Pesticidas: guerra aberta na Europa sobre um perigo
invisível
De um lado, o “complexo agro-industrial”, como lhe chama
o próprio vice-presidente da Comissão Europeia Frans Timmermans. Do outro,
milhões de cidadãos empenhados em combater uma das grandes ameaças à
biodiversidade. Esta é a batalha política do momento em Bruxelas: deve, ou não,
haver uma redução obrigatória de 50% no uso de pesticidas químicos?
Paulo
Pena/Investigate Europe
26 de Junho de
2022, 6:30
Hugo Zina só teve
tempo de correr. Estava na África do Sul, a fazer um levantamento biológico num
campo de cereais. No céu, sem aviso, estava um avião a pulverizar o campo com
um pesticida qualquer, que nem a tarimba de biólogo lhe permitia reconhecer. De
repente, viu-se obrigado a entrar no carro para se proteger. O trabalho foi
interrompido, para sempre.
Voltou no dia
seguinte, e no outro. A sua missão, que era monitorizar as aves naquela zona,
ficou de repente (e tragicamente) mais fácil e também mais urgente do que
nunca. “Impressionou-me muito a consequência do que aconteceu. Basicamente,
tudo o que era macro, principalmente aves, desapareceu. Não se ouvia nada. Os
invertebrados, os insectos — todo o tipo de insectos — vieram ao cimo da terra
e morreram. Aquilo ficou um deserto autêntico.”
Foi nesse momento
que Hugo decidiu deixar de ser biólogo. Não lhe bastava observar, medir,
quantificar, “ser uma roda na engrenagem”. Tinha na cabeça uma vontade de fazer
qualquer coisa que contrariasse a lógica do que viveu na África do Sul. Foi
para a Alemanha, fazer voluntariado, e lá conheceu Theresa Sabo, que fazia um
mestrado em Agricultura Biológica. A ideia tornou-se mais clara. Hugo, de 36
anos, e Theresa, de 35, casaram-se e vieram morar para uma quinta, vizinha do
paul de Tornada, a poucos quilómetros das Caldas da Rainha. Ali fundaram a
Horta do Pé Descalço, em 2017. Têm uma regra: “Nós praticamos a não-agressão.”
Palavra de biólogo: “Não é preciso aplicar pesticidas.”
“Sou o primeiro a
concordar que tudo deve ser protegido, sobretudo as pessoas. E tenho interesse
nisso, porque sou o primeiro a levar os meus produtos para casa e a comê-los”,
explica, com lógica, Ildefonso Cabaníllas Corchado. Encontramo-lo em Badajoz,
na sede da UPA, a associação de pequenos agricultores da Extremadura espanhola.
Ildefonso produz tomate, nos campos irrigados pela rede fluvial do Guadiana.
“Estamos a lutar com armas desiguais. A palavra ‘lucro’, na agricultura, já não
existe…”
Nestas contas
difíceis, em que a sobrevivência dita regras, Ildefonso não concebe a ideia de
produzir sem pesticidas químicos. Mesmo com pesticidas, o negócio piora de ano
para ano. “Antes, com dois ou três produtos, tínhamos tudo sob controlo. Agora,
precisamos de fazer várias combinações de pesticidas, o que torna tudo mais
caro, porque o novo produto é mais caro do que o anterior, e depois tem de ser
complementado com outros para ter o mesmo efeito, pelo que é duas vezes mais
caro. É praticamente como se as pragas já tivessem um escudo…”
Não surpreenderá
ninguém que estes dois agricultores ibéricos, de gerações diferentes, vejam a
intenção da Comissão Europeia de impor uma redução de 50% no uso de pesticidas
agrícolas até 2030 de formas diferentes. Antagónicas, até. O regulamento sobre
o uso sustentável de pesticidas (SUR) será a primeira lei vinculativa a sair da
estratégia da União Europeia (UE) que visa tornar a agricultura europeia verde
e sustentável (chamada “do prado ao prato” ou F2F, na abreviatura inglesa de
“farm to fork”).
Guerra, um antes
e depois
A mesma linha que
separa estes dois agricultores divide Governos e comissários. Cria também um
fosso entre as preocupações dos ambientalistas e a defesa dos interesses
daquilo a que o neerlandês Frans Timmermans, que é o responsável europeu pelo
Pacto Verde e vice-presidente da Comissão Europeia, chama “complexo
agro-industrial”.
Não restam
dúvidas de que a produção agrícola, industrial, e o uso de pesticidas são
responsáveis por uma crise profunda que está a dizimar populações de animais e
a mudar a forma como vivemos. O problema está em saber o que deve ser feito.
