PANDEMIA
Liga dos Campeões: especialistas preocupados com
“corrosão da autoridade do Estado”
ARS Norte garante que vai estar “muito vigilante aos
diagnósticos precoces”. Mas mais do que aumento do número de infecções por
covid-19, especialistas estão preocupados por ter acontecido o que “não podia
ter acontecido”: “aglomerados”, “andar sem máscara”, “consumo de álcool nas
vias públicas”, e assinalam diferença de critérios em eventos desportivos. Faz
passar uma mensagem errada.
Maria João Lopes
e Filipa Almeida Mendes
30 de Maio de
2021, 17:31
A polémica em
torno do que aconteceu no âmbito dos festejos da final da Liga dos Campeões
prossegue. E o que está, sobretudo, a preocupar alguns especialistas no que se
refere aos acontecimentos que tiveram lugar no Porto é que tal possa pôr em
causa a adesão da população às regras sanitárias e, mesmo, potenciar a
“corrosão da autoridade do Estado”, na “legitimidade” para impor medidas.
Entre outros
aspectos que envolveram o evento, o professor de Saúde Internacional e
investigador do Instituto de Higiene e Medicina Tropical da Universidade Nova
de Lisboa Tiago Correia refere-se, por exemplo, a situações que “não podiam ter
acontecido”, como, entre outras, “aglomerados”, “andar sem máscara”, “consumo
de álcool nas vias públicas”.
O que preocupa
este docente é que toda a situação a que se assistiu possa levar a um eventual
“desligar das pessoas”: “As pessoas, precisamente, como vêem que não há
critério, individualmente adoptam os comportamentos que bem entendem”,
salienta, ressalvando existir também o perigo de “os decisores políticos”
falarem, depois, “para a população” e esta não ouvir.
No fundo,
sublinha, o que aconteceu “prejudica a legitimidade do Estado para impor
regras”, no que toca, por exemplo, à frequência de praias, de festas como os
Santos Populares ou, mesmo, de permanência nas ruas ao fim-de-semana à noite.
Para Tiago Correia, o que se viu nos últimos dias no Porto foi “precisamente a
antítese de todas as restrições a que todos nós temos sido sujeitos de alguma
forma”.
“Presidente fez o que deveria fazer”
A forma como a
mensagem é passada e como tal pode ter impacto na adesão às regras preocupa-o
mais do que um eventual aumento de casos directamente ligado ao evento. Porém,
alerta: “O desligar de comportamentos, a falta de exemplo, o que faz é um
aumento de casos, porque as pessoas relaxam, não aderem, e, depois, qual é a
consequência disso? Um aumento da incidência”, avisa, insistindo que “pode
haver um aumento da incidência” também pelo “relaxe de comportamentos”, por “as
pessoas se desligarem da mensagem”.
Tiago Correia
alerta ainda para outra questão: “Fadiga pandémica é uma coisa, que é as
pessoas estarem saturadas das medidas, e outra coisa é as pessoas
deslegitimarem as autoridades de imporem regras, restrições.” Porém, um factor
associado a outro pode levar a “comportamentos mais desligados relativamente
àquilo que é pedido”, é “um duplo efeito que era completamente desnecessário”,
é colocar em cima de algo que já é “grave e difícil de gerir politicamente”, a
fadiga pandémica, um eventual menor reconhecimento de “legitimidade” aos
decisores para imporem regras.
Tiago Correia
fala, em relação ao que se passou, em “erros crassos” com “consequências
importantes”. Não tem a “menor dúvida” de que “este tipo de acontecimentos
provoca o tal desligar dos comportamentos individuais”, sendo “legítimo que as
pessoas se revoltem, critiquem e, depois, também não adiram”.
O investigador
viu com bons olhos os alertas deixados pelo Presidente da República: “O
Presidente fez o que deveria fazer, a meu ver. Falou para a população e falou
para os membros do Governo.” Marcelo Rebelo de Sousa comentou, no sábado,
durante uma visita ao Banco Alimentar contra a Fome, em Lisboa, a presença dos
adeptos ingleses no Porto: “Não é possível dizer” que adeptos “vêm em bolha e
depois não vêm em bolha”, afirmou.
Além de pedir
“coerência” no discurso do país, apelou a um equilíbrio entre o facilitismo e o
alarmismo no que toca à pandemia. A maioria dos adeptos chegou na manhã de
sábado, e as máscaras e o distanciamento foram uma miragem. A noite terminou
com desacatos na zona da Ribeira.
Bernardo Gomes,
médico especialista em Saúde Pública, diz que “não há volta a dar”, que o que
se passou “coloca em risco a questão da mensagem geral para o público,
nomeadamente no que toca à adopção de algumas medidas restritivas”.
“Grande falhanço”
Tiago Correia
nota que o Governo criou uma “expectativa” em relação à forma como tudo iria
correr, que não se verificou. “Quando digo que foi um grande falhanço foi desse
ponto de vista, porque quem definiu as regras foi o Governo, e, claramente, foi
tudo ao lado relativamente àquilo que nos disseram que ia acontecer,
nomeadamente as bolhas na origem, na permanência, e no regresso”, diz. E
acrescenta: “O que penso que aconteceu foi uma sobreposição de dois
acontecimentos: um evento desportivo que iria trazer mais pessoas, que iria
mobilizar pessoas, e ao mesmo tempo um relaxe, um alívio nas restrições de
mobilidade internacional, nomeadamente do Reino Unido. Portanto, um aumento do
turismo. Era óbvio que, a partir do momento em que se abrem as fronteiras, e se
relaxa também na circulação de turistas, que o conceito de bolha ficaria
seriamente comprometido.”
