quinta-feira, 3 de dezembro de 2020

ENTREVISTA Fareed Zakaria: “Trump é o ponto de viragem para um novo mundo pós-americano”

 


ENTREVISTA

Fareed Zakaria: “Trump é o ponto de viragem para um novo mundo pós-americano”

 

O autor e analista americano diz que Trump representa um ponto de viragem para um mundo em que a América deixará de ser hegemónica. Limitou-se a acelerar essa mudança. A Europa é uma realização humana sem paralelo, que pode ser posta em causa pela forma errada como o euro foi desenhado.

 



Teresa de Sousa

Teresa de Sousa 31 de Maio de 2019, 7:00

 https://www.publico.pt/2019/05/31/mundo/entrevista/trump-ponto-viragem-novo-mundo-posamericano-1874812



Autor de duas obras fundamentais – The Future of Freedom – iliberal democracy at home and abroad (2003) e The Post-American World – the rise of the rest (2008) –, Fareed Zakaria é colunista do Washington Post e autor do célebre programa GPS da CNN. Veio a Lisboa participar na décima edição das Conferências do Estoril para falar do mundo em acelerada desordem. Nesta entrevista fala da crise das democracias liberais na Europa e nos EUA, do tempo de Donald Trump, do que ele significa e da enorme resistência da democracia americana – a mais velha democracia constitucional do mundo. E fala também do mundo que está a emergir da velha ordem liberal, que já não é aquele que os Estados Unidos criaram.

 

Fui buscar os seus dois livros que mais apreciei à estante –​ o que fala da ascensão das democracias iliberais, de 2003, e o outro, mais recente, sobre a ascensão “do resto”, sendo “o resto” o mundo não ocidental, de 2008. Poderíamos dizer que são dois livros proféticos, ainda que a realização dessas profecias não seja caso para nos regozijarmos muito.

Também acho.

 

Hoje estamos confrontados com esta multiplicação das democracias iliberais. A diferença é que isso acontece no coração do mundo ocidental e não apenas nas periferias. Como explica isto?

Como sabe, em 1997, originalmente escrevi um ensaio na Foreign Affairs no qual tentei olhar para casos como os Balcãs, Sérvia, Eslováquia, Bielorrússia, Filipinas, um pouco para a Turquia, e constatei que essas jovens democracias, sem a tradição institucional do liberalismo, do Estado de Direito, da protecção das minorias e dos direitos dos indivíduos, facilmente se podiam transformar em democracias iliberais - precisamente porque as maiorias começavam a praticar coisas iliberais. Também gastei algum tempo a olhar para o iliberalismo nos EUA. Mas tenho de lhe confessar que nunca esperei que se expandissem a tal velocidade no mundo ocidental.

 

Na Europa…

Na Europa Ocidental e nos Estados Unidos. Creio que há aqui uma lição muito poderosa e urgente que temos de não voltar a esquecer: as instituições são apenas tão fortes quanto os homens que as habitam. Por vezes pensamos nelas como se tivessem sido criadas por Deus, como permanentes, poderosas e fortes. Mas essas instituições são apenas criadas por humanos, são a expressão da sua vontade e, por isso, também podem vergar. Um dos casos mais confrangedores tem sido a Turquia, que conseguiu desenvolver uma tradição de separação entre o Estado e a Igreja, que criou checks and balances, que abriu o processo democrático. E, de repente, a eleição de um líder populista muito forte fez com que todos esses avanços começassem a recuar. Acabou a imprensa independente, a independência dos tribunais, a burocracia independente, o exército já não é o que era. A Turquia deixou de ser uma democracia.

 

Quando olho para o Ocidente ainda espero – e ainda vejo – que os países com tradições mais longas e mais profunda continuam a ser democracias muito fortes – estou a pensar na França, na Alemanha, no Reino Unido, onde também existem forças populistas que tentam fazer recuar as instituições e a cultura democrática. Olhando para os Estados Unidos, os instintos de Donald Trump são profundamente iliberais. Mas isso não afecta nem a imprensa, nem os tribunais e as próprias agências independentes da Administração, como o FBI resistem perfeitamente.

 

Por isso, ainda penso que a democracia liberal continua a ser forte. Mas não há qualquer dúvida de que, em todos as democracias, incluindo as do Ocidente, existe a ameaça da democracia iliberal nunca escala que nunca teria imaginado.

 

Podemos dizer, apesar da força que ainda têm, que estamos a viver uma crise das democracias liberais?