Nada explica
melhor esta tensão política do que a própria história recente desta lei. A
França assumiu a presidência da UE no início deste ano. No seu programa,
declarou que iria “promover iniciativas para acelerar a transição
agro-ecológica e assim reduzir a utilização de pesticidas”.
Poucos dias
depois, foi publicado um estudo, da Universidade de Wageningen (Países Baixos),
que foi financiado pela CropLife, o lobby das empresas produtoras de
pesticidas, que concluiu que as políticas de redução de pesticidas na Europa
“resultarão numa diminuição dos volumes produzidos por cultura em toda a UE, em
média de 10% a 20%, e que os preços do vinho, azeitonas e lúpulo aumentarão”.
Isto levaria, segundo esse estudo, a uma diminuição das exportações da UE, e a
uma potencial duplicação das importações.
Ainda em Janeiro,
uma declaração conjunta de 19 organizações representativas dos agricultores e
da indústria química apelava, entre outras coisas, à tecnologia inteligente e à
transformação digital para alcançar os objectivos da estratégia F2F, e para
garantir que os pesticidas não sejam proibidos até que existam alternativas. A
campanha mediática e de pressão política estava no auge. Mas o momento
decisivo, que fez crescer ainda mais a oposição à redução de pesticidas,
pareceu um acaso.
A 24 de
Fevereiro, a Rússia invadiu a Ucrânia. Sentindo a pressão crescente, alimentada
pela guerra — e pela interrupção na produção e venda de cereais — o comissário
agrícola polaco Janusz Wojciechowski informou os eurodeputados sobre os
próximos passos que o executivo da UE pretendia dar para fazer face ao impacto
da guerra. “Agora precisamos de parar o processo, suspender o processo”, disse
o comissário, respondendo a uma pergunta do eurodeputado de centro-direita Herbert
Dorfmann, sobre o que a Comissão tencionava fazer com “certos actos
legislativos que poderiam questionar a segurança alimentar, por exemplo, a
directiva sobre pesticidas”.
Emmanuel Macron —
que estava numa difícil campanha eleitoral em que enfrentava uma candidata de
extrema-direita defensora do uso de pesticidas — disse, numa conferência de
imprensa, que a política europeia da estratégia F2F, que ele próprio defendeu,
se baseia num mundo “antes da Guerra na Ucrânia”, e que poderia resultar numa
“redução de 13% na produção”. Marine Le Pen, em campanha eleitoral no
departamento de Loiret, prometeu denunciar o programa europeu: “Terá a
consequência de reduzir a produção agrícola europeia em 10% a 20%, o que é um
absurdo total numa altura em que estamos a correr atrás da soberania
alimentar”, disse.
A Presidente da
Comissão Europeia, Ursula von der Leyen, decidiu adiar a apresentação da lei de
redução dos pesticidas. Mas 41 eurodeputados escreveram uma carta a expressar o
seu “profundo desapontamento e indignação com o adiamento da proposta de
reforma da directiva sobre a utilização sustentável de pesticidas, que deveria
ter sido publicada esta quarta-feira, 23 de Março de 2022”.
Frans Timmermans
tentou resistir à pressão: “Aqueles que logo de início não gostaram da F2F
usaram [agora] a guerra como pretexto para voltarem à sua antiga posição e
tentarem impedir a F2F de acontecer.” A resposta não tardou. Numa conferência
de imprensa, Christiane Lambert, co-presidente da COPA-Cogeca, a principal
federação agrícola europeia, qualificou as observações de Timmermans como
“desonestidade intelectual”. “E acuso-o de ser desumano, por ser egoísta, por
apenas olhar para os europeus e não para os cidadãos do mundo”.
Na entrevista que
nos concedeu para este trabalho, o vice-presidente da Comissão reage a estas
declarações. “Pergunto-me porquê este nível de agressão contra mim. Será por eu
ter razão?”
Apelo ao medo
Sem a
obrigatoriedade da redução, que Frans Timmermans quer impor, os pesticidas
continuarão a ser usados, da mesma forma que no passado. A prova disso é o
efeito nulo da directiva da UE de 2009 que apelou a uma redução acentuada da
sua utilização, mas sem metas obrigatórias. Timmermans concorda que os
objectivos não-vinculativos “não nos levam a lado nenhum”.
Este processo
mostra como os governos nacionais actuam, por vezes, como representantes
exclusivos dos interesses das suas associações de agricultores. Em França, o
ministro da Agricultura do primeiro Governo Macron estava tão próximo da
federação nacional de agricultores que o chefe daquela federação até o elogiou
no Twitter como “bom porta-voz da causa”. Em França, o antigo chefe de gabinete
do ministro da Agricultura, Marc Fresneau, juntou-se recentemente ao lobby
nacional dos fabricantes de pesticidas como chefe de relações públicas.
