sábado, 27 de novembro de 2021

O governo Draghi não durará eternamente

 



ANÁLISE

O governo Draghi não durará eternamente

 

A Itália tem eleições presidenciais no fim de Janeiro. O Presidente Mattarella não aceita um segundo mandato e o nome consensual para lhe suceder seria o de Mario Draghi. Mas que aconteceria se este deixasse o Governo?

 

Jorge Almeida Fernandes

27 de Novembro de 2021, 7:00

https://www.publico.pt/2021/11/27/mundo/analise/governo-draghi-nao-durara-eternamente-1986557

 

A política italiana está suspensa da eleição presidencial que terá lugar no fim de Janeiro. Em menos de um ano, a Itália sofreu uma metamorfose. De “doente da Europa” passou a modelo. Em Fevereiro, o Presidente Sergio Mattarella nomeou primeiro-ministro o economista Mario Draghi, que mudou radicalmente o estilo de governação.

 

O Governo foi investido por todos os partidos à excepção do Irmãos de Itália (extrema-direita) e todos entraram no executivo. “O Governo continua a ser nominalmente um governo parlamentar mas os actores parlamentares, isto é, os partidos, abdicam de facto da sua soberania, decretando desse modo a sua tendencial irrelevância”, escreveu o Corriere della Sera.

 

Mattarella e Draghi são os garantes da estabilidade política e das reformas com que a Itália tem de se defrontar. A eleição presidencial ameaça este equilíbrio. Mattarella confirmou na segunda-feira, na Universidade La Sapienza, a recusa de um segundo mandato. Qual é o problema? É que o único nome que reuniria largo consenso seria exactamente o de Mario Draghi.

 

Acontece que Draghi é o “líder operacional” da Itália: o poder executivo é do primeiro-ministro e a ele cabe a responsabilidade de dirigir a reconstrução do país. O Presidente da República exerce hoje, graças à debilidade dos partidos e do sistema, político um papel mais largo do que antigamente. Mas é essencialmente o garante da unidade nacional. É óbvio que as grandes instituições italianas e ocidentais não gostariam de ver Draghi abandonar o governo. Temem o regresso ao que os italianos chamam o “não governo”. Este não é uma crise governamental mas a incapacidade de renovação e de fazer reformas incisivas, em grande parte devido ao estado de liquefacção dos partidos. Foram a personalidade e o prestígio de Draghi que permitiram romper o círculo vicioso italiano.

 

Cálculos eleitorais

Segundo as sondagens, os italianos apenas têm em contra três nomes: Mattarella, Draghi e Berlusconi. Depois de muito ambicionar a presidência, o “Cavaliere” parece resignado a assumir outro papel, o de árbitro da eleição. A sucessão do PR divide os partidos em que se multiplicam os raciocínios tácticos. Ora esta é uma questão estratégica e não de tácticas.

 

O Presidente, com um mandato de sete anos, é eleito por um colégio eleitoral: 320 senadores, 630 deputados e 58 delegados das regiões. Nas três primeiras votações é necessária uma maioria de dois terços. A partir daí, apenas a maioria absoluta. O voto é secreto.

 

Em 2013, a eleição do sucessor de Giorgio Napolitano tornou-se num drama porque, graças ao voto secreto, os “grandes eleitores” não seguiram as decisões dos partidos, o que levou Napolitano a aceitar a reeleição “por dois anos” para evitar um longo impasse numa época crítica.

 

Assinala no La Repubblica o analista Stefano Folli que começa já a haver sinais de “paralisia política na expectativa do conclave laico de Janeiro, de que sairá o sucessor de Mattarella.” Os partidos começam a fazer cálculos.

 

Por exemplo: que efeito teria a eleição de Draghi sobre a duração da actual legislatura que termina em Fevereiro de 2023? Estando este parlamento já desgastado, precipitaria a antecipação de eleições legislativas? Para levar a cabo as principais reformas o prazo de 2023 parece muito curto. Que acontecerá se houver uma interrupção para eleições?

