quarta-feira, 11 de dezembro de 2019

A ordem secreta que proibiu o testemunho de Marcelo e Costa no caso de Tancos





A ordem secreta que proibiu o testemunho de Marcelo e Costa no caso de Tancos

07:00 por Eduardo Dâmaso,  Nuno Tiago Pinto,  António José Vilela e Carlos Rodrigues Lima

O juiz Carlos Alexandre quer ouvir o primeiro-ministro presencialmente. Os procuradores do processo quiseram-no ouvir durante a fase de inquérito, mas o director do DCIAP proibiu-os. Recorde esta investigação da SÁBADO.

A defesa do antigo ministro da Defesa Azeredo Lopes indicou o primeiro-ministro como testemunha no processo Tancos. O juiz de instrução Carlos Alexandre aceitou, mas não quer que as explicações do governante sejam feitas por escrito, mas sim de forma presencial, ou seja, Costa terá de se deslocar ao tribunal e responder a tudo o que lhe for perguntado pelo juiz, pelos procuradores do Ministério Público e pelos advogados que defendem os acusados que têm algum tipo de relação com os factos imputados ao ex-ministro da Defesa. O pedido de audição já seguiu do Tribunal Central de Instrução Criminal (TCIC) para o Conselho de Estado (CS), o órgão que tem de autorizar o testemunho do primeiro-ministro, o qual, recorde-se, foi inviabilizado pelo diretor do DCIAP, Albano Pinto.


"Clichés populistas" e "falsidades"; como Azeredo Lopes reagiu à acusação de TancosE tal como sucede com os testemunhos de António Costa, também outras inquirições solicitadas pela defesa de Azeredo Lopes terão de ser feitas presencialmente no TCIC. Essa é a intenção do magistrado judicial que também já fez seguir os correspondentes pedidos de audição, por exemplo, para o Estado Maior General das Forças Armadas (CEMGFA) porque Azeredo Lopes indicou como testemunhas o atual CEMGFA, Almirante Silva Ribeiro, o ex-CEMGFA António Pina Monteiro e o tenente-general António Martins Pereira, além do embaixador de Portugal na NATO, Almeida Sampaio.

Recorde esta investigação da SÁBADO que revelou a decisão do diretor do DCIAP que impediu o Presidente da República e o primeiro-minsitro de serem ouvidos pelos procuradores como testemunhas no processo de Tancos:

A dignidade das funções exercidas foi o argumento que bastou para travar a inquirição do Presidente da República e do primeiro-ministro. Uma intervenção do diretor do Departamento Central de Investigação e Ação Penal (DCIAP), Albano Pinto, com a cobertura da procuradora-geral da República, Lucília Gago, impediu os procuradores titulares do caso Tancos de ouvir Marcelo Rebelo de Sousa e António Costa como testemunhas. A necessidade de ouvir o Presidente da República e o primeiro-ministro foi invocada pelos magistrados - que até já tinham as perguntas preparadas - para esclarecer totalmente os contornos de um caso que expôs internacionalmente as vulnerabilidades do Estado português, provocou uma guerra entre polícias e levou à demissão do ministro da Defesa, Azeredo Lopes. Uma intenção que foi vetada por Albano Pinto invocando, entre outras razões, a "dignidade dos cargos" e que, ao contrário do que divulgou a Procuradoria-Geral da República, não teve a "anuência" dos procuradores do processo. Muito pelo contrário, como revela o próprio despacho de Albano Pinto, a que a SÁBADO teve acesso, e que até os proibiu de mencionar o nome do Presidente da República em perguntas formuladas a militares e à anterior procuradora-geral da República, Joana Marques Vidal.