O lobby que ataca
a F2F fala de uma crise alimentar, apesar de a UE ser um exportador líquido de
alimentos. O seu principal argumento é a perda de alimentos devido à invasão
russa, mas, de acordo com dados da FAO, nenhum dos estados da UE se encontra
entre os 50 primeiros países mais dependentes das importações russas e
ucranianas. “O que a indústria agro-química e os grandes negócios
agro-industriais estão a fazer é alarmismo. É completamente falso e
injustificado que haja escassez de alimentos. Eles querem usar a guerra para os
seus próprios interesses de lobby, querem apelar aos medos das pessoas”,
critica Gergely Simon da Rede de Acção contra os Pesticidas e Greenpeace.
O lobby dos
pesticidas não tem sido poupado nos seus gastos em Bruxelas. De acordo com a
base de dados da UE, a Bayer tem o orçamento mais elevado, mais de 4,250
milhões de euros por ano. Apenas o Google, Facebook, e Microsoft têm gastos
anuais com lobbying mais elevados.
As grandes empresas
também formam várias organizações, conjuntas, para tornar a sua pressão ainda
mais intensa. As mais importantes são a CropLife (que, como vimos, financia
estudos universitários) e a Euroseeds, também com orçamentos de centenas de
milhares de euros. Como explica Nina Holland, uma perita do Corporate Europe
Observatory (CEO), as empresas concorrentes estão a fazer lobby em Bruxelas de
uma forma unida. “Todas elas estão a exercer pressão em prol das mesmas regras
pró-negócio quando se trata de avaliação de risco ou de adiamento de certas
medidas. Se olharmos para estas organizações, podemos ver que a Bayer, a BASF,
a Corteva e a Syngenta tendem a dominar a sua liderança”, explica Holland.
A COPA-Cogeca, a
federação europeia das organizações da indústria agro-alimentar também faz
lobby contra o uso sustentável de pesticidas. O secretário-geral da
COPA-Cogeca, Pekka Pesonen, disse-nos que a sua organização “apoia os
princípios” da redução de pesticidas. Mas, em Setembro de 2021, partilhou com
os seus membros uma campanha de relações públicas montada para criar incerteza
entre os parlamentares da UE sobre os efeitos da nova legislação. Ali eram
identificados todos os estudos realizados por agrónomos que defendem posições
próximas da indústria e até documentos criados pelo Departamento de Agricultura
dos EUA.
Desde o início de
2019, como pudemos apurar, a COPA-Cogeca consultou 26 vezes os comissários ou
os seus gabinetes, sobre a questão. A CropLife Europe, 12 vezes. Bayer, BASF,
Syngenta e Corteva tiveram 69 reuniões, o que dá uma média de duas por mês. Não
são mantidos pela UE registos de reuniões com funcionários de nível inferior.
O mistério dos
dados
Com este
trabalho, pudemos verificar que não é só a França que mostra ter dois
discursos, totalmente contraditórios, sobre o uso de pesticidas. Portugal e
Espanha, que têm ministérios poderosos para as questões ambientais, e procuram
empenhar-se publicamente com posições ecologistas, estão entre os críticos da
proposta de Timmermans. Não em público, mas sobretudo nas reuniões secretas do
Conselho.
Mesmo sem fazerem
parte do grupo de dez países que já se assumiram contra a proposta (mas não
têm, ainda, peso para parar a lei no Conselho), Portugal e Espanha mostraram,
recentemente, dúvidas sobre os efeitos da lei.
Em resposta às
nossas perguntas, o Governo português garante estar disponível “para aprovar as
medidas que venham a revelar-se efectivas alterações positivas para a
regulamentação da utilização de pesticidas”. Mas há um “contudo” nesta
resposta: “É necessário conhecer um conjunto de detalhes que ainda não são
conhecidos — como a forma de cálculo a adoptar ou as sanções impostas aos
Estados-membros que não cumpram as metas, por exemplo — para determinar uma
posição final de Portugal nesta matéria.”
“Não me
surpreende”, diz-nos Alexandra Azevedo, responsável da Quercus pelo tema dos
pesticidas. “Enquanto outros países já têm leis que proíbem o uso de pesticidas
em área urbana, Portugal não tem. Portugal é muito apetecível para a instalação
de modelos de agricultura química.”
Lembrando um
estudo internacional recente que detectou grandes níveis de contaminação por
pesticidas nas peras e maçãs portuguesas, Alexandra Azevedo percorre o mapa do
país apontando os casos mais problemáticos: dos arrozais dos vales do Mondego,
Tejo e Sorraia, que fazem de Portugal o terceiro maior produtor deste cereal na
Europa, e são “pulverizados com pesticidas por avião”, à fruta no Oeste, às
estufas no litoral alentejano, aos cerejais da Beira Interior, à nova produção
de abacate no Algarve, que se junta à tradicional cultura de citrinos, e aos
olivais e amendoais nas margens do Alqueva.
