terça-feira, 9 de agosto de 2022

Duas ou três notas sobre um declínio: os museus nacionais

 


 OPINIÃO

Duas ou três notas sobre um declínio: os museus nacionais

 

Quando olhamos para as enormes melhorias que a democracia portuguesa conseguiu no sector cultural, em áreas como as bibliotecas e arquivos, a música, os teatros, ou nos equipamentos e na oferta cultural associativa ou autárquica, é difícil não ver nos museus nacionais uma área de enorme falhanço.

 

Joaquim Oliveira Caetano

9 de Agosto de 2022, 7:52

https://www.publico.pt/2022/08/09/culturaipsilon/opiniao/duas-tres-notas-declinio-museus-nacionais-2015921

 

Passei uma tarde quente do final da década de 1980 num anfiteatro do Instituto Superior Técnico a fazer uma prova escrita de avaliação de um concurso aberto para 3 vagas de técnicos superiores: uma para o Museu Nacional de Arte Contemporânea e duas para o Museu Nacional de Arte Antiga. Seguiu-se uma entrevista com um júri de que faziam parte Ana Brandão, José Luís Porfírio e Adília Alarcão. Esta distante experiência enquadrou-se no último dos concursos abertos para técnicos superiores nos Museus Nacionais. Entretanto extinguiu-se o Instituto Português do Património Cultural, foi criado o Instituto Português de Museus, depois o Instituto dos Museus e da Conservação, este e outros Institutos deram origem à Direção-Geral do Património Cultural e, nestes 35 anos (o tempo de uma vida profissional), nenhuma das instituições que tutelaram os museus nacionais conseguiu abrir um único concurso para o seu reforço ou rejuvenescimento.

 

Não fui um dos escolhidos (entraram na altura o José Alberto Seabra, a Alexandra Markl e o Pedro Lapa), mas pouco depois submeti-me a outro concurso, para o Inventário do Património Móvel, lançado ainda pelo IPPC. Quando entrámos, este já tinha sido extinto e os 90 técnicos escolhidos, entre um milhar de candidatos, foram colocados, de forma paritária, nos Museus, Bibliotecas e Arquivos públicos, já dirigidos pelos novos institutos então criados. Este concurso, já só curricular, não pretendia dotar as instituições de técnicos, mas realizar o inventário no terreno, numa chamada “estrutura de projeto”, necessariamente a termo certo. Após anos de indefinição laboral, com contratos a prazo, recibos verdes e interrupções, acabamos por entrar nos quadros das instituições, na primeira regularização de precários na administração pública no governo Guterres.

 

Se conto esta história autobiográfica, é porque ela reflete a passagem entre dois momentos cruciais da história recente dos museus nacionais, quando a situação normal de entradas por concursos para suprir as vagas das instituições começou a ser substituída, em face dos agudos problemas de falta de pessoal, pelo recurso a formas de captação de funcionários baseadas no aproveitamento de fundos comunitários, recursos temporários como o Plano Operacional para a Cultura ou situações efémeras como a captação de bolseiros.

 

Na melhor das hipóteses, alguns destes técnicos acabaram por ficar nos museus em programas de “regularização” do emprego público. Muitas vezes porém, antes que isso acontecesse, saíram levando com eles o saber acumulado sobre as coleções em que trabalharam. Entretanto, conservadores que passaram décadas da carreira no trabalho sobre uma coleção aposentaram-se sem que a sua experiência, o seu conhecimento, se transferisse e fosse continuado por colegas que necessitavam de ter trabalhado previamente durante vários anos com aqueles que iriam substituir.

 

O problema é geral para todos os museus, mas é maior naqueles que detêm coleções mais vastas. No museu de Arte Antiga, as coleções não são apenas vastas como diversificadas. A pintura, as artes orientais, o desenho, a escultura, a ourivesaria, são coleções de milhares de peças, abrangendo arcos cronológicos de quatro ou cinco séculos, e procedências de áreas geográficas muito vastas. É simplesmente impossível o seu conhecimento sem longos anos de trabalho sobre elas e necessitam de saberes que a formação universitária, por si só, não fornece.

 

A interrupção geracional dentro das instituições é um dos seus maiores problemas e talvez aquele que mais hipoteca o seu futuro. Sem a transferência de conhecimento, não só se torna inviável dar resposta aos estudantes, investigadores e instituições que solicitam informações sobre as coleções como, em boa verdade, se torna impossível o trabalho de constante construção do saber sobre os acervos e a produção científica com base neles. Sem esse saber, facilmente os museus se reduzem a locais de lazer, mantidos em melhores ou piores condições, mas que tendem a tornar-se equipamentos culturais despidos de personalidade, cuja programação constante é feita fora do seu âmbito: “espaços” onde acontecem “eventos” criados fora das instituições, mesmo que pareçam dela resultar. Há muito que uma parte importante da programação resulta desta criação externa, mascarando a incapacidade produtiva dos museus, numa continuidade que os acaba por tornar cada vez mais frágeis.

 

No longo caminho percorrido pelos museus nacionais nas últimas décadas houve muitos progressos – melhoramento de espaços, recuperação e transformação de edifícios, um evidente dinamismo da programação em certos períodos, mas por detrás destes sucessos, a fragilidade institucional decorrente quer de uma cada vez menor autonomia de gestão, quer da incapacidade de renovação dos recursos humanos pairou sempre, e o momento de rutura em muitos casos já chegou.

 

Um dos maiores disparates cometidos foi a interrupção das carreiras operárias nos museus com a ideia de externalização desses serviços. Foi um problema que não se sentiu imediatamente, pois os trabalhadores continuaram em funções até à aposentação, mas que com a continuação do tempo se tornou gritante.

 

No quadro pessoal do MNAA de 1980 eram considerados 30 lugares para eletricistas, carpinteiros e outros profissionais da manutenção. Quando entrei, em 1991, eram ainda uma boa meia-dúzia, e outros tantos dedicados à limpeza. Neste momento, a limpeza é externa e não abrange todo o período de abertura pública e a manutenção não existe. Mesmo para quem está longe destes problemas, é fácil perceber que não é possível, num museu desta dimensão, esperar pelos procedimentos administrativos de uma contratação de serviços externos cada vez que é preciso abrir uma da centena de vitrinas, trocar uma de milhares de lâmpadas, arranjar um puxador de porta, reparar instalações sanitárias ou, pura e simplesmente, fazer circular obras de arte ou colocar um quadro na parede. São problemas quotidianos, num edifício vasto, com utilização permanente, onde os sintomas da degradação não podem avolumar-se e, se a eles não se acode, em pouco tempo se degrada a qualidade do serviço prestado.

 

Quando olhamos, comparativamente, para as enormes melhorias que a democracia portuguesa conseguiu no setor cultural, em áreas como as bibliotecas e arquivos, a música, os teatros, ou nos equipamentos e na oferta cultural associativa ou autárquica, é difícil não ver nos museus nacionais uma área de enorme falhanço: menos preparados nas equipas, menos fortes enquanto instituições, menos resistentes aos problemas do dia-a-dia e com menos capacidade de gestão. Que o atual ministro da cultura tenha sido o antigo comissário para as comemorações dos 50 anos da democracia em Portugal parece-me de referir. Resta saber se com esperança se com ironia.

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