Perante as provas recolhidas no processo de que, quer o ex-chefe da Casa Militar do Presidente da República, tenente-general João Cordeiro, quer o ministro da Defesa tinham tido conhecimento prévio da farsa que foi a recuperação do material militar roubado de Tancos, os procuradores queriam perguntar ao primeiro-ministro e ao Presidente da República se, em algum momento, tinham sido informados pelos seus subordinados do que tinha acontecido. Vítor Magalhães, Cláudia Porto e João Valente chegaram a elaborar um projeto de questões que achavam importantes serem colocadas aos mais altos responsáveis políticos do Estado. Isso mesmo é assumido pelo diretor do Departamento Central de Investigação e Ação Penal, Albano Pinto, na intervenção hierárquica - uma ordem expressa dada aos procuradores subordinados - que impediu a audição de Marcelo Rebelo de Sousa e de António Costa.

De acordo com esse documento de 30 páginas, Albano Pinto soube da intenção dos magistrados já na reta final da investigação do caso Tancos, três dias antes de Azeredo Lopes depor como testemunha na sede da Polícia Judiciária: "No passado dia 18, tomei conhecimento que, no inquérito n.º661/17.1TELSB, comummente conhecido por processo Tancos, os respetivos magistrados titulares se preparavam para ouvir, como testemunhas, suas excelências os Srs. Presidente da República e o Primeiro-ministro (do Governo de Portugal), estando já a elaborar as perguntas que consideravam pertinentes para o efeito".

A informação não lhe chegou através dos magistrados. Ao que a SÁBADO apurou, ela terá sido transmitida através do diretor nacional da Polícia Judiciária, Luís Neves, cujos investigadores titulares do processo não concordavam com a inquirição. Surpreendido, Albano Pinto confrontou os procuradores. "Da parte da tarde, confirmei a informação, inclusive, através da leitura de um projeto de despacho que já se encontrava elaborado para esse fim, tendo, pouco tempo depois, na conversa informal desenvolvida com ambos, manifestado a minha discordância sobre as opções do mesmo despacho, ponderando a elevada dignidade dos cargos exercidos pelas pessoas a ouvir e a utilidade que (não) teria para a investigação em curso", escreveu Albano Pinto no documento. "É esta uma das funções da hierarquia: assumir, por escrito, as divergências, quando os Magistrados hierarquicamente subordinados defendam e persistam em outros entendimentos", continuou.

Terça-feira passada, depois de ser questionada pela SÁBADO sobre a existência desta intervenção hierárquica, a Procuradoria-Geral da República emitiu um comunicado através do qual confirmou a intervenção de Albano Pinto e garante que ela "mereceu a anuência dos magistrados titulares" - o que não corresponde à verdade.

Na realidade, de acordo com o documento, depois de terem sido confrontados com a oposição do diretor do DCIAP, Cláudia Porto, João Valente e Vítor Magalhães - há vários anos coordenador do combate ao crime violento no principal departamento de investigação do País - defenderam a "justeza" da sua intenção. O que fez Albano Pinto decidir "refletir, pelo menos até ao fim da noite do referido dia, sobre o seu tipo e alcance".

Por escrito e em segredo
Nessa tarde/noite, os contactos telefónicos entre os titulares do caso e a sua chefia direta sucederam-se. "Entendi que ambos deveriam fazer acompanhar o indicado projeto, que, assim, se manteria como tal, das razões que os haviam levado a decidir no sentido da (indispensável) audição" de Marcelo Rebelo de Sousa e António Costa. Contudo, perante a posição do diretor do DCIAP em proibir o testemunho dos dois políticos, o trio de procuradores exigiu que a mesma, a confirmar-se, ficasse registada "por escrito". Todos concordaram então que essa intervenção hierárquica ficaria "fora do processo" tal como a exposição em que defendiam a audição dos dois responsáveis.

O objetivo dos magistrados era evitar que a não audição de determinadas testemunhas acabasse por se virar contra si, caso fossem mais tarde alvo de uma inspeção interna ao trabalho realizado: poderiam ser acusados de não ter feito todas as diligências necessárias para a descoberta da verdade. Para além disso, foi entendido que aquela era uma questão interna do DCIAP e assim devia ser mantida. Ou seja, na prática o documento ficou numa espécie de limbo e com o selo de secreto.