Isto é o que a
Quercus pode apontar, conhecendo a produção intensiva e as necessidades que ela
tem de compostos químicos (herbicidas, fungicidas, pesticidas). “Não se sabe
mais porque não se fazem análises”, critica Alexandra Azevedo.
Para contrariar a
estranha falta de análises em Portugal, a Quercus decidiu pagar testes
laboratoriais à urina de 26 voluntários para detectar a presença do pesticida
mais vendido em Portugal, o glifosato (com o nome comercial Roundup). A
substância química foi detectada em 100% da amostra, e em valores preocupantes.
“O valor médio de glifosato na urina dos portugueses testados foi de 26,2 ng/ml
(nanogramas por mililitro). Para referência, tome-se a Directiva da Qualidade
da Água: na água de consumo, o glifosato não pode ultrapassar os 0,1 ng/ml.
Isto significa que a quantidade de glifosato agora detectada, se estivesse em
água da torneira, contaminaria essa água 260 vezes acima do limite máximo
legal.”
Não são só os
governantes portugueses que evitam testar a presença de pesticidas no meio
ambiente, ou nos próprios cidadãos. “Há anos que luto em Espanha pelo acesso a
estas estatísticas. O que temos encontrado é o chamado segredo estatístico,
porque os Estados-membros podem determinar o que pode ser público”, acusa Koldo
Hernández, jurista, co-autor do relatório Rios Tóxicos, publicado em Março,
sobre a contaminação por pesticidas dos rios espanhóis. “Em Espanha, como na
maioria dos países europeus, os dados [sobre pesticidas] não são reais — são
apenas dados obtidos através de inquéritos respondidos pela indústria.
Portanto, têm um baixo grau de fiabilidade, são tendenciosos.”
Por isso, Koldo
fez uma queixa à provedora de Justiça europeia, Emily O'Reilly, contra a
Comissão Europeia, por lhe ter sido negado o acesso à informação estatística
oficial sobre vestígios de componentes de pesticidas no meio ambiente. Em Março
de 2022, a conclusão foi clara: “A provedora de Justiça considera questionável
que a Comissão conclua que o princípio do segredo estatístico prevalece sobre a
transparência da informação relativa às emissões para o ambiente.”
A Comissão
recusou o acesso aos documentos na sua totalidade. Invocou uma excepção
prevista nas regras da UE sobre o acesso do público aos documentos,
nomeadamente “a necessidade de proteger os interesses comerciais de uma pessoa
singular ou colectiva”.
A Comissão
argumentou que “a divulgação das partes eliminadas prejudicaria os interesses
comerciais das empresas das quais os dados foram recolhidos”.
Em resposta ao
Investigate Europe, o gabinete de O’Reilly começou por esclarecer que “o uso de
pesticidas é um assunto seguido de perto pelos cidadãos”. Sobre o caso
concreto, a condenação da Comissão é clara. “Temos observado que há
frequentemente uma tendência [da Comissão Europeia] para ser demasiado rápida a
descontar o interesse público primordial na divulgação da informação em causa.”
As regras sobre
estatísticas de pesticidas (SAIO) não estão harmonizadas na UE e só são
recolhidas de cinco em cinco anos. Petros Kokkalis, o eurodeputado relator da
reforma da SAIO, explica-nos que os opositores e lobistas queriam
essencialmente manter os regulamentos que estão em vigor, para que fosse
impossível controlar o cumprimento da redução de pesticidas. Este plano falhou
e as estatísticas serão normalizadas. Pela primeira vez na UE, os dados serão
obrigatórios para mostrar a dimensão real da utilização de pesticidas. Mas
apenas a partir de 2028.
No relatório
elaborado por Koldo Hernández, que se baseia nos dados incompletos recolhidos
pelas autoridades, é possível ver que o Douro, o Tejo e o Guadiana apresentam
níveis elevados de contaminação por pesticidas, quer nas águas superficiais —
“e muitos destes pesticidas não são solúveis em água”, alerta o autor —, nas
águas subterrâneas e na análise da “biota”, a matéria orgânica.
Por isso viajamos
até aos campos agrícolas do Guadiana espanhol, para tentar perceber como
aparecem tantos vestígios do já referido glifosato, do dicofol (usado no antigo
DDT) e do cancerígeno benzopireno.
