OPINIÃO
A direita quer ter passado mas não quer ter futuro
Os quatro partidos de direita têm atualmente mais gozo
nas discussões internas, em dissecar o passado, em pôr adesivos nas feridas
psicológicas de 2015 que em (tentar) governar.
Maria João
Marques
2 de Junho de
2021, 0:05
https://www.publico.pt/2021/06/02/politica/opiniao/direita-quer-passado-nao-quer-futuro-1964947
No encantamento
assolapado que a direita dita tradicional tem pela nova direita alternativa, há
vários pormenores – para além da repugnância ideológica que a primeira devia
sentir pela segunda (mas não sente) – que me são incompreensíveis. Um é este
simples: nunca vou entender por que diabo tanta gente de dois partidos
políticos – o PSD e o CDS – se dedicou a promover outros dois – primeiro só a
IL mas logo de seguida também o Chega – que lhe disputavam os mesmos eleitores
e que, a crescer, seria à custa dos ingénuos beneméritos PSD e CDS. Claro que
muitas destas pessoas eram (ou são) críticas das lideranças e estavam (ou
estão) deliberadamente a trabalhar para maus resultados que tornem inevitáveis
mudanças de líderes.
Em todo caso, o
enlevo pelas duas novidades vai além dos críticos das lideranças da direita pre
existente. Há um fascínio ideológico da direita pelas duas novas aquisições. A
explicação é simples. Um espaço de centro-direita que sempre recusou
posicionar-se ideologicamente, que, pragmático, se apresentava como o bloco que
endireitava contas públicas estropiadas pelo Partido Socialista e se
justificava por isso, ganhou agora gosto pelo sectarismo ideológico.
Com o fulgor dos
novos convertidos, a direita atual dedica-se a concursos de pureza para
determinar quem é mais de direita e odeia mais ferozmente a esquerda. Estão tão
entretidos neste empreendimento a ver quem ganha o troféu que nem se preocupam
em falar para o eleitorado centrista e construir uma alternativa de governação
para o país. Julgo até que os quatro partidos de direita têm atualmente mais
gozo nas discussões internas, em dissecar o passado, em pôr adesivos nas
feridas psicológicas de 2015 que em (tentar) governar.
Só assim se
explica o que se passou na convenção do MEL – que se adivinhava fraca mas
superou nas expetativas de estado alucinatório à direita. Naquela convenção
esteve uma direita aprisionada no passado e no ressentimento. Tivemos direito
ao Dom Sebastião em forma de Passos Coelho – calado, para aumentar a sua aura
de desejado salvador da direita nacional. Ouvimos boquiabertos (pelo menos eu
ouvi boquiaberta) um orador muito incomodado com a injustiça que se faz à
história do Estado Novo. Razão: os maldosos esquerdistas que determinam os
programas de História nas nossas escolas não contam o milagre económico do
Estado Novo. Nem como o Estado Novo resolveu o analfabetismo (está tão
resolvido que em 2011 tínhamos ainda cerca de 5% da população analfabeta).
Claro que o
orador também não contou a História do dito milagre económico do Estado Novo,
desde logo porque não foi milagre nem nenhum génio dos governantes de então.
Tratou-se simplesmente de permitir alguma abertura económica com a adesão à
EFTA, que possibilitou à pequena economia portuguesa juntar-se à conjuntura de
crescimento sólido dos países ocidentais que durou desde o fim da Segunda
Guerra Mundial até à crise do petróleo magicada pela OPEP em 1973. Países como
Espanha e Grécia tiveram crescimentos tão bons ou melhores que os portugueses
entre 1960 e 1974. Agradecer a Salazar e ao Estado Novo? Sim, ter mantido a
economia portuguesa fechada até 1960, fazendo-nos perder os primeiros quinze
dos chamados ‘trinta gloriosos anos’ de crescimento económico do século XX.
Mas, em boa
verdade, não era o rigor histórico que atormentava o orador em questão. O
domínio cultural da esquerda é que é o verdadeiro vilão: até impõe autores
marxistas como Eric Hobsbawm às nossas criancinhas. Corramos todos para os
abrigos, porque os nossos filhos são expostos a um historiador marcante como
Hobsbawm, ao invés de lhes ser propagandeado que o Estado Novo foi um sucesso
económico. (Curiosamente, o livro editado por Hobsbawm, The Invention of
Tradition, é muito útil para entender a reconstrução do passado que o bom do
Estado Novo fazia.)
De resto, o
confinamento ideológico da direita aos fenómenos económicos é outra sua
característica. Se bem que esta, pelo menos, não é nova. O discurso de Rui Rio
na tal convenção foi de nos por a perguntar se Rio entende o mundo em que vive.
(A resposta é não.) Em mais um regresso ao passado, foi um discurso feito à
medida dos tempos em que éramos governados pelo incontinente despesista José
Sócrates. Recomendou contas públicas certas, superavites, diminuição do
endividamento público e externo. Os temas da discussão política nas eleições
legislativas de 2011. Num tempo em que somos governados por um PS
verdadeiramente obcecado com o défice, que produziu em 2019 o primeiro
superavit da democracia e é justamente criticado por sacrificar as ajudas à
economia e aos cidadãos durante a pandemia para não descambar demasiado as
contas pública, perguntamos: Rui Rio estava preguiçoso e foi buscar um discurso
que tinha lá por casa escrito há dez anos? Ou pretendia somente adormecer os
eleitores?
Logo de seguida
tivemos no fim de semana a opereta também conhecida como congresso do Chega.
Esse partido onde os mais destacados membros são tão inovadores e nacionalistas
que pouco mais fazem que imitar estrangeiros – seja Ventura copiando Trump seja
a senhora da juventude das novas camisas castanhas a plagiar, no seu discurso,
outra senhora da extrema-direita italiana. A estética do partido é para lá de
hedionda. A imersão no mundo das seitas evangélicas é total. É muito evidente:
se o centro-direita estivesse concentrado em querer ser governo, para o que tem
de conquistar o eleitorado urbano de Lisboa e Porto, não se permitiria ser
contaminado por isto.
Não há nenhuma
ambição de longo prazo para o país. Não vislumbramos rasgos para o que deve ser
a recuperação económica da monumental crise da pandemia. Os problemas concretos
das pessoas são preteridos para essas magnas questões que são o politicamente
correto, o domínio cultural da esquerda (e perante esta direita, como não
haveria a esquerda de dominar?), as injustiças cometidas para com o Estado
Novo, a recuperação de outros passados como o passismo e a oposição aos
governos de José Sócrates.
Desde 2015 que a
direita tem, em eleições e sondagens, entre 35% e 38% das escolhas dos
eleitores. O crescimento dos novos partidos faz-se à custa dos mais antigos,
não de eleitorado de esquerda (só poucochinho no Alentejo, onde não se ganharão
deputados) ou abstencionista. Estes valores espantam-me. Não por a direita não
descolar mas por haver ainda 35 a 38% dos eleitores a escolher estes quatro
partidos. Isto, sim, é milagre.
A autora escreve
segundo o novo acordo ortográfico
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