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OPINIÃO
O triunfo das
baratas na política britânica
No livro de Ian
McEwan, a metamorfose de Jim Sams, apesar de ficar com a aparência de uma
barata, trouxe-lhe uma missão e grande êxito político. Com ele, o Reino Unido
abandonou a União Europeia, após várias manobras políticas tortuosas.
JOSÉ PEDRO
TEIXEIRA FERNANDES
10 de Dezembro de
2019, 22:00
1. Para os
partidários da permanência na União Europeia, uma vitória de Boris Johnson nas
eleições legislativas de 12 de Dezembro, com a maioria absoluta dos deputados,
deverá assemelhar-se a um “triunfo das baratas” (ver Ian McEwan A Barata, trad.
port., Gradiva, 2019). A sátira ao “Brexit” tem tonalidades kafkianas. O
primeiro-ministro Jim Sams (versão ficcional de Boris Johnson), “esperto, mas
algo leviano”, acordou um dia transformado numa barata e com a missão urgente
de retirar o Reino Unido da União Europeia. A metamorfose de Jim Sams, político
do Partido Conservador, replica o enredo da obra de Franz Kafka de 1915, onde o
caixeiro viajante Gregor Sams se metamorfoseou num insecto repelente.
No livro de Ian
McEwan, a metamorfose de Jim Sams, apesar de ficar com a aparência de uma
barata, trouxe-lhe uma missão e grande êxito político. Com ele, o Reino Unido
abandonou a União Europeia, após várias manobras políticas tortuosas.
Envolveram uma “ultrapassagem” numa votação parlamentar aos trabalhistas de
Horace Crabbe (a versão ficcional de Jeremy Corbyn), “um velho regressista da
esquerda pós-leninista.” (p. 40). E o apoio ruidoso e confuso do presidente
norte-americano, Archie Tupper (Donald Trump). Através de tweets bombásticos,
este último aproveitou para atacar en passant o Presidente francês, Sylvan
Larousse (Emmanuel Macron), devido ao afundamento de uma embarcação de pesca
pela Marinha francesa (p. 64), incidente usado por Jim Sams para alimentar o
fervor patriótico britânico.
Na narrativa de
Ian McEwan, a atitude anti-União Europeia é vista como resultante da ideologia
do regressismo, termo ficcional certamente inspirado na corrente intelectual e
política eurocéptica. O regressismo tornou-se gradualmente um sucesso. Passou
de uma visão passadista de alguns excêntricos para o centro da política do país
2. Na narrativa
de Ian McEwan, a atitude anti-União Europeia é vista como resultante da
ideologia do regressismo, termo ficcional certamente inspirado na corrente
intelectual e política eurocéptica. O regressismo tornou-se gradualmente um
sucesso. Passou de uma visão passadista de alguns excêntricos para o centro da
política do país. “As origens do regressismo são obscuras e objecto de muita
discussão por parte dos interessados. Durante a maior parte da sua História,
foi considerado uma experiência de pensamento, um jogo para depois do jantar,
uma anedota. Era uma coutada de excêntricos, de homens solitários que escreviam
compulsivamente artigos estrambólicos para os jornais” (p. 35).
A passagem das
margens para o centro da política britânica foi obra da imprensa regressista
(alusão aos jornais britânicos eurocépticos como o The Telegraph e o Daily
Mail, e, sobretudo, à chamada imprensa tablóide, The Sun, The Daily Express, ou
The Daily Mirror). “Num golpe brilhante, a imprensa regressista conseguiu
apresentar a sua causa como dever patriótico e uma promessa de revivalismo e
purificação nacionais [...] (p. 39). Esse sucesso foi acompanhado musicalmente
com um hino, uma versão rival ao Hino à Alegria da União Europeia — composto
por Ludwig Van Beethoven em 1823 —, o Walking Back to Happiness, de Helen
Saphiro de 1961. Era uma das canções favoritas de Jim Sams (Boris Johnson) dos
anos sessenta (pp. 52-53).
3. Imaginação
literária à parte, no mundo real da política britânica “Get Brexit Done” é o
slogan eleitoral de Boris Johnson e do Partido Conservador. A mensagem é
simples(ista) e poderosa para os que estão receptivos à saída na União
Europeia. Como é habitual num slogan, não está destinada a favorecer o
pensamento crítico, mas a acção. “Se houver uma maioria de deputados
conservadores a 13 de Dezembro, garanto que vou fazer passar o nosso novo
acordo no Parlamento. Vamos concluir o “Brexit” em Janeiro e libertar o
potencial de todo o nosso país.”
Parafraseando a
ironia cáustica Ian McEwan, o objectivo dos conservadores será provavelmente
poderem dizer no final, com grande satisfação: “Agora a Grã-Bretanha está
entregue a si própria. O povo falou. A genialidade do líder do nosso partido
permitiu cumprir o desejo do povo. O regressismo foi cumprido! Sem mais
hesitações nem demoras! A Grã-Bretanha está sozinha!” (p. 106).
arafraseando a
ironia cáustica Ian McEwan, o objectivo dos conservadores será provavelmente
poderem dizer no final, com grande satisfação: “Agora a Grã-Bretanha está
entregue a si própria. O povo falou. A genialidade do líder do nosso partido
permitiu cumprir o desejo do povo. O regressismo foi cumprido!