Ignacio Huerta, o
representante dos agricultores da Extremadura, vê “coisas um pouco estranhas”
no debate sobre o glifosato. “É usado há muito tempo. Mas a empresa perde os
direitos da patente e torna-se um produto muito mais barato. É curioso que
todos estes debates surjam precisamente quando isto acontece. Só aí é que o
produto é posto em causa. Mas depois vemos que o próximo que vai sair, o que o
substitui, por assim dizer, é um produto que tem praticamente a mesma base
química, mas custa cerca de três vezes mais do que o glifosato. Isto é algo que
obviamente gera uma grande dose de rejeição e incerteza para nós.”
“Reduzir o uso de
pesticidas em Espanha vai ser como separar uma mãe do seu bebé recém-nascido”,
antecipa Koldo Hernández. “É preciso compreender os agricultores. Eles têm
sucesso com os pesticidas e não existe uma cultura de não-utilização de
pesticidas.”
Ignácio Huerta
diz-nos isso mesmo: “Não somos médicos ou cientistas, somos agricultores e
criadores de gado, obviamente, e o que queremos é que este tipo de situações
esteja acautelado com o rigor científico que deve ter”. Para Huerta, a UE já é
a campeã mundial das cautelas. O problema é que as cautelas são como os caldos
de galinha, no que diz respeito à vida dos agricultores. Mal não fazem, mas
podem não ser suficientes.
Primavera
silenciosa
“Encontramo-nos
numa crise de biodiversidade. As espécies estão a extinguir-se mais rapidamente
do que há 65 milhões de anos, desde que os meteoros exterminaram os
dinossauros. E o problema está a crescer”, diz-nos Dave Goulson, professor de
Biologia na Universidade de Sussex, em Inglaterra. Os insectos são a sua especialidade.
Estes não só constituem dois terços de todas as espécies conhecidas, como
permitem a existência de outros organismos vivos, nomeadamente através da
polinização das plantas.
A organização
inglesa Kent Wildlife Trust fez um teste. Pediu a vários cidadãos que viajam de
carro por zonas rurais que deixassem avaliar o número de bichos mortos nas suas
placas de matrícula. O resultado demonstra que entre 2004 e 2021 o número de
insectos mortos nos carros destes britânicos diminuiu quase 60%. Um estudo de
2017, feito em áreas protegidas na Alemanha, documentou uma perda de 75% da
população de insectos, em apenas 27 anos.
Hugo Zina, como
biólogo de formação, continua atento. Na sua Horta do Pé Descalço, tenta poupar
as plantas aos insectos que as comem, ou às pragas que as afectam. Aponta-nos
para o canteiro onde plantou couves. “Como vê, há algumas coisas que estão
tapadas. Nós temos que perceber de onde é que vêm as pragas. Se nós temos
couves e se há uma borboleta branca que vai lá pôr ovos, e dos ovos nasce uma
lagarta que come a couve, o que nós fazemos é bloquear o acesso da borboleta à
couve. Pronto.” As couves estão cobertas por uma rede branca que (quase…) não
deixa as borboletas pousar nas folhas. “É lógico que não há cem por cento de
eficácia. Há sempre uma borboleta que entra. Mas não é significativo porque eu
nunca espero, quando planto um canteiro, ter cem por cento de produção.”
Chama-se
Primavera Silenciosa a distopia que a bióloga Rachel Carson (1907-1964)
publicou em 1962 e que hoje parece uma previsão acertada. No seu livro,
alarmante, sobre as consequências do insecticida altamente tóxico DDT, que era
utilizado em todo o mundo na altura, Carson descreveu “doenças misteriosas” e
previu uma “sombra da morte”. As flores murchavam e os pássaros desapareciam,
as abelhas já não zumbiam nos pomares e o silêncio tomava conta dos campos.
“Esta tragédia”, escreveu Carson, no primeiro bestseller ambiental do mundo,
que foi impresso milhões de vezes, “é por agora apenas uma invenção da
imaginação”. Mas pode “tornar-se facilmente uma dura realidade” se o “espectro”
da agricultura, repleto de venenos agrícolas, não for travado.
A previsão de
Carson, bióloga marinha, é observada pelo biólogo agrícola Josef Settele, do
Centro Helmholtz para a Investigação Ambiental, um dos principais autores do
estudo colaborativo global sobre a perda de espécies, que coloca o risco de
perda de biodiversidade a par das alterações climáticas no topo das nossas
preocupações urgentes. “Temos uma homogeneização de toda a paisagem”, diz-nos.
Além disso, as provas são claras de “que os pesticidas desempenham um papel
importante na mortalidade dos insectos”.
Settele, de 62
anos, é reservado e mede as palavras cuidadosamente. Mas neste ponto, não.
Cerca de 75% das culturas dependem da polinização dos insectos, diz-nos. “E o
nosso fornecimento vitamínico de frutos e nozes também”. Certamente, ninguém
sabe “se ainda terão de existir 580 espécies de abelhas na Alemanha no futuro,
como tem acontecido até agora. Mas quanto mais espécies, mais opções de
adaptação existem. Ninguém pode dizer exactamente quantas são necessárias. Só
saberemos quando for demasiado tarde”, alerta Settele.
