REPORTAGEM
Mães com filhos ocupam casas: “Se fazemos isto, é porque
estamos desesperadas”
Mães com filhos sem sítio onde morar ocuparam casas de
habitação social em bairros de Lisboa ou Loures que estavam vazias, algumas
prestes a ser demolidas, outras que estavam fechadas há anos. Há quem viva em
caves sem casa de banho. O dilema de quem sabe estar ilegal, mas vive com medo
que a polícia apareça: “Vou com os meus filhos para onde? Debaixo da ponte?”
Joana Gorjão
Henriques (Texto), Daniel Rocha (Fotografia) e Rui Gaudêncio (Fotografia)
30 de Novembro de
2021, 6:45
https://www.publico.pt/2021/11/30/sociedade/reportagem/maes-filhos-ocupam-casas-fazemos-desesperadas-1986701
Grades a tapar as
ruas, polícia municipal à entrada do bairro. Janelas e portas emparedadas com
tijolos. Está escuro dentro destas casas baixas geminadas, de dois
andares, que se distribuem pela zona de alvenaria do Bairro Padre Cruz, em
Carnide, Lisboa. Não há vidros, a pouca luz que existe vem das frechas que
deixam passar claridade entre tijolos. Natália de Sousa acordou uma noite
destas com a impressão de ouvir retroescavadoras. “Deve ter sido o balde
do lixo”, diz, para exemplificar de como tem andado em sobressalto.
Aos 37 anos,
vítima de violência doméstica, fugiu do companheiro (que não é pai de nenhum
dos filhos). Esteve um período sem ter os dois filhos com ela — Ângelo de 12
anos e Íris de sete anos — para evitar que assistissem a agressões. Mudou-se
para o apartamento de um amigo, esteve numa casa-abrigo, mas não correu bem.
Cozinheira,
actualmente desempregada, vive do rendimento social de inserção (RSI) e do
abono dos filhos. Está à espera do apoio estatal à habitação. Enquanto isso,
vive nesta casa ocupada no Padre Cruz, construída na década de 1940 e 1950.
Convida a entrar pela porta que arrombou com a ajuda de um amigo há cerca de
seis meses. “Se não estivesse aqui, estaria na rua, ou estaria morta. Só queria
um tecto para os meus dois filhos.”
Se não estivesse aqui estaria na rua ou estaria morta. Só
queria um tecto para os meus dois filhos
Natália de Sousa
Entramos pela
sala, passando antes por um pequeno pátio onde há uma bola de espelhos que
parece ter ficado de outros tempos. Em frente à porta erguem-se umas escadas
para o segundo andar. Está escuro. “Pode entrar.” Mostra a cozinha, onde há um
forno sobre o solo, um frigorífico, mas sem lava-louça. Em frente fica uma
divisão outrora quintal, e que agora serve para ela e os filhos tomarem banho,
de mangueira. Lá em cima ficam os quartos; a casa de banho só tem retrete, sem
autoclismo, por isso há baldes de água à porta. “Há higiene e limpeza, mas não
são condições para viver com duas crianças”, afirma. “Se sair daqui, volto para
o agressor, não tenho para onde ir”, sublinha. “Bem ou mal tenho um lar. Vou
com os meus filhos para onde? Debaixo da ponte? Sou capaz de ir – mas é
desumano.”
A pouco e pouco
Natália diz que está a organizar-se, “um dia de cada vez”. Planeia fazer um
curso. O que mais deseja? Uma casa que possa pagar.
Tudo se complica
para esta mulher, que nasceu em Portugal e que por ser filha de cabo-verdianos
ficou com a nacionalidade dos pais e ainda não tratou do pedido de
nacionalidade. “Tenho de pagar 250 euros. Uma coisa que é minha por direito?”,
questiona, indignada. “Eu sei que tenho de tratar disso, para mim foi um
entrave…”
Sempre à espera
do despejo
Não é a única a
ocupar casa neste bairro, nem a única mãe com filhos a fazê-lo. O bairro está
policiado, emparedado e gradeado, mas serve de casa a famílias monoparentais —
leia-se, de mulheres — que não tinham para onde ir.