A SÁBADO confirmou isso mesmo através da consulta ao inquérito-crime. Entre a data da assinatura do despacho por Albano Pinto, a 19 de junho de 2019, e o momento em que os procuradores mandaram em definitivo avançar um conjunto de inquirições a altas patentes militares (sobretudo generais) e à ex-procuradora-geral da República, Joana Marques Vidal, a 25 de julho de 2019, nada é referido inclusive sobre o facto de Albano Pinto também ter mandado suprimir mais de 48 questões a essas mesmas testemunhas. Questões que os procuradores do processo também se preparavam para fazer a, entre outros, João Cordeiro, o ex-chefe da Casa Militar do Presidente da República, ou a Rovisco Duarte, ex-chefe do Estado-Maior do Exército. A proibição decretada por Albano Rodrigues foi justificada porque alegadamente as questões não revelariam "utilidade" e que a iniciativa não cabia à "competência deste departamento", sobretudo "todas as perguntas que envolvam o mais Alto Representante da Nação". Resultado: dezenas de questões previamente pensadas e escritas não puderam ser feitas ou tiveram de ser reformuladas - saliente-se que Albano Pinto chegou a juntar no despacho um "etc" às três questões que proibiu os procuradores de fazerem ao vice-chefe de Estado-Maior do Exército, tenente-general Fernando Serafino.

A proteção dos cargos
Nomeado diretor do DCIAP em janeiro deste ano, Albano Pinto foi uma escolha da atual procuradora-geral da República, Lucília Gago, que em outubro de 2018 foi nomeada pelo Presidente da República, após proposta do Governo, para ocupar o lugar de Joana Marques Vidal.

Após o já referido dia de reflexão e de várias páginas a citar abundante doutrina e jurisprudência, incluindo os códigos de Processo Civil de 1931 e de 1939, Albano Pinto justifica a sua posição sobre a "dignidade dos cargos" de Presidente da República e primeiro-ministro com as teses de José Alberto dos Reis, um prestigiado jurista que nasceu em 1875 e cuja influência no Direito e na Política atravessa toda a primeira metade do século XX. Foi fundador da loja maçónica Manuel Fernandes Tomás, na Figueira da Foz, mas a grande amizade com Salazar, que foi seu aluno na Faculdade de Direito de Coimbra, empurrou-o para o Centro Católico Português e para cargos de grande importância no Estado Novo, como o de presidente da Assembleia Nacional ao longo de três legislaturas, e membro vitalício do Conselho de Estado. Recorreu ainda ao Código do Processo Penal (Anotado) de José Mourisca de 1931.

Albano Pinto elencou, em seguida, uma série de argumentos para a não audição como testemunhas de Marcelo Rebelo de Sousa e de António Costa. Em ambos os casos, o diretor do DCIAP considerou que as declarações de ambos não teriam "nada a ver com as finalidades do inquérito, nem tão pouco, e ainda que tivessem, se poderiam considerar como absolutamente necessárias, como de todo imprescindíveis à indiciação de qualquer dos elementos que a investigação do inquérito deve ter por objeto".

Ainda que os magistrados do processo tenham argumentado que um dos objetivos da investigação penal é esgotar todas as possibilidades para a descoberta da verdade, devendo uma investigação criminal "seguir todos os caminhos que são trazidos pela prova e de ser norteada pelo objetivo final de esclarecimento de todas as dúvidas", o diretor do DCIAP contrariou-os. Na sua opinião, seria "incompreensível ou muito dificilmente explicável que, faltando pouco mais de dois meses para o encerramento do inquérito (...) e estando já constituídos 25 arguidos (...), os depoimentos fossem absolutamente idóneos à decisão sobre a acusação e, mais do que isso, de tal forma imprescindíveis que a indiciação desses arguidos não seria possível". Até porque, referiu Albano Pinto, "há a muito provável possibilidade de o Conselho de Estado não poder sequer reunir a tempo".
De acordo com a lei, os membros do Conselho de Estado, como o são Marcelo Rebelo de Sousa e António Costa, só podem ser "peritos, testemunhas ou declarantes" com a autorização desse mesmo conselho. Para além disso, acrescenta, o "Presidente da República goza da prerrogativa de ser inquirido na sua residência ou na sede dos respetivos serviços e de depor por escrito". Esta última prerrogativa pode também ser estendida ao primeiro-ministro.