À medida que os
insectos diminuem, o mesmo acontece com as aves. “Quase todas as espécies de
aves utilizam os insectos como alimento para as suas crias”, explica Ariel
Brunner, chefe europeu da associação de ornitólogos Bird Life International. A
associação tem vindo a recolher dados de toda a Europa desde há muito tempo. As
suas descobertas são alarmantes: as populações das 168 espécies de aves
europeias comuns diminuíram 18% desde 1980. Mas, no mesmo período, as 39
espécies de aves de campo perderam até 59% da sua antiga população. “Isto
mostra indiscutivelmente que são os nossos sistemas agrícolas que as estão a
matar.”
O biólogo de
conservação francês Benoït Fontaine também tem vindo a seguir esta observação
desde há muito tempo. “Isto é um enorme declínio, um desastre”, queixa-se.
“Estamos a caminhar cada vez mais depressa em direcção a um muro, e estamos a
acelerar.”
E o principal
risco é mesmo que tudo isso aconteça em vão. “O uso de pesticidas é a forma
menos eficaz de controlar pragas, ervas daninhas e doenças, porque sem medidas
preventivas as pragas estão a ressurgir com cada vez maior frequência”, conclui
um estudo recente da ONG Foodwatch, ainda por publicar, que Investigate Europe
leu. O estudo salienta também que a dependência de pesticidas criou um “sistema
agrícola muito frágil”. A produção agrícola entrou numa “encosta escorregadia”
no final do século XIX e início do século XX, quando a utilização de pesticidas
se generalizou, levando à aplicação de cada vez mais venenos.
“O ideal seria
que os pesticidas se tornassem parte da gestão de catástrofes e não parte da
caixa de ferramentas da agricultura. Porque se se tiver realmente de evitar a
fome ou algum tipo de catástrofe, é legítimo causar um pequeno dano ambiental”,
acrescenta Ferenc Tóth, agrónomo do Instituto de Agricultura Ecológica, na
Hungria.
Nos últimos 100
anos, revela um relatório do grupo francês de análise dos impactos sociais
(BASIC), a “revolução agrícola” tornou os pesticidas num dos “pilares” do
modelo mecanizado, industrial, da produção de alimentos. Isso criou uma
dependência forte nos agricultores. E uma indústria global com muito peso
político.
O negócio é
realmente grande: em 2019, o mercado dos pesticidas foi avaliado em 52 mil
milhões de euros, dos quais as vendas europeias representaram 12 mil milhões de
euros. Quatro empresas dominam dois terços do mercado total. A maior delas é a
Bayer (o ramo de “protecção de culturas” registou receitas de mais de 20 mil
milhões de euros no ano passado), seguida pela Syngenta, com sede na Suíça, mas
comprada pela empresa estatal ChemChina, a Corteva, anteriormente DuPont nos
EUA, e outro gigante químico alemão, a BASF.
Bayer, BASF e
Corteva são parcialmente detidas pelos mesmos cinco fundos de investimento
norte-americanos — Blackrock, Vanguard, State Street, Capital Group e Fidelity
— que também detêm entre 10% e 30% do capital das principais empresas
alimentares mundiais, tais como Unilever, Nestlé, Mondelez, Kellogg, Coca-Cola
e PepsiCo.
O volume de
negócios combinado daquele top-4 caiu de 46 mil milhões de dólares em 2014 para
40 mil milhões de dólares em 2020, principalmente devido ao aumento das
empresas chinesas que comercializam produtos químicos patenteados e patenteados
fora de prazo, segundo estudos de mercado.
Agricultura
industrial
Uma das respostas
das grandes empresas à perda de quota de mercado tem sido aumentar o seu foco
no comércio de sementes geneticamente modificadas para serem imunes aos
pesticidas que elas próprias comercializam.
Mesmo que um
pesticida químico seja proibido na UE, isso não significa que não possa ser
produzido e exportado. Assim, os venenos proibidos na UE, e as sementes
tratadas com eles, podem ir para países onde ainda são permitidos. Países esses
que, depois, exportam produtos agrícolas para a UE. E essa é uma queixa de
todos os agricultores com quem falámos: a UE devia aplicar as mesmas regras aos
produtos agrícolas que importa do Brasil, do Chile, de Marrocos ou da África do
Sul.