Com telhados de
amianto, e materiais que precisam de renovação, está planeado que esta
zona de alvenaria do Bairro de Padre Cruz vá abaixo, para se construir
nova habitação social num projecto iniciado em 2010. Segundo a Câmara Municipal
de Lisboa (CML) estavam registadas ali cerca de duas mil pessoas. O
realojamento está a ser feito de forma faseada, foram realojadas 245 famílias e
demolidas cerca de 300 casas.
“É uma tortura”, descreve Natália, “estar sempre à
espera” de ser despejada
Quem vê de fora
pensa que já ninguém ali vive: as ervas tomaram conta de fachadas, as portas
que existem estão velhas, os escombros de demolições alternam com as casas que
ainda estão de pé. Sem rendimento e sem casa, várias mães com filhos viram na
ocupação um remedeio. Vivem com medo. “É uma tortura”, descreve Natália, “estar
sempre à espera” de ser despejada.
Foi sobretudo nos
últimos tempos, depois do confinamento por causa da pandemia, que estas mães
foram chegando aqui. Liliana Tavares, grávida de cinco meses, é uma delas. A
trabalhar em limpezas quatro horas por dia, não tem como pagar uma renda. A
casa, com duas divisões, está reduzida à sala, porque chove no quarto. A casa
de banho dá directamente para a sala, sem porta.
Depois de
Cassandra Ferreira ter recebido a 16 de Novembro uma carta da Gebalis,
gestora do bairro, em que avisava que teria que proceder à desocupação, pois
constitui “um crime de usurpação de coisa imóvel”, o medo voltou a tomar conta
destas mulheres. Se no prazo de dez dias úteis não sair, avisa a Gebalis,
a “polícia municipal executará a desocupação de forma coerciva”, “transferindo
os bens para depósito municipal”.
Jamais nos íamos sujeitar a ocupar uma casa se não fosse
de máxima urgência e necessidade
Cassandra Ferreira
Grávida de cinco
meses, com 23 anos, três filhos – de cinco, dois e um ano —, Cassandra e o
actual companheiro estão ali há cerca de 15 meses. A família paterna viveu no
bairro. Na casa puseram janelas, decoraram a cozinha e montaram móveis novos,
foram arranjando a casa aos poucos. Viveram em casa da sogra, mas “eram 12
crianças e quatro adultos para” três quartos. “Para fazer comida, tínhamos de
esperar a minha sogra ou cunhada fazerem…Andei à procura de casas. Encontrei
esta, que tinha a parte de trás aberta. Durante três meses fomos remodelando a
casa para viver minimamente”, explica. Com outras 15 mulheres escreveram uma
carta em que pedem compreensão às autoridades: “Jamais nos íamos sujeitar a
ocupar uma casa se não fosse de máxima urgência e necessidade.”
Cassandra esteve
a trabalhar numa caixa de supermercado, mas ultimamente fazia biscates com a
família, de feirantes. A mãe, doente, foi viver com ela. O pai vende flores à
porta do cemitério e não tem como a ajudar.
Sem conseguir
receber o RSI, Cassandra vive dos biscates do marido, dos 199 euros de
apoio da mãe, dos abonos de 374 euros dos filhos. “Estivemos a ver casas e era
absurdo. Não tínhamos dinheiro — além da renda, há o gás, luz, fraldas, leite.”
Já se inscreveu em vários sítios para apoio de casa mas ainda não
teve feedback. “E agora tiraram-me o chão”, comenta sobre a carta
recebida. Foi a várias entidades e todos “dizem que não têm resposta”. “Para
onde vamos com os nossos filhos? Se fôssemos pessoas sozinhas, alguém poderia
dar apoio. Quem vai dar casa, ceder quarto, comigo, a minha mãe e os meus
filhos?” Ocupou ilegalmente uma casa, sabe que cometeu uma ilegalidade.
Mas diz: a prioridade foi “dar-lhes condições”.
Recebia 635 euros, pagava 300 euros de renda onde me
chovia torrencialmente dentro do quarto, mais as despesas — não sobrava nada
Patrícia Pereira
Esta é uma frase
que se repete neste bairro. Patrícia Pereira, de 28 anos, tem uma bebé de três
meses no colo e um filho de oito anos a ajudá-la a empurrar o carrinho. Perdeu
o emprego numa empresa de limpezas depois de ter a filha — estava lá
há cinco anos sem contrato. Tinha uma casa alugada não muito longe dali:
“Recebia 635 euros, pagava 300 euros de renda onde me chovia torrencialmente
dentro do quarto, mais as despesas — não sobrava nada.”
