REPORTAGEM
A “derradeira
casa de pasto galega” da Baixa de Lisboa fechou aos 107 anos
Este sábado,
escreveu-se o último capítulo da Casa Cid. Fundada por um galego em 1913, nas
traseiras de um outrora movimentado mercado, esta taberna centenária do Cais do
Sodré foi empurrada dali porque o prédio onde sempre esteve será um hotel.
Cristiana Faria
Moreira (Texto) e Nuno Ferreira Santos (Fotografia) 22 de Fevereiro de 2020,
20:51
Borja Cid não tem
mãos a medir. De avental ao peito, ora põe os petiscos na mesa, ora troca dois
dedos de conversa com quem passa na rua para lhe dizer que o fecho da Casa Cid
é “injusto” e lhe deseja “as maiores felicidades”. Ele, já de lágrimas nos
olhos, encolhe os ombros, comove-se com as palavras e agradece.
Este sábado,
escreveu-se o último capítulo de 107 anos — quase, quase 108 — de uma tasca
erguida e mantida por mãos de galegos, mas que tem também uma alma muito
portuguesa. “Acabam com tudo o que é bom. Só querem hostels e hotéis”, atira um
freguês que pára para cumprimentar Borja.
O prédio onde
está a Casa Cid, nas traseiras do Mercado da Ribeira, terá o mesmo destino que
outros tiveram na baixa ao longo dos últimos anos: vai ser transformado num
hotel. Foi comprado há cerca de seis anos pelo Fundo Sete Colinas, que tem
vários projectos ali para a zona do Cais do Sodré. Como o contrato de
arrendamento transitou para o Novo Regime do Arredamento Urbano, acabaram por ficar
mais desprotegidos e, em 2018, o proprietário comunicou-lhes que não pretendia
renovar o contrato e que teriam de abandonar o espaço em Maio de 2019. Não
saíram e avançaram com uma acção judicial para travar a decisão, mas acabaram
por aceitar uma indemnização que dá para pagar as dos seis trabalhadores e
pouco mais. “Não fazia sentido continuar a prolongar o sofrimento”, diz Borja,
enquanto acende o cigarro de enrolar.
As mesas com as
toalhas vermelhas e azuis estão postas e, por volta do meio-dia, a casa já
estava composta. Este sábado, apareceram os amigos-clientes de décadas. Os
petiscos vão saindo para a mesa. Pão, queijo, umas batatas e umas petingas
fritas. Às pessoas que vão chegando e pedem uma refeição, Borja vai explicando
que é o último dia de portas abertas, mas que só estão a servir a convidados.
O alemão Mattias
Uhlenbrock bebe uma última cerveja ao balcão. Há 40 anos que vem “três, quatro
vezes por ano” a Lisboa. E parava sempre na Casa Cid para beber uma “short beer
ou comer uma chamuça”. “Eu estou profundamente triste com isto. Este é um lugar
especial.” Viu a capital mudar muito ao longo de quatro décadas. E o que vê
agora fá-lo pensar em cidades como Veneza ou Barcelona, “demasiado
superlotadas”. “Os turistas que chegam nos cruzeiros, que ficam e comem nos
barcos, ou os que vêm e comem nos hotéis estão a matar estes lugares”, diz o
alemão.
O “mercado era
outro mundo”
A Casa Cid abriu
em 1913, pela mão de um visionário galego de Ourense, Manuel Cid Nuñez, bisavô
de Borja, que viu num movimentado mercado uma oportunidade de negócio. Nas
décadas de 40 e 50, quando o “mercado era outro mundo”, o restaurante chegou a
estar aberto 24 horas por dia. Como era um mercado abastecedor, havia sempre
muito movimento. Quando começaram a surgir as grandes superfícies, o mercado
“morreu”.
Ainda assim, a
ligação daqueles comerciantes com a tasca nunca se perdeu. As peixeiras e os
talhantes continuaram a ir lá petiscar; os Cid continuaram a ir abastecer-se ao
mercado. Ainda hoje, Borja Cid tratava de ir todas as manhãs às bancas de carne
e peixe, frutas e legumes, ver o que tinha chegado de fresco. Inclusive, um dos
antigos talhantes do mercado, António Alves, de 80 anos, ainda dava “um
jeitinho” na tasca à hora de almoço.