A população
mundial mais do que duplicou nos últimos 50 anos, enquanto a terra arável
disponível aumentou apenas cerca de 10%. No entanto, a produção das principais
culturas mais do que triplicou desde 1960. Isto dificilmente seria possível sem
uma agricultura industrial cada vez mais intensiva e de grande escala, e sem o
uso crescente de pesticidas. Durante este período, os rendimentos por hectare
aumentaram de uma média de 2,5 toneladas para 6,5 toneladas. Não é de admirar
que a grande maioria dos agricultores encarem os pesticidas como uma
necessidade básica.
A população da UE
deita fora 80 milhões de toneladas de alimentos todos os anos, sem contar com
as culturas que ficam por colher devido aos preços baixos, elevando este número
para 110 milhões de toneladas, revela o estudo da Foodwatch. Embora existam
muitas pessoas com fome no mundo, existem agora mais pessoas com excesso de
peso, tornando claro que existem problemas de distribuição: a fome é causada
pela pobreza, não por uma produção alimentar insuficiente.
Além disso,
grande parte da produção agrícola global não se destina sequer ao consumo
humano directo. Por exemplo, 82% das calorias destinadas ao consumo humano são
produzidas em 23% das terras agrícolas disponíveis. Os restantes 77% das terras
agrícolas são utilizadas para produzir alimentos para animais. Há duas vezes
mais porcos do que crianças na UE. A área de terra utilizada para produzir
alimentos para estes animais apenas para abate é igual à área total da Áustria,
Alemanha, Dinamarca e República Checa.
Dave Goulson,
professor de Biologia na Universidade de Sussex, confirma que globalmente
“produzimos cerca de três vezes mais calorias do que as necessárias para
alimentar toda a gente. Mas grande parte destes alimentos é desperdiçada e
grande parte é dada aos animais”.
Mesmo com os actuais
rendimentos das culturas, os agricultores estão a ter cada vez mais dificuldade
em fazer face às despesas, em todos os Estados-membros da UE. Para os pequenos
agricultores, os programas de apoio agrícola da UE têm menos a ver com lucro e
mais com sobrevivência, como nos explicam Ildefonso Corchado e Jose Yerga, do
lado espanhol da fronteira do Guadiana.
Sempre os mesmos
A Política
Agrícola Comum (PAC) é a maior parcela do orçamento da UE, representando 31% do
orçamento total em 2022, ou seja, 53,1 mil milhões de euros. Mas todos os
principais Estados-membros da UE assistiram a um declínio significativo no
rendimento agrícola bruto médio sem subsídios, variando entre -6% na Alemanha e
-33% na Bélgica. A única excepção é a Espanha, onde o rendimento bruto por
hectare aumentou ligeiramente, em 3%.
Isso explica
também o peso que o negócio agrícola tem no Governo de Madrid. “O discurso
espanhol sobre os pesticidas é totalmente dominado pelo Ministério da
Agricultura. Na verdade, é o único organismo competente em matéria de
pesticidas. O Ministério da Agricultura espanhol sempre teve um perfil muito
pró-industrial. De facto, e independentemente de quem esteve no Governo, os
principais funcionários do ministério não mudaram. Noutros ministérios, os
directores-gerais mudam com cada Governo, mas no Ministério da Agricultura os
responsáveis sobre a questão dos pesticidas são sempre os mesmos. A Espanha é
um defensor convicto da utilização de pesticidas”, explica-nos Koldo Hernández.
Essa realidade
será semelhante noutros países do Sul, como Portugal e a Grécia. “São
ministérios altamente condicionados pelo poder económico”, acrescenta Alexandra
Azevedo, da Quercus.
Na sua quinta
perto das Caldas da Rainha, Hugo Zina mostra-nos os seus canteiros, desenhados
com o rigor matemático que o curso de Biologia lhe deu. O truque da exploração,
explica-nos, vem do modelo de negócio. Hugo e Theresa vendem directamente aos
consumidores. Não dependem, como José e Ildefonso, dos preços que a indústria
transformadora dá aos seus alimentos, nem sofrem com a concorrência de produtos
baratos, importados de países vizinhos, como Marrocos.
Hugo e Theresa
definiram um salário mensal justo que devem receber pelo seu trabalho.
Organizam a produção para esse objectivo. “Usamos muita diversidade. Fazemos
50variedades, 60 variedades de culturas diferentes.”
Têm 64 canteiros.
Todos os canteiros são iguais. “Nós conseguimos produzir 200 quilos de
batata-doce, boa, standard, num canteiro de 19 metros quadrados, fora aquelas
que são meio comidas pelos ratos e as pequeninas. Os produtores tradicionais
conseguem 20 toneladas por hectare e ficam contentes. Fazendo os cálculos, aqui
deu cem toneladas por hectare.”
A agricultura
biológica ocupa apenas uma pequeníssima parcela das terras que produzem os
nossos alimentos. Representa 8%, na média da UE. Só na Áustria se aproxima de
um quarto (24%) da produção agrícola total. Talvez por isso, três quartos da
população de Mals, no Tirol, decidiu, num referendo, proibir a utilização de
pesticidas nos campos onde crescem pomares de maçãs.