Absolutamente. Estamos a atravessar uma crise das democracias liberais e o que estamos a descobrir é que isso acontece quando atravessamos um período de profunda transformação à escala mundial, que incluem o próprio mundo ocidental. Pensemos, por exemplo, nas transformações que Portugal viveu nos últimos 35, 40 anos. As pessoas viviam sujeitas a uma ditadura, Portugal era um país de baixos rendimentos, sem imigração e de costumes arcaicos. Hoje, uma grande maioria de mulheres está no mercado de trabalho, há igualdade de género, recebeu muitos imigrantes, vive numa economia aberta, com boas universidades e bons serviços. Vive noutro mundo.

 

No Ocidente, houve a crise financeira e muita gente sofreu económica e socialmente com ela: depois, as pessoas viveram o choque de ver chegar em grande número gente de outras culturas, que lhes parece diferente, que adora outro Deus, fica com medo…

 

Crê que o aumento das desigualdades sociais, sobretudo em países europeus habituados a um razoável nível de igualdade, depois de 30 anos de neoliberalismo e depois da crise, também contribui para este estado de coisas?

É um factor importante, naturalmente, mas creio que apenas é uma entre muitas razões. Nem creio que seja a principal. Creio que se procurarmos a causa mais determinante, aquela que é comum a todos os países em que verificamos a ascensão deste populismo de direita, ela é a imigração. Não é a desigualdade…

 

Mas o seu país é um país de imigrantes…

Pois é, mas cada grande vaga de imigração gerou sempre uma forte resistência. Quando os irlandeses chegaram, quando os italianos chegaram, quando chegaram os judeus, houve sempre uma forte reacção contrária. Penso que se olharmos para a Europa do Norte, por exemplo, a desigualdade não aumentou nada de especial, mas a imigração aumentou imenso. A Holanda ou a Suécia crescem bem mas o que viveram nos últimos tempos foi um enorme crescimento da imigração. Qual é o único país desenvolvido que vive os mesmos problemas económicos dos países desenvolvidos mas não tem populismo de direita? O Japão. Porque não tem imigrantes. A imigração, creio eu, está no centro desta crise.

 

A questão da desigualdade é dramática e vai continuar porque vivemos num sistema que a produz. Não tenho dados estatísticos sobre a Europa, mas, nos EUA, desde a crise financeira de 2008, 50% do crescimento do emprego foi criado em apenas 20 cidades – nas maiores 20 cidades da América. O que temos hoje – e creio que na Europa é a mesma coisa – é esta divisão entre as cidades, que se transformam no centro das economias, e o resto do território. Olhe para os gilets jaunes em França – a maioria destas pessoas são do campo e das pequenas cidades. Olhe para os apoiantes do “Brexit” e para os que são contra: estes últimos estão todos nas grandes cidades; os primeiros no resto do país.

 

O cerne da questão é que, numa economia digital e num mundo conectado, estar no centro da conectividade e do conhecimento dá um imenso poder. Estar nas margens enfraquece-nos em termos económicos. É isto que me preocupa, mais do que os níveis abstractos de desigualdade. Antes, a política representava tanto o território como as pessoas. A terra ou o território está a perder qualquer valor. A única coisa que conta são as cidades, enquanto centros onde as pessoas se concentram e esta nova divisão vai continuar a agravar-se.

 

O euro está orientado para as necessidades das economias do Norte da Europa

Mesmo assim, quando olho para o seu país ainda me parece que a democracia é quase à prova de bala. Por vezes, parece-me mais forte do que na Europa. Estou errada?

É engraçado que diga isso porque, por vezes, é preciso alguém de fora para ver as coisas como elas são. Nós, na América, assistimos ao ataque diário à democracia por parte de Trump. E isso mete-nos medo. Mas creio que tem razão. No essencial, a democracia americana é muito forte. Uma das coisas de que as pessoas se esquecem muitas vezes é que a América é um país muito jovem mas um Estado muito antigo. É a mais velha democracia constitucional do mundo. Já passou por muito, é muito resistente…

 

Talvez porque os pais-fundadores foram sábios.

Sim, conseguiram criar um sistema que sobreviveu à Guerra Civil, à escravatura, à Grande Depressão, à Primeira e à Segunda Guerra. As constituições europeias e os sistemas políticos são muito mais recentes. Nos últimos 200 anos, a França teve uma Revolução, dois Impérios, cinco Repúblicas e um regime fascista. E isto não é assim tão invulgar na Europa. Por isso, talvez o sistema político americano seja mais forte.