Há um ano que
está na casa que conseguiu ocupar quase sem fazer obras; era de um homem que
morreu e estava impecável. “Abri a porta, mudei mobília, fui arranjando outras coisas.
É viver um dia de cada vez.” A Gebalis quis que ela saísse, ela não
saiu. Já pediu apoio para a habitação. “Só queremos uma casa que possamos pagar
com os nossos rendimentos. A receber 280 euros do RSI não consigo
pagar uma renda.”
Em pé, na rua onde
moram, Cassandra e Patrícia dizem que voltariam a fazer o mesmo. “Condições
para os criar temos, só nos falta é um tecto”, dizem.
“Vou batalhar
para não sair”
O filho de Carla
costuma avisar a mãe quando está a vir da escola: “Olha a polícia.” “Eu bato à
porta e eles perguntam: ‘Quem é?’, com medo.” Com quatro dos cinco filhos a
viverem com ela, é de lágrimas nos olhos que Carla, de 46 anos, conta a sua
história. Dentro de casa, que tem menos humidade do que a de Natália e estava
originalmente em melhores condições, os filhos vêem televisão no sofá; estão
com tosse, por isso não foram à escola. Ela leva-nos à cozinha onde conseguiu
montar alguns electrodomésticos. Depois mostra-nos os quartos no andar de cima.
O pai dos filhos morreu, a sogra “expulsou-os” — palavra que usa para descrever
a situação.
Estava cheia de medo. Arrombei a porta. A casa estava
cheia de lixo. Mas tem quatro quartos, tenho quatro filhos, disse: ‘é mesmo
aqui que vou ficar’.
Carla
Carla ainda
esteve um dia em casa da mãe, mas não havia condições. O filho mais velho
falou-lhe do Bairro Padre Cruz. “Estava cheia de medo. Arrombei a porta. A casa
estava cheia de lixo. Mas tem quatro quartos, tenho quatro filhos, disse: ‘É
mesmo aqui que vou ficar’” Já foi identificada quatro vezes pela polícia. Neste
momento não tem emprego, não tem com quem deixar os filhos mais novos que só
têm escola da parte de manhã.
A qualquer
momento podem ter de sair: “Mas vou batalhar para não sair. Tenho que batalhar,
não tenho para onde ir com os meus filhos, senão não estava aqui. Sei que isto
é ilegal, tenho plena consciência”, afirma enquanto chora.
Vai pôr os papéis
para pedir apoio de uma casa na câmara. “O meu objectivo é dar-lhes uma vida
estável porque eles também vivem com medo.”
O presidente da Junta de Freguesia de Carnide lamenta a
habitação social não estar sob responsabilidade das juntas, que considera terem
“grande capacidade de identificar agregados e situações de carência”: todas as
semanas recebe pelo menos cinco pessoas com problemas destes.
Esta é, nas
palavras de Fábio Sousa, presidente da Junta de Freguesia de Carnide (PCP), uma
situação “muito complexa”, que “acontece” em vários locais de Lisboa. Lamenta a
habitação social não estar sob a responsabilidade das juntas, que considera
terem “grande capacidade de identificar agregados e situações de carência”:
todas as semanas recebe pelo menos cinco pessoas com problemas destes.
Muitas das
pessoas que ocuparam casas vieram de fora, comenta, e sabe que grande parte foi
por desespero. A junta tenta ajudar no processo de candidatura ao apoio à
habitação. “A câmara devia ser mais ágil”, critica. “Não podemos descansar
enquanto houver uma casa livre para atribuir e ter famílias a viver em
condições difíceis.”
A Habita contou mais de 200 mulheres a ocupar casas
municipais em Lisboa, Loures e Almada que as procuraram nestes últimos tempos
Segundo a CML há
nove famílias que ocupam ilegalmente habitações em alvenaria neste bairro.
Essas ocupações impedem a demolição e a progressão da construção de habitações
“que irão beneficiar 267 famílias que legitimamente têm direito a uma
habitação”. A autarquia diz que reconhece “que as desocupações das
famílias poderiam criar situações de vulnerabilidade social” e que
estas foram informadas da situação irregular em que se encontram e da
necessidade de retornarem ao seu alojamento de origem “uma vez que são
coabitantes autorizados noutros fogos municipais do Bairro Padre Cruz e
outros”. “Para as duas famílias que não integram outros fogos municipais, a
SCML no âmbito das suas competências articulou directamente com as
famílias a solução de alojamento temporário. As famílias não demonstraram
interesse neste apoio.” Há ainda quatro famílias que foram apoiadas na
apresentação de candidaturas, diz a CML. Sublinha que foram avisadas da
necessidade de desocuparem os imóveis — “só posteriormente decorrem os
trâmites legalmente exigíveis para a desocupação”.