Bernardo Gomes,
médico especialista em saúde pública, também diz ao PÚBLICO que “não há volta a
dar”, que o que se passou “põe em risco a questão da mensagem geral para o
público, nomeadamente no que toca à adopção de algumas medidas restritivas”.
Tanto Tiago
Correia como Bernardo Gomes assinalam também a diferença de critérios em
relação a eventos desportivos (recentemente não foi permitida, por exemplo, a
presença de público na final da Taça de Portugal em futebol). Bernardo Gomes
considera que “este contexto de incongruência faz despertar nas pessoas um
sentimento de desconfiança” e que tal não “ajuda em nada o combate pandémico e,
sobretudo, a comunicação de risco”.
Não está tão
preocupado com “a subida de casos directamente ligada à presença dos
britânicos”, mas sim com os “efeitos indirectos” dos acontecimentos. Preocupa-o
que um sentimento de injustiça possa percorrer a população e leve a uma
diminuição na adesão às regras.
“Vamos estar muito vigilantes aos diagnósticos precoces
e, em caso de necessidade, adequar as medidas preconizadas para este tipo de
situações”, informou a ARS Norte
Refere-se também,
por exemplo, às normas para uso de máscara no acesso à praia (de acordo com a
legislação em vigor, é preciso “usar máscara até chegar ao areal sempre que o
distanciamento físico recomendado pelas autoridades de saúde se mostre
impraticável”; nas zonas de passagem, passadeiras, paredões, marginais, casas
de banho ou no acesso aos estabelecimentos da praia, a circulação implica
também “a utilização de máscara”).
“A questão da
fiscalização do uso de máscaras no acesso à praia não faz sentido. A menos que
transmitamos uma mensagem clara, coerente e, também, simples, corremos o risco
de as pessoas não cumprirem e isso gera todo um conjunto de problemas, desde a
não adesão às medidas até à própria corrosão da autoridade do Estado”, nota,
acrescentando que seria “tempo” de pôr “no centro da comunicação” o “saber” da
task force de cientistas comportamentais, criada para assessorar o Governo em
relação à melhor forma de passar a mensagem às populações sobre os
comportamentos indicados para combater a pandemia.
Na sequência dos
festejos da final da Liga dos Campeões, que juntou adeptos ingleses no Porto —
muitos dos quais sem máscara nem distanciamento —, a Administração Regional de
Saúde do Norte (ARS) garantiu que irá estar atenta aos diagnósticos precoces de
infecção pelo novo coronavírus.
“Vamos estar
muito vigilantes aos diagnósticos precoces e, em caso de necessidade, adequar
as medidas preconizadas para este tipo de situações”, avançou ao PÚBLICO fonte
do gabinete de comunicação da ARS Norte.
Do “cartão vermelho” para Cabrita às desculpas exigidas
por Rui Rio
O presidente do
CDS-PP pede um “cartão vermelho” para o ministro da Administração Interna,
Eduardo Cabrita. O líder do PSD diz que Governo e Câmara do Porto deviam “pedir
desculpa aos portugueses” pelo que diz ser a “vergonha” que se passou na
cidade, com os festejos da final da Liga dos Campeões. Já o autarca do Porto
acusa Rui Rio de “alguma portofobia”.
O líder centrista
considerou que a organização do evento “deu uma péssima imagem” de Portugal e
que haverá “consequências imprevisíveis” na saúde pública. Para Francisco
Rodrigues dos Santos, “a responsabilidade é clara, é do Governo, porque, para
além de ter falhado no planeamento e na preparação, adoptou um critério
absolutamente contraditório e incoerente” com o “que tem exigido aos
portugueses”. Disse que o ministro Eduardo Cabrita “está constantemente fora de
jogo”, mas o primeiro-ministro “entende que não o deve substituir”.
“Acho que está na
altura de os portugueses lhe exibirem um cartão vermelho, para que este
ministro abandone imediatamente o Governo”, frisou.
Também o líder do
PSD defendeu que o Governo e a Câmara do Porto deviam “pedir desculpa aos
portugueses”. Para Rui Rio, estas entidades “nada aprenderam com o que se
passou em Lisboa”. Ao PÚBLICO o autarca do Porto rejeitou as críticas e acusou
Rio de “alguma portofobia ou desconhecimento”. Rui Moreira, que faz uma
distinção entre os adeptos com bilhete para o jogo e os “turistas” que
visitaram a cidade e aproveitaram para ver a partida pela televisão de um
estabelecimento ou nas “fanzones”, lamentou os desacatos mas considerou-os
“situações isoladas”.
Já no sábado, a
coordenadora do BE tinha considerado incompreensível “permitir-se a uma
iniciativa aquilo que não se permite à generalidade dos cidadãos e das cidadãs
deste país”, atribuindo responsabilidades ao Governo e à autarquia. O PÚBLICO
fez perguntas aos ministérios da Administração Interna e da Educação, bem como
ao secretário de Estado da Juventude e do Desporto, mas sem resposta.
tp.ocilbup@sepoljm
tp.ocilbup@sednem.apilif
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