O tacho vai para
o meio da mesa. Há favas guisadas e caldeirada de garoupa. Já lá está sentado
José Teodoro, 77 anos, ali cliente há cinco décadas, quando trabalhava ali
perto, nos escritórios da Sociedade do Bacalhau. “Isto aqui tinha uns petiscos
fantásticos. Normalmente, a gente vinha aqui comer uns carapauzinhos fritos com
feijão-frade, que era o petisco principal aqui da casa”. As mesas ainda eram de
pedra, não havia toalhas, mas ninguém se ralava muito com isso. “Naquela
altura, tínhamos duas horas de almoço. A gente comia bem aqui, bebia bem.”
A Sociedade do
Bacalhau fechou há 24 anos. Nessa altura, José e os antigos colegas combinaram
ir almoçar à Casa Cid todas as sextas-feiras. “Eu pensei que isso ia durar para
aí um ano. Mas não. Já lá vão 24. Ainda ontem [sexta-feira] cá estavam dez”. É
por isso que diz ter “muita pena”, até “muita mágoa” do desfecho desta casa
centenária. “Vai-me deixar muitas, muitas saudades. Vai mesmo.”
Também ali, José
Teodoro conheceu o “senhor Alberto”, quando este tinha “17 ou 18 anos” e andava
a servir às mesas. “Tinha que andar com os copos no ar para aviar os fregueses.
Servia-se 15 litros de leite e 30 de café de saco, 700 carcaças diariamente”, recorda
Adão Alberto Santos, 64 anos, que para ali foi trabalhar em Janeiro de 1974 e é
hoje sócio da casa.
Do lado de lá do
balcão de inox, anda para lá e para cá, aviando as imperiais que os fregueses
vão pedindo. Quando se lhe pergunta se se sente triste com este desfecho, ele
acaba por admitir que tem “pena que isto acabe mais por ele”. Ele é Borja, o
madrileno de 38 anos que pegou no negócio fundado pelo bisavô em 2017, trocando
as cozinhas de restaurantes conceituados, por esta pequena tasca de Lisboa.
Fê-lo a pedido da
mãe e da tia, que também este sábado ali estavam sentadas à mesa. “A minha mãe
e a minha tia foram baptizadas na Igreja de São Paulo. Nasceram ali na Travessa
dos Pescadores”, numa casa onde mora hoje o cozinheiro da Casa Cid, conta
Borja. Mantiveram sempre uma forte relação com a cidade, apesar de se terem
mudado para Espanha.
Para tentar
segurar a casa, Borja Cid ainda candidatou a casa ao programa da autarquia
“Lojas com História”, que visa “preservar e salvaguardar os estabelecimentos
[de comércio tradicional] e o seu património material, histórico e cultural”.
No entanto, a atribuição desse estatuto foi rejeitada porque, segundo disse a
Câmara de Lisboa ao PÚBLICO em Agosto, a Casa Cid encontrava-se “bastante descaracterizada”.
Ainda esta
sexta-feira, na sua página de Facebook, a empresária Catarina Portas, que é
membro do conselho consultivo deste programa, deixou uma crítica à forma como
se deixa, mais uma vez, desaparecer um estabelecimento histórico na cidade,
desta feita, a “derradeira casa de pasto galega da cidade”. “Parte-se-me o
coração de ver a Cid fechar pois foi exactamente para contrariar isto que foi
criado o programa Lojas Com História na CML. O grande feito deste programa foi
conseguir classificar as actividades e não apenas as paredes mas infelizmente,
neste caso, os meus colegas do Conselho Consultivo não foram sensíveis à
história centenária desta casa, nem à imensa vontade de continuar dos
descendentes e donos actuais. Tenho muita pena”, escreveu Catarina Portas,
notando ainda que esta casa “era um dos últimos testemunhos vivos da
importância da comunidade galega na construção de Lisboa”.
Borja Cid não
queria falhar na missão dele, a de manter os sabores e pratos tradicionais
portugueses acessíveis na baixa da capital, já que hoje quase estão em
extinção. É por isso que tem vontade de reerguer a Casa Cid noutro lugar. “São
107 anos. Não queremos uma grande casa, ninguém quer ser a melhor, mas é aquela
herança imaterial que eu acho que não pode ser perdida”, diz.
Nas redondezas “é
impossível por causa dos preços”, nota Borja, que recorda o café Tati, ali
vizinho e famoso pelos seus concertos de jazz e jam sessions, que também
encerrou no final de 2018. “Isto aqui à sexta-feira era um espectáculo. Era uma
mistura de malta — mais boémia, mais operária, de várias nacionalidades”. Por isso
diz que a casa que dirigia tem, sem dúvida, muito passado, mas teria ainda
muito futuro. Talvez as fotografias e as memórias que preenchem as paredes
transitem para esse futuro, numa nova casa. Afinal, não se arrumam em
caixotes 107 anos assim.
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