 

A minha ideia é que a única solução para a Europa é ainda mais Europa – mais integração e não menos. Muitos dos problemas de que as pessoas falam, sejam as questões da desigualdade, sejam as diferenças regionais, exigem muito mais investimento. Para evitar choques externos também é preciso maior integração e mais investimento. Mas também reconheço que o impulso político dominante parece ser o contrário. Os populistas defendem menos Europa, dando às pessoas um sentimento temporário de segurança, dizendo-lhes que terão mais controlo sobre as suas vidas, as suas fronteiras, os seus países. Este não é o caminho. Quase nada se poderá resolver se não for em conjunto.

 

Como é que vê a Europa de fora?

Sempre achei que os americanos não apreciavam a Europa devidamente. A Europa é, em muitos aspectos, a mais extraordinária experiência histórica que conseguiu ter sucesso: conseguir juntar um grande número de países que passaram 500 anos em guerra uns com os outros, matando-se um aos outros pelas mais variadas razões – religiosas, políticas, económicas, culturais –, criando a partir daí uma estrutura em que se tornou impossível que haja guerra entre os seus membros… A ideia de a França entrar em guerra com a Alemanha é hoje impensável. E, no entanto, entre 1850 e 1950, os dois países travaram três guerras, duas das quais arrastarem o mundo inteiro.

 

Penso que, por vezes, isto é esquecido ou então tomado como garantido. A minha opinião é que os europeus realizaram um trabalho incrível com dois grandes erros. A seguir a 1989, aceitaram demasiados países demasiado depressa. Deviam tê-lo feito mas mais devagar e de forma mais gradual. Eu compreendo as razões. Esses países queriam desesperadamente entrar, queriam desesperadamente uma âncora.

 

O segundo erro foi a forma muito deficiente como o euro foi implementado: adoptar a mesma moeda em países com políticas orçamentais tão diferentes sem a capacidade para transferir recursos. Olhe para os Estados Unidos: se o Texas cair em recessão e a Califórnia viver um período de retoma, automaticamente há uma quantidade maciça de riqueza transferida de um estado para o outro.

 

Mas não na Europa, e é esse um dos problemas.

Mas não na Europa. As pessoas pensam que a Europa gasta imenso dinheiro, mas isso não é verdade. Em comparação com os Estados Unidos, o orçamento da União Europeia nem chega a 10% daquilo que são as transferências financeiras a partir do orçamento federal americano. Sem garantir este tipo de estabilidade, cria-se um sofrimento absolutamente desnecessário em países como Portugal, a Grécia ou a Espanha e até a Itália. A moeda está orientada para as necessidades das economias do Norte da Europa, o que até poderia estar bem desde que se aceitasse a ideia de transferências orçamentais para os países do Sul.

 

Creio que este enorme erro está na base de muitos dos problemas que a Europa enfrenta. Não há nenhuma razão que justifique, por exemplo, o nível de desemprego em Espanha. Se os europeus tivessem desenhado melhor a sua união monetária, se os alemães percebessem melhor como as coisas na realidade funcionam, haveria uma situação muito melhor para todos. A Alemanha estaria a financiar a recuperação dos seus próprios consumidores.

 

Os alemães não entendem isso nem creio que alguma vez o entenderão.

Pois não. Creio que foi Mario Monti quem disse que, para os alemães, a economia é um capítulo da filosofia da moral. Pensam que é virtuoso poupar e um pecado gastar. Se não houvesse ninguém para gastar, quem é que compraria o que eles produzem?

 

Regressando ao seu país, como é que devemos olhar para o mandato do Presidente Trump? Como um episódio depois do qual a política externa e interna americana volta a ser, mais ou menos, o que foi antes?

É uma questão muito difícil, ainda que essencial. Penso que Trump representa algo de absolutamente novo em dois sentidos, que precisamos absolutamente de entender. O primeiro aplica-se a todo o mundo ocidental e significa que estamos a entrar numa nova era política onde a velha distinção entre esquerda e direita, que era essencialmente definida à volta da economia, já não importa tanto como importava antes. Se pensarmos bem, há um amplo espaço de centro em que todos estamos de acordo no que toca à política económica. Todos partilhamos, incluindo os Estados Unidos, uma economia social de mercado, todos temos um Estado social e economias de mercado. Podemos tentar debater as pequenas diferenças que nos separam mas, no geral, somos todos muito parecidos.