Uma rede negra é
esticada sobre o pomar para onde Günther Wallnöfer conduz as suas vacas do
prado para o celeiro todas as noites. “Entre outras coisas, isto é para evitar
a deriva de pesticidas”, explica Wallnöfer, que vive da agricultura biológica
de lacticínios e do cultivo de vegetais no município de Mals no Tirol do Sul.
Ali, em 2014, as análises encontraram vestígios de pesticidas nos prados, na
água, e mesmo em parques infantis.
A comunidade
decidiu ripostar: num referendo realizado em 2014, 75% dos votantes decidiram a
proibição do uso de pesticidas em Mals. Isto causou um tumulto naquela região,
onde a indústria da maçã tem um volume de negócios anual de mais de 760 milhões
de euros. Dezenas de agricultores lançaram um processo judicial para anular o
resultado do referendo. Os juízes locais concordaram com eles e suspenderam a
proibição. Agora a decisão está perante o mais alto tribunal administrativo.
“Estamos muito
esperançosos com o novo regulamento de pesticidas de Bruxelas”, explica Martina
Hellrigl, presidente da cooperativa social Mals Vinterra. Aqui, no seu jardim,
há árvores de fruto, e à volta vêem-se os picos de montanha cobertos de neve.
“Não podemos continuar na agricultura como antes”, diz-nos.
Uma lei polémica
e sem aprovação garantida
Na passada
quarta-feira, 22, depois da entrevista que nos concedeu, Frans Timmermans
apresentou em Bruxelas a proposta de regulação sobre pesticidas da Comissão
Europeia (SUR). Uma das principais novidades deste texto é a “proporcionalidade
do processo de fixação de objectivos”, que diferencia o uso existente de
químicos agrícolas nos diferentes países.
A redução
obrigatória é agora de 35% para os países onde o uso de pesticidas “for
inferior a 70% da média da União”; de 50% para os países que consomem “entre
70% e 140% da média da União” e de 65% nos casos em que “for superior a 140% da
média da União”.
Para ajudar
directamente os agricultores a cumprir as novas metas, “os Estados-membros
poderão fornecer apoio no âmbito da PAC para cobrir os custos (...) do
cumprimento de todos os requisitos legais impostos por esta proposta durante um
período de 5 anos”.
Para a Comissão,
“isto deverá evitar quaisquer aumentos nos preços dos alimentos”.
A regulação
europeia decreta a proibição da “utilização de produtos fitofarmacêuticos em
áreas sensíveis e a menos de 3 metros dessas áreas”. A pulverização aérea de
campos agrícolas passa também a ser proibida, embora com algumas excepções. Na
avaliação das metas desta lei, a Comissão quer envolver peritos — como faz,
geralmente —, mas com uma salvaguarda importante: qualquer consultor registado
tem de fazer prova de que “está livre de qualquer conflito de interesses”.
Como sempre, na
legislação comunitária, esta proposta da Comissão segue para o Conselho, onde
os ministros da Agricultura dos 27 podem aprovar, alterar muito ou, pura e
simplesmente, bloquear a sua aprovação.
Há, neste
momento, dez países em clara oposição a esta redução obrigatória dos
pesticidas. Muitos outros, como Portugal, mostraram reservas. De todas as
respostas recebidas dos governos nacionais para este trabalho, só a da Alemanha
garantia um apoio total a esta medida. Se a proposta passar no Conselho será
então terminada num processo legislativo complexo — o “trílogo” — em que o
Parlamento, a Comissão e o Conselho trabalharão numa versão consensual final.
INVESTIGATE
EUROPE é uma equipa de jornalistas de investigação de onze países que trabalha
em conjunto temas de relevância europeia e publica os resultados em meios de
comunicação social de toda a Europa.
Para além do
PÚBLICO, os meios de comunicação social parceiros desta publicação incluem: Der
Tagesspiegel (Alemanha), Telex (Hungria), EfSyn (Grécia), Il Fatto Quotidiano
(Itália), infoLibre (Espanha), Frontstory.pl (Polónia), Dagsavisen (Noruega),
Der Standard (Áustria).
Contribuiram para
esta investigação: Wojciech Cieśla, Ingeborg Eliassen, Juliet Ferguson, Pascal
Hansens, Attila Kálmán, Maria Maggiore, Sigrid Melchior, Leïla Miñano, Nico
Schmidt, Harald Schumann, Elisa Simantke, Amund Trellevik, Lorenzo Buzzoni,
Eurydice Bersi, Nikolas Leontopoulos, Alicia Prager e Manuel Rico.
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