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OPINIÃO
CORONAVÍRUS
Eurogrupo: A tocar violino enquanto a covid-19 incendeia
Roma, Madrid e a zona euro com elas?
Estamos, por
conseguinte, confrontados com um diálogo de surdos que esta crise testará ao
limite.
RICARDO CABRAL
6 de Abril de
2020, 6:00
Mário Centeno tem
uma tarefa hercúlea, não invejável, como presidente do Eurogrupo. Está obrigado
a procurar construir um consenso sobre o novo instrumento de financiamento (ou
comum, i.e., dívida mutualizada, ou de índole nacional) de combate à covid-19. Mas,
na qualidade de presidente do Eurogrupo, deve liderar e definir a agenda, de
forma a que o Eurogrupo possa definir políticas macroeconómicas eficazes e
actuantes para a zona euro.
Senão vejamos. A
proposta de Mário Centeno é que o Mecanismo Europeu de Estabilidade (MEE)
conceda financiamento aos Estados-membros da zona euro, até ao limite de 2% do
PIB, com “alguma” condicionalidade, i.e., os países devedores estariam
obrigados a cumprir algumas condições orçamentais para obterem empréstimos do
MEE de até 2% do PIB.
Itália e Espanha
não querem aceitar qualquer condicionalidade. Mas os governos dos países do
norte da Europa – que mais beneficiam e beneficiaram com o euro –, nomeadamente
a Holanda, a Finlândia, Áustria e a Alemanha, exigem a referida
condicionalidade.
Diálogo de surdos
na Zona Euro
Não é que esses
Estados-membros do Norte da Europa não vejam a necessidade de estímulos
orçamentais de elevada dimensão para combater a covid-19. Por exemplo, a
Alemanha aprovou um pacote de cerca de 15% do PIB (500 mil milhões de euros).
Contudo, esses Estados-membros consideram que esses programas devem ser de
índole nacional, i.e., cada um por si.
Na realidade, a
crise mostra que a percepção sobre o que é a zona euro difere entre os
Estados-membros do Norte da Europa, credores, e os Estados-membros do Sul da
Europa, devedores.
Para os
primeiros, os benefícios que derivam do euro resultam do mérito das economias
dos seus países, internacionalmente mais “competitivas”. Pelo que não entendem
porque estão obrigados a apoiar os Estados-membros do Sul da Europa que não
sabem ser “competitivos”. Não entendem – ou não querem entender – que o euro é
a principal razão pela qual as economias dos Estados-membros do Norte são
relativamente mais “competitivas”. Se o euro não existisse acabava-se em larga
medida essa vantagem “competitiva” face aos países do Sul que, na realidade,
não é (só) mérito das economias dos primeiros, é sobretudo o resultado de um
subsídio, através da moeda única, das economias dos segundos às economias dos
primeiros.
Estamos, por
conseguinte, confrontados com um diálogo de surdos que esta crise testará ao
limite.
A alguns dos
governantes desses países faltará a percepção e a coragem para enfrentar a
opinião das próprias elites e de grande parte da população que pensa
(erradamente) que está a suportar os custos dos comportamentos dos povos da
Europa do Sul.
Consensos sobre
propostas ineficazes são contraproducentes
É certo que, como
referido, Mário Centeno tem a obrigação de procurar construir um consenso entre
os Estados-membros do Norte que não querem ajudar financeiramente os
Estados-membros do Sul mais afectados pelo coronavírus, e estes últimos, que
necessitam e exigem esse financiamento agora (ou nunca).
Mas o problema é
que a proposta do Eurogrupo é uma perda de tempo, de energia e de capital de
confiança dos mais altos responsáveis políticos europeus. De facto, 2% do PIB
comprará, se tivermos sorte, um mês – mais provavelmente 15 dias – de tempo a
países como Itália, Espanha ou Portugal, tal é o impacto da covid-19 nas contas
públicas dos países afectados. São “amendoins” face ao impacto da doença na
actividade económica e nas contas públicas desses países.