 

Assistimos ao ataque diário à democracia por parte de Trump. E isso mete-nos medo

Esta divisão que caracterizou o século XX está em vias de desaparecer. Estamos a entrar numa nova realidade caracterizada por uma nova divisão entre abertura e fechamento – até que ponto estamos abertos no domínio da economia, das ideias, das culturas, das pessoas, das religiões. Se olharmos para [o vice-primeiro-ministro italiano] Matteo Salvini, se olharmos para Marine Le Pen, para a extrema-direita austríaca, o que vemos é que a sua ideologia é sobre o fechamento. O “Brexit” é sobre o fechamento.

 

E Trump também?

Absolutamente. Taxas aduaneiras, imigração, muros. Creio que é esta a nova dinâmica que tomou conta do Partido Republicano, que se tornou um partido muito mais virado para o nacionalismo cultural, o proteccionismo, o populismo, do que alguma vez foi. Os republicanos eram libertários, defensores dos mercados livres, de Adam Smith, do comércio livre.

 

O segundo aspecto é unicamente americano. Trump, creio eu, pode significar o fim da hegemonia americana. Não é que a América não continue a ser a nação mais poderosa do mundo. Mas o país que queria dominar o sistema internacional para criar uma ordem mundial aberta e liberal, o país que era o consumidor de último recurso, o credor de último recurso, a moeda de último recurso, a segurança de último recurso, esse papel que os EUA desempenharam desde a II Guerra, Trump parece estar a dizer o contrário: que esse mundo já não serve a América. E suspeito que mais gente, incluindo no Partido Democrata, pensa da mesma maneira. E mesmo que haja oposição a Trump, ele marca um ponto de viragem para um novo mundo ao qual chamo de pós-americano. Creio que isto teria acontecido mais tarde ou mais cedo, mesmo sem Trump –​ embora, provavelmente, de uma forma mais lenta. Desde o fim da guerra do Iraque que os EUA têm seguido um caminho de progressivo retraimento do seu papel histórico de potência hegemónica de uma ordem mundial liberal.

 

Mas os EUA enfrentam também um desafio novo: a ascensão da China. Isso também os obriga a mudar?

Esse é o dilema estratégico mais importante que o mundo enfrenta, e não apenas os EUA. Como integrar um país que é a maior potência a entrar no ranking das potências desde a própria América. Para os Estados Unidos é uma questão vital porque, desde 1882, que são a maior economia do mundo. A China deve tornar-se a maior economia do mundo nos próximos dez anos, seja qual for a medida que utilizemos. Será o maior mercado do mundo para quase todos os bens, será provavelmente o país mais avançado na ciência de computação. Os Estados Unidos continuarão no topo, mas nunca tiveram de partilhar esse espaço antes. Houve um período muito breve com a Alemanha, nos anos 1920, e mais nada. E não é apenas uma questão de liderança, é também uma questão de imaginação popular. Como é possível imaginar um mundo em que já não somos a potência dominante, que dispõe da última palavra – creio que é este o grande desafio que a América enfrenta. E não só a América, o mundo ocidental no seu conjunto. Como acomodar a ascensão de um país muito poderoso que não só é iliberal mas asiático? Não se trata apenas da emergência de um mundo muito mais multipolar, é também a emergência de um mundo muito mais multicultural. Já vivemos em mundos multipolares em épocas diferentes, mas eram quase sempre monoculturais, ou seja, ocidentais.

 

Lembro-me que, quando o entrevistei alguns dias antes da primeira tomada de posse do Presidente Barack Obama, em Janeiro de 2009, disse-me que ele representava a esperança de gerir esta transição muito complexa de que acabou de falar. O que correu mal?

O que aconteceu, e que apenas verificamos mais tarde, foi que Obama não representava a América na sua globalidade. Representava apenas uma parte. E a outra parte ripostou, criando uma fortíssima reacção negativa. E talvez menos pelo que ele dizia mas por aquilo que ele próprio era. Ele foi, de alguma maneira, como Moisés: deu-nos a conhecer este mundo novo mas não conseguiu concluir a viagem e levar-nos até ao outro lado. Gerou dentro da América uma oposição furiosa. Devo confessar-lhe que, quando falámos nessa entrevista que referiu, não fui capaz de antecipar essa reacção. Admiti que haveria uma forte oposição, o que é natural num sistema de dois partidos. Mas a oposição a Obama foi tão visceral, tão relacionada com a raça, que acabou por ser um aviso para mim, enquanto imigrante, de como, no fim de tudo, para a América a raça continua a ser o maior desafio.

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