EDITORIAL
A censura e o combate à desinformação
É possível dizer que a carta com a chancela do PS e do
PAN abre caminho ao controlo da informação, como é possível concordar que os
riscos da desinformação se tornaram um problema público que exige a intervenção
do Estado
Manuel Carvalho
31 de Maio de
2021, 21:30
https://www.publico.pt/2021/05/31/politica/editorial/censura-combate-desinformacao-1964795
A aprovação no
Parlamento, por uma expressiva maioria, do decreto-lei que institui
pomposamente a Carta Portuguesa dos Direitos Humanos na Era Digital gerou um
amplo e duro coro de protestos. É bom que haja reacções acaloradas sempre que
em causa estiver a liberdade de expressão. De resto, no essencial, as dúvidas
ou críticas contundentes que se expressaram, por exemplo, nas colunas de
opinião do PÚBLICO deste sábado (assinadas por António Barreto, José Pacheco
Pereira e por José Manuel Barata-Feyo, provedor do Leitor), fazem sentido. O
estímulo à bufaria, a ideia de envolver a Entidade Reguladora da Comunicação
Social a avaliar, por exemplo, se um post no Facebook intoxica a “elaboração de
políticas públicas” e, mais grave ainda, a ideia de colocar o Estado a avalizar
“estruturas de verificação de factos” são tão detestáveis como perigosos.
Mas, se há acordo
sobre a megalomania do legislador, se há no infame artigo 6.º da carta um óbvio
travo de censura, isso não quer dizer que o simples facto de o Estado se
preocupar com a desinformação e de inventariar meios para a travar seja o
equivalente a censura. É que entre as críticas pertinentes que se ouviram ao
articulado do decreto instalou-se por vezes a tese de que vale mais pagar os
custos da libertinagem das redes e dos trolls do que assumir os riscos de a subordinar
à lei – não é o caso dos autores citados. É possível dizer que a carta com a
chancela do PS e do PAN abre caminho ao controlo da informação, como é possível
concordar que os riscos da desinformação se tornaram um problema público que
exige a intervenção do Estado.
Identificar e
penalizar campanhas infames ou estratégias baseadas na mentira para manipular
os cidadãos em períodos eleitorais não é, em princípio, limitar a liberdade de
expressão. Isso já existe hoje em Portugal: um jornal que publique intencionalmente
falsidades para obter vantagens políticas ou económicas pode ser penalizado
pela ERC e condenado em tribunal. O que a pomposa carta pretende é, afinal,
proteger o espaço público e a democracia do universo por vezes cobarde,
manipulador e intangível da informação digital.
Se, entre a boa
intenção e os meios para a executar o legislador se inebriou com a ideologia
estatizante, com o gosto pelo controlo e pela ambição de meter o nariz até no
que se escreve sobre a “elaboração de políticas públicas” (uma preciosidade bem
descrita pela Helena Garrido no Observador), pois que se mande o decreto para o
lixo e se faça outro. O que não pode acontecer é considerar-se a obrigação do
Estado de lutar contra a desinformação como um acto de censura à partida.
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