Mas nenhuma das
famílias que o PÚBLICO entrevistou diz ter alternativa, nem ter sido
encaminhada para uma solução viável a curto prazo.
Sobre o número de
casas municipais vazias a CML afirma que há entre 300 a 400 casas “a ser
reabilitadas"; há casas vazias por vários motivos — o titular estar
doente, estar a decorrer o prazo legalmente previsto para desocupação ou serem
casas reservadas para as operações de realojamento são alguns exemplos — mas
isso não significa que estejam vagas.
Soluções para
quem vai ser despejado? “A CML encaminha para a rede social estas famílias,
assim como apoia a sua candidatura aos programas de habitação do município,
colocando-os em pé de igualdade com as demais famílias com carência
habitacional na cidade de Lisboa”, afirmam.
Mulheres mais
afectadas
À Habita,
associação de defesa do direito à habitação que apoia várias pessoas, têm
chegado várias situações semelhantes às de Natália, Cassandra, Patrícia: Maria
João Behran contou mais de 200 mulheres a ocupar casas municipais em
Lisboa, Loures e Almada que as procuraram nestes últimos tempos.
São as mulheres
quem tem trabalhos mais precários, estão mais vezes a viver sozinhas com os
filhos e é difícil compatibilizare horários de escola com trabalho (...) as
pessoas vêem espaços vazios e ocupam. É uma estratégia de fim de linha que
ninguém toma de ânimo leve porque sabe que está sempre na iminência de sair
Maria João
Behran, Habita
Em Março, a
associação juntou-se no movimento Mulheres p’lo Direito à
Habitação (MuDHa), uma rede feminista que luta pela igualdade de género e
por condições habitacionais e de vida dignas, e enviou uma carta a várias
entidades, incluindo o Presidente da República.
Segundo dados
recolhidos pela Habita junto da Pordata, são as mulheres as mais
afectadas pela crise na habitação. De um total de 4.068.878 agregados
domésticos em 2020, 470.654 eram monoparentais e,
destes, 84,75% eram encabeçados por uma mulher. São justamente as famílias
monoparentais que têm maior probabilidade de ser afectadas pela pobreza (25%
versus 16% no total).
Questionado, o
Instituto da Habitação e Reabilitação Urbana, que gere a habitação pública, não
revelou quantos pedidos de casas tem, quantas pessoas estão em lista de espera
e quantas casas tem vagas. Porém, os últimos dados disponíveis pelo INE de
2015 mostram que, das cerca de 120 mil casas de habitação pública na altura,
cerca de 6729 estavam vagas e cerca de 800 eram ocupadas ilegalmente.
Maria
João Behran contextualiza: “Sabemos que são as mulheres quem tem
trabalhos mais precários, estão mais vezes a viver sozinhas com os filhos e que
é difícil compatibilizarem horários de escola com trabalho. Há ainda os
transportes e outras despesas. Muitas vezes ficam em casa das mães, mas há
situações de mal-estar, casas sobrelotadas – as pessoas vêem espaços
vazios e ocupam. É uma estratégia de fim de linha que ninguém toma de
ânimo leve, porque sabe que está sempre na iminência de sair.”
Maria vivia numa barraca em Vila Franca de Xira que ficou
totalmente destruída com um vendaval; tentou candidatar-se a uma casa camarária
mas ficou em “suplente”. Alugar casa, desde que acessível, é um dos objectivos.
“Mas mal sabem que sou cigana não alugam”
E qual o
posicionamento das autoridades sobre estas situações? “Precisamente por existir
um processo legal de atribuição de habitações não podemos permitir que as casas
ocupadas ilegalmente sejam atribuídas de forma diversa do procedimento legal
estatuído e no qual tantas famílias estão inscritas”, responde o IHRU. “Isto
não pressupõe que, no caso das ocupações, essas famílias fiquem privadas,
quando elegíveis, do mesmo direito, mas pressupõe que a sua atribuição vai ter
de ser promovida nos termos legais, sob pena de passarmos a ter um processo
moral e socialmente ingerível.”
