terça-feira, 1 de junho de 2021

A censura e o combate à desinformação

 



EDITORIAL

A censura e o combate à desinformação

 

É possível dizer que a carta com a chancela do PS e do PAN abre caminho ao controlo da informação, como é possível concordar que os riscos da desinformação se tornaram um problema público que exige a intervenção do Estado

 

Manuel Carvalho

31 de Maio de 2021, 21:30

https://www.publico.pt/2021/05/31/politica/editorial/censura-combate-desinformacao-1964795

 

A aprovação no Parlamento, por uma expressiva maioria, do decreto-lei que institui pomposamente a Carta Portuguesa dos Direitos Humanos na Era Digital gerou um amplo e duro coro de protestos. É bom que haja reacções acaloradas sempre que em causa estiver a liberdade de expressão. De resto, no essencial, as dúvidas ou críticas contundentes que se expressaram, por exemplo, nas colunas de opinião do PÚBLICO deste sábado (assinadas por António Barreto, José Pacheco Pereira e por José Manuel Barata-Feyo, provedor do Leitor), fazem sentido. O estímulo à bufaria, a ideia de envolver a Entidade Reguladora da Comunicação Social a avaliar, por exemplo, se um post no Facebook intoxica a “elaboração de políticas públicas” e, mais grave ainda, a ideia de colocar o Estado a avalizar “estruturas de verificação de factos” são tão detestáveis como perigosos.

 

Mas, se há acordo sobre a megalomania do legislador, se há no infame artigo 6.º da carta um óbvio travo de censura, isso não quer dizer que o simples facto de o Estado se preocupar com a desinformação e de inventariar meios para a travar seja o equivalente a censura. É que entre as críticas pertinentes que se ouviram ao articulado do decreto instalou-se por vezes a tese de que vale mais pagar os custos da libertinagem das redes e dos trolls do que assumir os riscos de a subordinar à lei – não é o caso dos autores citados. É possível dizer que a carta com a chancela do PS e do PAN abre caminho ao controlo da informação, como é possível concordar que os riscos da desinformação se tornaram um problema público que exige a intervenção do Estado.

 

Identificar e penalizar campanhas infames ou estratégias baseadas na mentira para manipular os cidadãos em períodos eleitorais não é, em princípio, limitar a liberdade de expressão. Isso já existe hoje em Portugal: um jornal que publique intencionalmente falsidades para obter vantagens políticas ou económicas pode ser penalizado pela ERC e condenado em tribunal. O que a pomposa carta pretende é, afinal, proteger o espaço público e a democracia do universo por vezes cobarde, manipulador e intangível da informação digital.

 

Se, entre a boa intenção e os meios para a executar o legislador se inebriou com a ideologia estatizante, com o gosto pelo controlo e pela ambição de meter o nariz até no que se escreve sobre a “elaboração de políticas públicas” (uma preciosidade bem descrita pela Helena Garrido no Observador), pois que se mande o decreto para o lixo e se faça outro. O que não pode acontecer é considerar-se a obrigação do Estado de lutar contra a desinformação como um acto de censura à partida.

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