Duas ou três notas sobre um declínio: os museus nacionais
Quando olhamos para as enormes melhorias que a democracia
portuguesa conseguiu no sector cultural, em áreas como as bibliotecas e
arquivos, a música, os teatros, ou nos equipamentos e na oferta cultural
associativa ou autárquica, é difícil não ver nos museus nacionais uma área de
enorme falhanço.
Joaquim Oliveira
Caetano
9 de Agosto de
2022, 7:52
Passei uma tarde
quente do final da década de 1980 num anfiteatro do Instituto Superior Técnico
a fazer uma prova escrita de avaliação de um concurso aberto para 3 vagas de
técnicos superiores: uma para o Museu Nacional de Arte Contemporânea e duas
para o Museu Nacional de Arte Antiga. Seguiu-se uma entrevista com um júri de
que faziam parte Ana Brandão, José Luís Porfírio e Adília Alarcão. Esta
distante experiência enquadrou-se no último dos concursos abertos para técnicos
superiores nos Museus Nacionais. Entretanto extinguiu-se o Instituto Português
do Património Cultural, foi criado o Instituto Português de Museus, depois o
Instituto dos Museus e da Conservação, este e outros Institutos deram origem à
Direção-Geral do Património Cultural e, nestes 35 anos (o tempo de uma vida
profissional), nenhuma das instituições que tutelaram os museus nacionais
conseguiu abrir um único concurso para o seu reforço ou rejuvenescimento.
Não fui um dos
escolhidos (entraram na altura o José Alberto Seabra, a Alexandra Markl e o
Pedro Lapa), mas pouco depois submeti-me a outro concurso, para o Inventário do
Património Móvel, lançado ainda pelo IPPC. Quando entrámos, este já tinha sido
extinto e os 90 técnicos escolhidos, entre um milhar de candidatos, foram colocados,
de forma paritária, nos Museus, Bibliotecas e Arquivos públicos, já dirigidos
pelos novos institutos então criados. Este concurso, já só curricular, não
pretendia dotar as instituições de técnicos, mas realizar o inventário no
terreno, numa chamada “estrutura de projeto”, necessariamente a termo certo.
Após anos de indefinição laboral, com contratos a prazo, recibos verdes e
interrupções, acabamos por entrar nos quadros das instituições, na primeira
regularização de precários na administração pública no governo Guterres.
Se conto esta
história autobiográfica, é porque ela reflete a passagem entre dois momentos
cruciais da história recente dos museus nacionais, quando a situação normal de
entradas por concursos para suprir as vagas das instituições começou a ser
substituída, em face dos agudos problemas de falta de pessoal, pelo recurso a
formas de captação de funcionários baseadas no aproveitamento de fundos
comunitários, recursos temporários como o Plano Operacional para a Cultura ou
situações efémeras como a captação de bolseiros.
Na melhor das
hipóteses, alguns destes técnicos acabaram por ficar nos museus em programas de
“regularização” do emprego público. Muitas vezes porém, antes que isso
acontecesse, saíram levando com eles o saber acumulado sobre as coleções em que
trabalharam. Entretanto, conservadores que passaram décadas da carreira no
trabalho sobre uma coleção aposentaram-se sem que a sua experiência, o seu
conhecimento, se transferisse e fosse continuado por colegas que necessitavam
de ter trabalhado previamente durante vários anos com aqueles que iriam
substituir.
O problema é
geral para todos os museus, mas é maior naqueles que detêm coleções mais
vastas. No museu de Arte Antiga, as coleções não são apenas vastas como
diversificadas. A pintura, as artes orientais, o desenho, a escultura, a
ourivesaria, são coleções de milhares de peças, abrangendo arcos cronológicos
de quatro ou cinco séculos, e procedências de áreas geográficas muito vastas. É
simplesmente impossível o seu conhecimento sem longos anos de trabalho sobre
elas e necessitam de saberes que a formação universitária, por si só, não
fornece.
A interrupção
geracional dentro das instituições é um dos seus maiores problemas e talvez
aquele que mais hipoteca o seu futuro. Sem a transferência de conhecimento, não
só se torna inviável dar resposta aos estudantes, investigadores e instituições
que solicitam informações sobre as coleções como, em boa verdade, se torna
impossível o trabalho de constante construção do saber sobre os acervos e a
produção científica com base neles. Sem esse saber, facilmente os museus se
reduzem a locais de lazer, mantidos em melhores ou piores condições, mas que
tendem a tornar-se equipamentos culturais despidos de personalidade, cuja
programação constante é feita fora do seu âmbito: “espaços” onde acontecem
“eventos” criados fora das instituições, mesmo que pareçam dela resultar. Há
muito que uma parte importante da programação resulta desta criação externa,
mascarando a incapacidade produtiva dos museus, numa continuidade que os acaba por
tornar cada vez mais frágeis.
No longo caminho
percorrido pelos museus nacionais nas últimas décadas houve muitos progressos –
melhoramento de espaços, recuperação e transformação de edifícios, um evidente
dinamismo da programação em certos períodos, mas por detrás destes sucessos, a
fragilidade institucional decorrente quer de uma cada vez menor autonomia de
gestão, quer da incapacidade de renovação dos recursos humanos pairou sempre, e
o momento de rutura em muitos casos já chegou.
Um dos maiores disparates
cometidos foi a interrupção das carreiras operárias nos museus com a ideia de
externalização desses serviços. Foi um problema que não se sentiu
imediatamente, pois os trabalhadores continuaram em funções até à aposentação,
mas que com a continuação do tempo se tornou gritante.
No quadro pessoal
do MNAA de 1980 eram considerados 30 lugares para eletricistas, carpinteiros e
outros profissionais da manutenção. Quando entrei, em 1991, eram ainda uma boa
meia-dúzia, e outros tantos dedicados à limpeza. Neste momento, a limpeza é
externa e não abrange todo o período de abertura pública e a manutenção não
existe. Mesmo para quem está longe destes problemas, é fácil perceber que não é
possível, num museu desta dimensão, esperar pelos procedimentos administrativos
de uma contratação de serviços externos cada vez que é preciso abrir uma da
centena de vitrinas, trocar uma de milhares de lâmpadas, arranjar um puxador de
porta, reparar instalações sanitárias ou, pura e simplesmente, fazer circular
obras de arte ou colocar um quadro na parede. São problemas quotidianos, num
edifício vasto, com utilização permanente, onde os sintomas da degradação não
podem avolumar-se e, se a eles não se acode, em pouco tempo se degrada a
qualidade do serviço prestado.
Quando olhamos,
comparativamente, para as enormes melhorias que a democracia portuguesa
conseguiu no setor cultural, em áreas como as bibliotecas e arquivos, a música,
os teatros, ou nos equipamentos e na oferta cultural associativa ou autárquica,
é difícil não ver nos museus nacionais uma área de enorme falhanço: menos
preparados nas equipas, menos fortes enquanto instituições, menos resistentes
aos problemas do dia-a-dia e com menos capacidade de gestão. Que o atual
ministro da cultura tenha sido o antigo comissário para as comemorações dos 50
anos da democracia em Portugal parece-me de referir. Resta saber se com
esperança se com ironia.
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