Para Maria
João Behran o argumento de que as pessoas que ocupam casas estão a
passar à frente de outras não “justifica anos de casas vazias”: “Não vemos
pressa de as câmaras resolverem o problema. É preciso reconhecer que as pessoas
que ocuparam não expulsaram ninguém, deram uma função à casa que estava inútil.
Não morar em lado nenhum não é uma opção. O que esperam que as pessoas façam?
Ninguém vai morar para uma cave, porque era mesmo isso que queria.”
É exactamente
esse o comentário de Maria Santos, de 24 anos, com um filho de seis anos e
outro de três. “Se houvesse uma solução para nós, não estávamos numa cave,
porque as condições são zero. É só bicharada, e o frio! O vento leva tudo para
o ar. Ninguém merece morar numa cave”, afirma.
Maria vivia numa
barraca em Vila Franca de Xira que ficou totalmente destruída com um vendaval;
tentou candidatar-se a uma casa camarária, mas ficou como “suplente”. Alugar
casa, desde que acessível, é um dos objectivos. “Mas mal sabem que sou cigana
não alugam.” Aconteceu-lhe duas vezes.
Agora instalou-se
numa cave na Quinta das Mós, um bairro de habitação social em Loures, sem casa
de banho, sem cozinha no prédio onde vive a mãe com mais cinco pessoas. Para
superar o frio, tem uma ventoinha ligada, mas as frechas da grade deixam passar
tudo. Um lençol ao alto separa a sala da cama de casal onde ela e os filhos
dormem. Encostado a uma das zonas está uma espécie de fogão. Tem ainda máquina
de lavar roupa. É através de uma pequena torneira que vai buscar água, mas para
fazer necessidades tem de ir a casa da mãe. Há mais três mulheres em situação
idêntica naquele bairro, também com filhos, excepto uma. Na semana passada
receberam um aviso da Câmara de Loures a dizer que deveriam abandonar o espaço
“sob pena de desobediência” até sexta-feira, mas o despejo acabou por não
acontecer.
Câmara diz que
desconhecia estas situações
Contactada pelo
PÚBLICO, a autarquia — que nas últimas eleições mudou do PCP para o PS —
respondeu que “o actual executivo municipal, em funções desde 15 de Outubro de
2021, desconhecia a existência destas situações”. “Já deu indicação aos
serviços que assegurem o acompanhamento social integrado destes agregados,
nomeadamente, através do seu encaminhamento para os competentes serviços da
Segurança Social.” Referiu ainda que algumas das situações agora sinalizadas
são “pedidos de desdobramentos de agregados familiares que, em termos de
resposta, se enquadram nas soluções previstas no Programa 1.º Direito”. A
autarquia diz ainda que mandou fazer um levantamento da situação do parque
habitacional municipal.
“Não há rendas baratas” para uma família de cinco
pessoas. “Se um casal com os dois a trabalhar é complicado, imagina eu com
quatro filhos e sozinha. Eu não quero estar aqui de borla, quero ficar aqui e
fazer contrato. Nunca estive numa situação destas”
Quando os
encontramos na mesma rua de Maria, Beatriz e o marido estão a arrumar as coisas
de casa, à pressa, com medo de que no dia seguinte apareça a polícia; receberam
o aviso e queixam-se de não terem tempo para organizar a vida. Na cave
conseguiram fazer uma casa de banho e, colada, uma cozinha. Os pais
de Beatriz vivem no prédio, mas não se dão bem; ela diz mesmo que o pai a
expulsou de casa. “Encontrei aqui este aconchego, fiz uma minicasa. Por
mim dormia dentro do carro. Mas o meu problema é onde é que vai dormir a minha
filha? Na rua, a chover?”
Noutro lado da
cidade, num prédio de habitação social do Lumiar, Susana Araújo, de 38 anos,
desce à entrada do prédio e conduz-nos ao sexto andar. Quando se separou do
marido, vendeu a casa onde viviam na Ramada e com o dinheiro pagou o
empréstimo. Com quatro filhos (de 7, 9, 16 e 18 anos), na altura foi viver com
a mãe, onde estavam também os sobrinhos e outra irmã. Não correu bem.
