados-membros do Norte são relativamente mais “competitivas”. Se o euro não existisse acabava-se em larga medida essa vantagem “competitiva” face aos países do Sul que, na realidade, não é (só) mérito das economias dos primeiros, é sobretudo o resultado de um subsídio, através da moeda única, das economias dos segundos às economias dos primeiros.

Estamos, por conseguinte, confrontados com um diálogo de surdos que esta crise testará ao limite.


A alguns dos governantes desses países faltará a percepção e a coragem para enfrentar a opinião das próprias elites e de grande parte da população que pensa (erradamente) que está a suportar os custos dos comportamentos dos povos da Europa do Sul.

Consensos sobre propostas ineficazes são contraproducentes
É certo que, como referido, Mário Centeno tem a obrigação de procurar construir um consenso entre os Estados-membros do Norte que não querem ajudar financeiramente os Estados-membros do Sul mais afectados pelo coronavírus, e estes últimos, que necessitam e exigem esse financiamento agora (ou nunca).


Mas o problema é que a proposta do Eurogrupo é uma perda de tempo, de energia e de capital de confiança dos mais altos responsáveis políticos europeus. De facto, 2% do PIB comprará, se tivermos sorte, um mês – mais provavelmente 15 dias – de tempo a países como Itália, Espanha ou Portugal, tal é o impacto da covid-19 nas contas públicas dos países afectados. São “amendoins” face ao impacto da doença na actividade económica e nas contas públicas desses países.

De facto, o banco Goldman Sachs estima que a dívida pública de Itália subirá de 134,8% do PIB no final de 2019 para 160% do PIB até ao final do ano.

Se a pandemia durar para além do Verão, o PIB dos países mais afectados pela covid-19 poderá cair a taxas impensáveis, podendo a recessão económica ser muito, mas mesmo muito superior a 10% do PIB. A título de exemplo, o presidente da Reserva Federal de St. Louis, James Bullard, argumentou mesmo que o PIB dos EUA poderia cair 50% no segundo trimestre e a taxa de desemprego aumentar para 30%.

De acordo com a Bloomberg, uma nota de analistas do banco alemão Commerzbank, detido em 15% pelo Estado alemão, enviada a clientes desse banco, aconselhou os investidores a vender dívida pública italiana, argumentando que o rating dessa dívida irá inevitavelmente ser reduzido para a categoria de “lixo” – algo que a ocorrer, com as actuais regras (que, no entanto, poderiam ser modificadas pelo Conselho do BCE), impediria o Eurosistema de adquirir dívida pública italiana no mercado secundário.

Essa nota do Commerzbank provocou, aliás, ultraje em Itália, tendo sido considerada como um ataque a Itália num momento de profunda dificuldade.

Nesse contexto, o que são 2% do PIB de empréstimos do MEE com condicionalidade a Itália, senão algo que é quase insultuoso?

A confirmarem-se tais taxas de contracção económica, estamos perante “game changers”: uma alteração das regras do jogo!
Como também argumenta o editorial do Financial Times de sexta-feira, com os mercados de trabalho “flexíveis” de hoje (em particular nos países do Sul), alguns dos instrumentos fundamentais de combate à crise – os estabilizadores automáticos, em particular, o subsídio de desemprego – não funcionam.

Na economia portuguesa, em particular, centenas de milhares de pessoas não têm acesso ao subsídio de desemprego, ou porque trabalham a recibo verde, ou porque têm contratos a prazo, ou porque recebem bolsas.

O mundo pós-covid-19 será muito diferente, com o referido editorial do Financial Times a defender precisamente uma sociedade menos desigual e um Estado mais interventivo.

Por conseguinte, no presente, na zona euro, seria necessário assegurar a criação de um instrumento de financiamento mutualizado, sem condicionalidade, de entre 10% e 20% do PIB para fazer face aos efeitos económicos desta pandemia.

Nestas condições, Mário Centeno não deveria sequer propor e muito menos defender tal programa de empréstimos de até 2% do PIB do MEE. Porque essa proposta não cumpre os requisitos mínimos, numa altura tão crítica e em que o tempo é escasso.

Essa proposta demonstra que a situação continua a não ser correctamente avaliada pelo Eurogrupo, que aparenta não perceber nem o seu papel nem a sua responsabilidade no actual contexto de crise.

Pensar nos próximos passos
Nas próximas semanas e meses é possível que o enfoque mude da saúde pública para a segurança alimentar. Nesse contexto, são pertinentes as queixas das associações de agricultores pelo facto de os pequenos agricultores não conseguirem escoar os seus produtos devido à quebra de procura e ao encerramento dos mercados. O mesmo estará a acontecer com os pescadores.

Em particular, o Estado deveria estar já a aumentar as reservas estratégicas do país de alimentos, adquirindo a produção agrícola excedentária a esses pequenos agricultores.

P.S.: O mito popular sugere que Nero terá tocado violino durante o grande incêndio de Roma em 64 d.C.. Contudo, o violino só foi inventado 1500 anos depois. Nero, no entanto, tocava um tipo de harpa (cítara), mas não existe prova que o tenha feito enquanto Roma ardia.

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