De facto, o banco
Goldman Sachs estima que a dívida pública de Itália subirá de 134,8% do PIB no
final de 2019 para 160% do PIB até ao final do ano.
Se a pandemia
durar para além do Verão, o PIB dos países mais afectados pela covid-19 poderá
cair a taxas impensáveis, podendo a recessão económica ser muito, mas mesmo
muito superior a 10% do PIB. A título de exemplo, o presidente da Reserva
Federal de St. Louis, James Bullard, argumentou mesmo que o PIB dos EUA poderia
cair 50% no segundo trimestre e a taxa de desemprego aumentar para 30%.
De acordo com a
Bloomberg, uma nota de analistas do banco alemão Commerzbank, detido em 15%
pelo Estado alemão, enviada a clientes desse banco, aconselhou os investidores
a vender dívida pública italiana, argumentando que o rating dessa dívida irá
inevitavelmente ser reduzido para a categoria de “lixo” – algo que a ocorrer,
com as actuais regras (que, no entanto, poderiam ser modificadas pelo Conselho
do BCE), impediria o Eurosistema de adquirir dívida pública italiana no mercado
secundário.
Essa nota do
Commerzbank provocou, aliás, ultraje em Itália, tendo sido considerada como um
ataque a Itália num momento de profunda dificuldade.
Nesse contexto, o
que são 2% do PIB de empréstimos do MEE com condicionalidade a Itália, senão
algo que é quase insultuoso?
A confirmarem-se
tais taxas de contracção económica, estamos perante “game changers”: uma
alteração das regras do jogo!
Como também
argumenta o editorial do Financial Times de sexta-feira, com os mercados de
trabalho “flexíveis” de hoje (em particular nos países do Sul), alguns dos
instrumentos fundamentais de combate à crise – os estabilizadores automáticos,
em particular, o subsídio de desemprego – não funcionam.
Na economia
portuguesa, em particular, centenas de milhares de pessoas não têm acesso ao
subsídio de desemprego, ou porque trabalham a recibo verde, ou porque têm
contratos a prazo, ou porque recebem bolsas.
O mundo
pós-covid-19 será muito diferente, com o referido editorial do Financial Times
a defender precisamente uma sociedade menos desigual e um Estado mais
interventivo.
Por conseguinte,
no presente, na zona euro, seria necessário assegurar a criação de um
instrumento de financiamento mutualizado, sem condicionalidade, de entre 10% e
20% do PIB para fazer face aos efeitos económicos desta pandemia.
Nestas condições,
Mário Centeno não deveria sequer propor e muito menos defender tal programa de
empréstimos de até 2% do PIB do MEE. Porque essa proposta não cumpre os
requisitos mínimos, numa altura tão crítica e em que o tempo é escasso.
Essa proposta
demonstra que a situação continua a não ser correctamente avaliada pelo
Eurogrupo, que aparenta não perceber nem o seu papel nem a sua responsabilidade
no actual contexto de crise.
Pensar nos
próximos passos
Nas próximas
semanas e meses é possível que o enfoque mude da saúde pública para a segurança
alimentar. Nesse contexto, são pertinentes as queixas das associações de
agricultores pelo facto de os pequenos agricultores não conseguirem escoar os
seus produtos devido à quebra de procura e ao encerramento dos mercados. O
mesmo estará a acontecer com os pescadores.
Em particular, o
Estado deveria estar já a aumentar as reservas estratégicas do país de
alimentos, adquirindo a produção agrícola excedentária a esses pequenos
agricultores.
P.S.: O mito
popular sugere que Nero terá tocado violino durante o grande incêndio de Roma
em 64 d.C.. Contudo, o violino só foi inventado 1500 anos depois. Nero, no
entanto, tocava um tipo de harpa (cítara), mas não existe prova que o tenha
feito enquanto Roma ardia.
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