quinta-feira, 3 de junho de 2021

A direita quer ter passado mas não quer ter futuro

 



OPINIÃO

A direita quer ter passado mas não quer ter futuro

 

Os quatro partidos de direita têm atualmente mais gozo nas discussões internas, em dissecar o passado, em pôr adesivos nas feridas psicológicas de 2015 que em (tentar) governar.

 

Maria João Marques

2 de Junho de 2021, 0:05

https://www.publico.pt/2021/06/02/politica/opiniao/direita-quer-passado-nao-quer-futuro-1964947

 

No encantamento assolapado que a direita dita tradicional tem pela nova direita alternativa, há vários pormenores – para além da repugnância ideológica que a primeira devia sentir pela segunda (mas não sente) – que me são incompreensíveis. Um é este simples: nunca vou entender por que diabo tanta gente de dois partidos políticos – o PSD e o CDS – se dedicou a promover outros dois – primeiro só a IL mas logo de seguida também o Chega – que lhe disputavam os mesmos eleitores e que, a crescer, seria à custa dos ingénuos beneméritos PSD e CDS. Claro que muitas destas pessoas eram (ou são) críticas das lideranças e estavam (ou estão) deliberadamente a trabalhar para maus resultados que tornem inevitáveis mudanças de líderes.

 

Em todo caso, o enlevo pelas duas novidades vai além dos críticos das lideranças da direita pre existente. Há um fascínio ideológico da direita pelas duas novas aquisições. A explicação é simples. Um espaço de centro-direita que sempre recusou posicionar-se ideologicamente, que, pragmático, se apresentava como o bloco que endireitava contas públicas estropiadas pelo Partido Socialista e se justificava por isso, ganhou agora gosto pelo sectarismo ideológico.

 

Com o fulgor dos novos convertidos, a direita atual dedica-se a concursos de pureza para determinar quem é mais de direita e odeia mais ferozmente a esquerda. Estão tão entretidos neste empreendimento a ver quem ganha o troféu que nem se preocupam em falar para o eleitorado centrista e construir uma alternativa de governação para o país. Julgo até que os quatro partidos de direita têm atualmente mais gozo nas discussões internas, em dissecar o passado, em pôr adesivos nas feridas psicológicas de 2015 que em (tentar) governar.

 

 

Só assim se explica o que se passou na convenção do MEL – que se adivinhava fraca mas superou nas expetativas de estado alucinatório à direita. Naquela convenção esteve uma direita aprisionada no passado e no ressentimento. Tivemos direito ao Dom Sebastião em forma de Passos Coelho – calado, para aumentar a sua aura de desejado salvador da direita nacional. Ouvimos boquiabertos (pelo menos eu ouvi boquiaberta) um orador muito incomodado com a injustiça que se faz à história do Estado Novo. Razão: os maldosos esquerdistas que determinam os programas de História nas nossas escolas não contam o milagre económico do Estado Novo. Nem como o Estado Novo resolveu o analfabetismo (está tão resolvido que em 2011 tínhamos ainda cerca de 5% da população analfabeta).

 

 

Claro que o orador também não contou a História do dito milagre económico do Estado Novo, desde logo porque não foi milagre nem nenhum génio dos governantes de então. Tratou-se simplesmente de permitir alguma abertura económica com a adesão à EFTA, que possibilitou à pequena economia portuguesa juntar-se à conjuntura de crescimento sólido dos países ocidentais que durou desde o fim da Segunda Guerra Mundial até à crise do petróleo magicada pela OPEP em 1973. Países como Espanha e Grécia tiveram crescimentos tão bons ou melhores que os portugueses entre 1960 e 1974. Agradecer a Salazar e ao Estado Novo? Sim, ter mantido a economia portuguesa fechada até 1960, fazendo-nos perder os primeiros quinze dos chamados ‘trinta gloriosos anos’ de crescimento económico do século XX.

 

Mas, em boa verdade, não era o rigor histórico que atormentava o orador em questão. O domínio cultural da esquerda é que é o verdadeiro vilão: até impõe autores marxistas como Eric Hobsbawm às nossas criancinhas. Corramos todos para os abrigos, porque os nossos filhos são expostos a um historiador marcante como Hobsbawm, ao invés de lhes ser propagandeado que o Estado Novo foi um sucesso económico. (Curiosamente, o livro editado por Hobsbawm, The Invention of Tradition, é muito útil para entender a reconstrução do passado que o bom do Estado Novo fazia.)

 

 

De resto, o confinamento ideológico da direita aos fenómenos económicos é outra sua característica. Se bem que esta, pelo menos, não é nova. O discurso de Rui Rio na tal convenção foi de nos por a perguntar se Rio entende o mundo em que vive. (A resposta é não.) Em mais um regresso ao passado, foi um discurso feito à medida dos tempos em que éramos governados pelo incontinente despesista José Sócrates. Recomendou contas públicas certas, superavites, diminuição do endividamento público e externo. Os temas da discussão política nas eleições legislativas de 2011. Num tempo em que somos governados por um PS verdadeiramente obcecado com o défice, que produziu em 2019 o primeiro superavit da democracia e é justamente criticado por sacrificar as ajudas à economia e aos cidadãos durante a pandemia para não descambar demasiado as contas pública, perguntamos: Rui Rio estava preguiçoso e foi buscar um discurso que tinha lá por casa escrito há dez anos? Ou pretendia somente adormecer os eleitores?

 

Logo de seguida tivemos no fim de semana a opereta também conhecida como congresso do Chega. Esse partido onde os mais destacados membros são tão inovadores e nacionalistas que pouco mais fazem que imitar estrangeiros – seja Ventura copiando Trump seja a senhora da juventude das novas camisas castanhas a plagiar, no seu discurso, outra senhora da extrema-direita italiana. A estética do partido é para lá de hedionda. A imersão no mundo das seitas evangélicas é total. É muito evidente: se o centro-direita estivesse concentrado em querer ser governo, para o que tem de conquistar o eleitorado urbano de Lisboa e Porto, não se permitiria ser contaminado por isto.

 

Não há nenhuma ambição de longo prazo para o país. Não vislumbramos rasgos para o que deve ser a recuperação económica da monumental crise da pandemia. Os problemas concretos das pessoas são preteridos para essas magnas questões que são o politicamente correto, o domínio cultural da esquerda (e perante esta direita, como não haveria a esquerda de dominar?), as injustiças cometidas para com o Estado Novo, a recuperação de outros passados como o passismo e a oposição aos governos de José Sócrates.

 

Desde 2015 que a direita tem, em eleições e sondagens, entre 35% e 38% das escolhas dos eleitores. O crescimento dos novos partidos faz-se à custa dos mais antigos, não de eleitorado de esquerda (só poucochinho no Alentejo, onde não se ganharão deputados) ou abstencionista. Estes valores espantam-me. Não por a direita não descolar mas por haver ainda 35 a 38% dos eleitores a escolher estes quatro partidos. Isto, sim, é milagre.

 

A autora escreve segundo o novo acordo ortográfico

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