domingo, 24 de dezembro de 2023

13 de Dezembro de 2023: Loja A Vida Portuguesa do Chiado vai fechar para dar lugar a alojamento turístico

 




Loja A Vida Portuguesa do Chiado vai fechar para dar lugar a alojamento turístico

 

Estabelecimento aberto em 2006 na Rua Anchieta foi o primeiro da marca. “Temos de fazer uma reflexão sobre o comércio local em Lisboa”, diz Catarina Portas, que procura novo espaço.

 

Samuel Alemão

13 de Dezembro de 2023, 14:07

https://www.publico.pt/2023/12/13/local/noticia/loja-vida-portuguesa-chiado-vai-fechar-dar-lugar-alojamento-turistico-2073536

 

A marca A Vida Portuguesa vai encerrar a sua loja situada na Rua Anchieta, ao Chiado, dentro de cinco a seis meses, para dar lugar a uma actividade de apoio a um projecto de alojamento turístico, que já funciona no resto do prédio. A informação foi dada, ao final da manhã desta quarta-feira, através de um comunicado em que se lamenta o actual estado de pressão sobre grande parte do comércio do centro de Lisboa, incapaz de resistir ao peso do turismo de apelo imediato. “Tal como o turismo nos ajudou a passar a crise de 2008, hoje são os seus próprios agentes a condenar ao desaparecimento o comércio independente da cidade. Não somos uma excepção”, diz o texto partilhado, no qual se apela a uma reflexão mais alargada sobre as causas do fenómeno.

 

“As coisas estão a tornar-se muito complicadas, não apenas para os comerciantes, mas também para a cidade. Criou-se um grande desequilíbrio, causado pelo turismo. Temos de começar uma discussão pública em torno do comércio local e do que queremos para a cidade”, diz ao PÚBLICO Catarina Portas, a dona da empresa e fundadora da loja criada em 2006, que se notabilizou pela venda de produtos tradicionais portugueses. Até ao encerramento, a empresária procura uma nova localização no Chiado.

 

O fecho de portas deve-se ao facto de o senhorio do prédio onde a loja de A Vida Portuguesa funciona há 17 anos ter decidido não renovar o contrato, para assim poder levar por diante o alargamento ao rés-do-chão, onde funciona a loja, da actividade do alojamento local existente no número 11 da Rua Anchieta. “Soubemos disto há uns meses. Começámos as negociações, que se foram arrastando, mas percebemos que não havia interesse em renovar o contrato. Agora, vamos ter sair, talvez em Maio ou Junho, ainda não sabemos bem, porque precisamos de encontrar um espaço”, diz Catarina Portas, afirmando o desejo de se manter na zona do Chiado. “Sabemos que não será fácil, tendo em conta os valores que se estão a pedir. Andamos a ver coisas, vamos ver se conseguimos”, afirma.

 

Um objectivo que poderá não ser conseguido, tal o nível das rendas actualmente praticadas na capital e, em particular, no seu centro histórico. O que leva a empresária a pedir uma reflexão pública alargada sobre o papel do turismo na capital e o impacto que o mesmo está a ter em diversos sectores da vida das pessoas, em particular do comércio tradicional. “As coisas estão a tornar-se bastante complicadas para os comerciantes e para a cidade. Estamos a ver muitas lojas que existiam há décadas com dificuldades em manterem-se em funcionamento, mas também noutras áreas. Não tenho nada contra o turismo. Ele é importante. Mas as cidades fazem-se de equilíbrio e, neste momento, estamos numa fase de desequilíbrio”, diz Portas, exigindo que as entidades públicas encetem a discussão sobre o actual estado de coisas, sob pena de descaracterização da cidade.

 

E esse debate, sustenta Catarina Portas, deverá dar lugar a medidas concretas, para que se altere a tendência, dos últimos anos, de fecho de comércio tradicional e sua substituição por negócios que tentam obter lucro imediato da onda turística. “Poderíamos começar pelo licenciamento zero”, sugere, referindo-se ao expediente de agilização burocrática que, a troco de pagamento de taxas municipais, tem permitido abrir negócios de forma mais expedita, saltando várias etapas administrativas do processo de abertura de uma actividade comercial. “Não há qualquer espécie de controlo sobre a abertura de novas lojas. Têm de se questionar se vale mesmo a pena ter dez bares de seguida na Rua de São Paulo”, afirma a empresária, que também vê com bons olhos a assunção de um papel mais interventivo da Câmara Municipal de Lisboa na subsistência dos negócios tradicionais.

 

Intervenção da câmara?

Tendo em conta as actuais condicionantes do mercado imobiliário, esse protagonismo da autarquia poderia passar, defende, pela compra ou arrendamento de espaços comerciais em determinadas zonas do centro da cidade, que depois seriam disponibilizados aos comerciantes a valores mais compatíveis com as suas possibilidades. “Isso já é feito em algumas cidades, como Paris. Há dez anos, a Câmara de Lisboa não era rica, mas agora é”, afirma Catarina Portas, referindo-se às receitas obtidas pela edilidade provenientes do crescimento da actividade turística e do imobiliário na cidade. Ambas a impulsionarem-se mutuamente.

 

Questionada pelo PÚBLICO sobre o seu eventual papel no fenómeno especulativo de hipervalorização da cidade, conhecido por gentrificação, Catarina Portas diz não temer debater a questão. “Não acho que tenhamos participado na gentrificação. O Chiado e Lisboa eram muito diferentes quando começámos, ninguém queria vir para aqui. A discussão era sobre se era possível abrir ao sábado à tarde ou não. Acho que fizemos muito pela cidade, inclusivamente trazendo jornalistas estrangeiros para a conhecerem. E conseguimos essa dinâmica provando que era possível fazê-lo com respeito pelo espaço que existia, sem o partir”, diz, referindo que o debate não deve ser centrado na diabolização do turismo, mas sim nos seus excessos.

 

Considerações feitas no comunicado publicado nesta quarta-feira. “O comércio é, pela sua própria natureza, oportunista. O centro de Lisboa está hoje em mutação. Especialmente dirigidos aos turistas, restaurantes de pequeno-almoço all day, geladarias, bares de vinho e lojas de pastéis de nata ocupam os lugares do comércio do quotidiano dos moradores (mercearias, drogarias, livrarias, talhos, peixarias ou padarias)”, escreve-se. “O Chiado e a Baixa transformam-se numa paisagem indistinta de marcas globais que se multiplicam em espaços de forma sufocante. Queremos as mesmas marcas e as mesmas lojas em todas as ruas de todas as cidades do mundo, até vivermos todos em cidades iguais ou numa mesma cidade global?”, interroga-se.

 

O comunicado critica ainda “as centenas de lojas de souvenirs, espalhadas pela cidade histórica, tiradas a fotocópia, que não passam de comércio de fachada para um negócio, já por demais conhecido, de imigração mais ou menos legal”. E conclui: “São os males de um turismo que procura apenas o lucro individual e só consegue tropeçar no curto prazo, sem querer entender as transformações que opera na cidade a médio e longo prazos e assumir as suas responsabilidades numa estratégia mais vasta e melhor pensada, para todos.”

 

Em Lisboa, A Vida Portuguesa continuará a funcionar no Largo do Intendente e no Time Out Market do Mercado da Ribeira. Além disso, a marca tem ainda a Depozito, o projecto mais recente, uma loja onde reúne artesanato tradicional e contemporâneo de todo o país, em parceria com a Portugal Manual, perto do Intendente.

 

Nota: texto editado às 14h50, clarificando que o fecho da loja se deve ao alargamento da actividade do alojamento local já existente no prédio.

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