Ainda no seu manifesto
pode ler-se também um ataque às artimanhas oposição: “Se o Partido Trabalhista
de Jeremy Corbyn e o SNP (Partido Nacional da Escocês) de Nicola Sturgeon se
unirem e assumirem o controlo em 13 de Dezembro, teremos dois referendos, um
sobre o ‘Brexit’ e outro sobre a Escócia em 2020. Por favor, apoiem um Governo
conservador maioritário para que o nosso país possa seguir em frente, em vez de
retroceder.” (Ver partido Conservador “Our Plan/Conservative Manifesto 2019”).
A advertência de uma aliança catastrófica dos trabalhistas inglesas com os
nacionalistas escoceses paira sobre eleitores: votem em Boris Johnson ou
enfrentarão o pesadelo do embuste referendista de Jeremy Corbyn e Nicola
Sturgeon. O “Brexit" pode não ocorrer e o caminho para a independência da
Escócia ficará aberto.
4. Para o
eleitorado do Partido Trabalhista a mensagem é naturalmente outra. Procura
desviar o foco da campanha eleitoral para as funções sociais do Estado. “Boris
Johnson e os Tories estão a tentar aproveitar-se do ‘Brexit’ para vender o
nosso Serviço nacional de Saúde (NHS) e retirar direitos aos trabalhadores. O
seu 'Brexit’ irá reverterá os duros ganhos conquistados pelas pessoas da classe
trabalhadora ao longo de gerações. Pior, isso poderia levar a que 500 milhões
de libras por semana do dinheiro do nosso NHS acabe nos bolsos de grandes
empresas farmacêuticas americanas.”
Quanto à solução
para o “Brexit” — que tem colocado o regressista Jeremy Corbyn às avessas com a
maioria remainer do próprio partido —, a solução seria muito simples. “Um
governo trabalhista negociará um acordo sensato num prazo de três meses após a
eleição. Será baseado em coisas que sempre discutimos e dissemos que eram
necessárias com a União Europeia e que são apoiadas por sindicatos e empresas.
Isto inclui uma nova união aduaneira, uma estreita relação com o Mercado Único
e garantias de direitos e protecção” para os trabalhadores e ambiente.
As pessoas terão
a última palavra num referendo “a decorrer num prazo de seis meses, que não
será uma repetição do ocorrido em 2016. Desta vez, a escolha será entre sair
com um acordo sensato ou permanecer na União Europeia.” (Ver Partido
Trabalhista, “Labour Plan for Brexit”). Resta saber como Jeremy Corbyn irá
negociar um novo acordo com a União Europeia em três escassos meses e conseguir
fazer um novo referendo em seis, sem dividir ainda mais o país — algo que diz
ser só culpa dos conservadores e liberais democratas. Mas essas são coisas
menores para um progressista-regressista que vê o futuro no passado, não o da
música Walking Back to Happiness dos anos sessenta, mas nas políticas
neo-marxistas dos anos setenta. (Ver David Kogan, Jeremy Corbyn’s return to the Seventies in UnHerd,
6/12/2019).
5. Com Boris
Johnson e Jeremy Corbyn como protagonistas maiores, o “triunfo das baratas”
parece assegurado na política britânica, seja qual for o resultado das próximas
eleições. Claro que a afirmação é irónica e tem tonalidades orwellianas. No
caso de Boris Johnson ganhar — este é o principal candidato à vitória segundo as
sondagens —, o Reino Unido deixará a União Europeia até 31 de Janeiro de 2020.
Pelo menos a promessa é essa. Em seguida, será negociado um abrangente acordo
comercial com a União Europeia, uma versão mais ambiciosa do Acordo Económico e
Comercial Global (CETA), já feito pelo Canadá (ver Eur-Lex), até finais de 2020. (Ver “Boris Johnson: My plan for a better
Brexit” in Telegraph, 27/09/2019).
Dito assim até
parece simples. Mas o Reino Unido enfrentará uma negociação longa, complexa e
potencialmente frustrante. O limite de finais de 2020 é curto e muito ambicioso
— provavelmente impossível de cumprir — para as negociações da futura relação
comercial com a União Europeia. Só para dar uma ideia da complexidade do que
estamos a falar, foram necessários mais de quatro meses para preparar a versão
final, para ratificação, do acordo comercial da União Europeia com Japão.
Claro que, como
ironiza Ian McEwan na sua obra de ficção, apesar das grandes dificuldades,
alguns poderão sempre chamar-lhe ainda Jim, o Sortudo, pois podia ser pior. E
Boris Johnson poderá também voltar a dizer “antes morto numa valeta” do que
pedir novo adiamento, para cumprir a promessa eleitoral do “Get Brexit Done”. (Ver “Boris Johnson: ‘I'd rather be
dead in a ditch’ than ask for Brexit delay” in BBC, 5/09/2019). Ou então acabar a enviar uma nova missiva
não assinada à União Europeia, a pedir mais um adiamento.
Investigador do IPRI-NOVA
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