Com duas casas de
banho, quatro quartos e uma sala, há seis meses que vive neste apartamento
luminoso com pouca mobília e electrodomésticos, que lhe foram sendo oferecidos
por amigos. Na sala está a árvore de Natal montada, há um sofá em frente a
uma televisão, uma mesa, estantes e pouco mais. Falaram-lhe da casa que estava vazia
“há cinco anos”. Aconselharam-lhe: “Mete-te lá com os miúdos.” Assim foi. Nesse
dia teve a polícia à porta; ninguém a pôs na rua, mas tem uma queixa contra si.
Passado pouco tempo teve ordem de despejo; tentou ir à Gebalis, mas
ninguém a atendeu; foi à junta de freguesia, inscreveu-se no programa de rendas
acessíveis. “Tem uma lista interminável, nem consegui ver o meu nome.”
Sem trabalho, a
receber abono de família, o RSI e a pensão que o pai dos filhos paga
— ao todo diz que são uns cerca de 800 euros por mês —, vai fazendo biscates.
“Não há rendas baratas” para uma família de cinco pessoas. “Se um casal com os
dois a trabalhar é complicado, imagine eu com quatro filhos e sozinha. Eu não
quero estar aqui de borla. Quero ficar aqui e fazer contrato. Nunca estive numa
situação destas”, lamenta. “A qualquer hora podem bater à porta. É horrível.
Pensam que estamos a brincar às casinhas. Não estamos. Posso pagar uma multa,
posso ir para o olho da rua e ficar sem os meus filhos. Se fazemos isto, é
porque estamos desesperadas. Não vou desistir de dar uma vida estável aos meus
filhos.”
Contactada na
quinta-feira, a Câmara de Lisboa não respondeu sobre se tinha conhecimento de
que havia famílias com crianças no Bairro Padre Cruz, quais as alternativas que
tinha para estas, quantas casas de habitação social estão desocupadas na
cidade, como se explica que existam listas de espera e casas sem pessoas
durante anos e o que planeia fazer com as famílias com crianças que estão
nestes alojamentos e não têm para onde ir.
Há pelo menos 36
mil famílias a viver em condições indignas
Criado durante o
Governo de António Costa como uma das grandes linhas da Nova Geração de
Políticas de Habitação, o Programa 1.º Direito tem como
objectivo responder às necessidades de famílias que vivam em condições
indignas. É o programa sucessor do Programa Especial de Realojamento
(PER), criado em 1993 para erradicar as barracas das áreas metropolitanas de
Lisboa e Porto, mas abrange todo o território e é dirigido às
pessoas, mais do que aos lugares.
Foi, assim,
pedido às câmaras que fizessem um diagnóstico, e nessa altura, em 2018, foram
identificadas 26 mil famílias. Passados estes anos, esse número já subiu: estão
sinalizadas neste momento quase 36 mil famílias, que residem sobretudo em
municípios das áreas metropolitanas de Lisboa e do Porto, disse o gabinete do
ministro das Infra-estruturas e da Habitação.
Para receber
o apoio as famílias são identificadas pelas autarquias, através das
Estratégias Locais de Habitação (ELH) – por isso, parte da explicação para este
número é que foi feito “um levantamento muito mais exaustivo” do que aquele que
esteve na base do Levantamento Nacional das Necessidades de Realojamento
Habitacional, concretizado pelo Instituto da Habitação e Reabilitação Urbana (IHRU).
“Enquanto no levantamento de 2018 os dados correspondem apenas às respostas
dadas ao inquérito do IHRU (sendo por isso valores ‘estimados’), no segundo
caso estamos perante um processo por natureza muito mais detalhado,
com objectivos muito concretos e que assume já, para os próprios
municípios, um significado mais material”, explica o ministério.
O ministério
recorda que há 112 municípios com acordos assinados e em execução (mais três
acordos com empresas municipais).
E reconhece que a
habitação clandestina “é ainda, infelizmente, um fenómeno presente na nossa
sociedade, agravado pela crise pandémica, que também o tornou mais visível,
sublinhando a necessidade de concretizar não só o Programa 1.º Direito em todo
o território, mas também a necessidade de melhorar o acesso à habitação por
parte de famílias com rendimentos intermédios, contribuindo para a promoção de
soluções habitacionais estáveis, dignas e adequadas”.
tp.ocilbup@hgj
tp.ocilbup@ahcord