 

E quem ganharia com legislativas antecipadas? O Partido Democrático (PD, centro-esquerda), na sua maioria, recusa o voto antes de 2023. Mas consta que o seu líder, Enrico Letta, preferiria eleições mais cedo, enquanto a direita está dividida. Quem mais anseia pela antecipação será Giorgia Meloni, líder do Irmãos de Itália (FdI). Ultrapassou Matteo Salvini nas sondagens e, em caso de vitória da direita, quer ser candidata a chefe do governo. Por paralelas razões, a Liga de Salvini deixou de ter pressa em eleições antecipadas e gostaria, até, de manter Draghi no governo por um ou dois anos.

 

O Movimento 5 Estrelas (M5S), agora liderado pelo ex-primeiro-ministro Giuseppe Conte, quer tudo menos eleições, que significariam uma hecatombe no seu grupo parlamentar, ainda o mais numeroso, lembre-se. Entretanto, Berlusconi continua a querer liderar uma frente de centro-direita para pesar na presidencial.

 

Reforma política?

O politólogo Angelo Panebianco, favorável a uma reforma eleitoral maioritária, mostra-se pessimista. “Se nos compararmos às outras grandes democracias europeias, da França à Grã-Bretanha, da Alemanha à Espanha, pode constatar-se que a Itália está pior: o seu sistema político não favorece, antes reforça a falta de coesão. Não nos enganemos com a actual trégua: o governo Draghi não durará eternamente.”

 

Será o regresso à Primeira República? “Não. Porque da Primeira República faltam os grandes partidos de massas, com um fortíssimo enraizamento social, os quais, de facto, co-geriam, apesar da distância ideológica, a política e a sociedade. Os débeis partidos de hoje apenas procuram oportunidades de recíproca diferenciação.”

 

Panebianco cita Arturo Parisi, um dos artífices da união do centro-esquerda de Romano Prodi nos anos 1990: “Só uma democracia de cidadãos, fundada na escolha maioritária entre projectos de longa duração e em círculos uninominais, nos pode livrar da política de chefes de partido, feita de contínuos reposicionamentos.”

 

O sistema partidário está cheio de anomalias. Para se institucionalizar, o M5S “recrutou” um líder, o ex-primeiro-ministro Giuseppe Conte, sobre a vigilância do fundador Beppe Grillo. Dele se diz que se ocupa da política sem controlar o partido. Inversamente, Salvini controla a Liga mas não a sua política, cada vez mais condicionada pelos governadores e empresários do Norte. Está perante um dilema: se escolhe a moderação, votando fielmente com o governo, arrisca-se a perder o eleitorado extremista para a rival Meloni.

 

Como governa Draghi sem reforma política? Com um “semipresidencialismo de facto”, resume o Giancarlo Georgetti, o número dois da Liga e um dos ministros mais próximos de Draghi. É um “presidencialismo à italiana”. Só assim pode ser definido, escreve Folli, “visto não ter nascido de uma reforma decidida pelo parlamento nem ratificada por referendo confirmativo, mas por ser fruto das circunstâncias políticas e do indiscutível prestígio de Draghi”.

 

Os presidentes italianos já mostraram ter capacidade de iniciativa política, como nomear um primeiro-ministro de sua confiança e não indicado pelos partidos. Mas, depois, o governo é formado no Parlamento. No caso de Draghi foi simples. Como será amanhã?

 

O outro problema são os fundos do Plano de Recuperação e Resiliência. Resume La Repubblica: “São necessários procedimentos e instrumentos especiais para os transformar em investimentos produtivos e evitar que acabem no caldeirão das despesas clientelares.”  Corrobora o Corriere: “Em suma, chegou o momento de crescer. Para todos. E também para os líderes da era populista.”

 

Que efeito terá a eleição presidencial no virtuoso binómio Matarella-Draghi?

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