No entanto, mesmo que o próprio Marcelo Rebelo de Sousa tenha ponderado pedir autorização ao Conselho de Estado para, por sua iniciativa, prestar declarações no processo, tal como noticiou o semanário Expresso, para Albano Pinto um pedido de autorização enviado pelo MP para o órgão de aconselhamento do Presidente seria uma "diligência supérflua e meramente perturbadora da atuação de um órgão que, pelas funções que exerce e pela dignidade que merece, deve estar muito acima de situações com esse circunstancialismo". Mais: "A intervenção de um membro do Conselho do Estado, particularmente, dos Altos Dignitários acima indicados, deve ser sempre encarada, pelo menos na fase processual em curso, como a última via para a realização das finalidades do inquérito, pela sua ‘alta situação’." Ou seja, de acordo com a interpretação de Albano Pinto, a "dignidade e o prestígio do cargo" devem prevalecer na fase de inquérito.

Nem mesmo as escutas telefónicas, envolvendo um dos principais arguidos do processo, o major Vasco Brazão, nas quais foram usadas expressões como "temos provas concretas de que a Casa Militar foi informada (…) há emails" convenceram Albano Pinto. "Estas conversas nada mais dizem que o que delas consta", concluiu, acrescentando não ser possível extrapolar que os "emails digam respeito ao objeto do processo, à encenação da descoberta do furto de armas e ao acordo com os autores do furto"; que, mesmo que tais comunicações se refiram ao tema, "tenham sido efetivamente enviados para a referida Casa"; e muito menos "que o Presidente da República teve conhecimento da encenação".

António Costa intocável Para o diretor do DCIAP, a investigação não pode ir tão longe quanto os procuradores titulares do cargo queriam. Se Albano Pinto concorda com os procuradores quando escreveram "que a investigação em processo penal deve seguir todos os caminhos que são trazidos pela prova produzida e deve ser norteada pelo objetivo final de esclarecimento de todas as dúvidas", contrapõe que estas devem apenas dizer respeito ao "objeto da investigação, devem ser razoáveis e, por isso, assentarem em pressupostos fundados". Tudo o mais será "futurologia", como escreveu duas vezes.

Em resumo, Albano Pinto não vislumbrou "nenhuma razão para que, pelo menos, por ora, Sua Excelência o Presidente da República seja ouvido e perturbado no exercício das suas Altas funções". Mais: se essa audição acontecesse, nunca poderia ocorrer no DCIAP mas sim no âmbito de um inquérito próprio, sob direção do "Ministério Público no Supremo Tribunal de Justiça". Hipótese que, na verdade, só ocorreria se Marcelo Rebelo de Sousa e António Costa fossem considerados suspeitos - algo que os magistrados do caso de Tancos não referem.

Se em relação ao Presidente da República Albano Pinto defendeu que as afirmações de Vasco Brazão não justificam a audição de Marcelo Rebelo de Sousa, "muito menos se poderá dizer quanto a sua excelência o primeiro-ministro." O raciocínio foi simples: Azeredo Lopes, entretanto acusado de quatro crimes, negou que António Costa tivesse sido informado da "investigação paralela efetuada e da encenação criada".

Ouvido nas instalações da Unidade Nacional de Contraterrorismo, a 21 de junho deste ano, o ex-ministro da Defesa negou alguma vez ter transmitido ao primeiro-ministro a "revolta e o inconformismo do diretor da PJM", disse ter sabido da recuperação das armas, por telefone, através do seu chefe de gabinete, Martins Pereira, na manhã de 18 de outubro; garantiu não se lembrar se Martins Pereira lhe tinha enviado, por telemóvel, o "memorando" entregue pelo coronel Luís Vieira e pelo major Vasco Brazão; que não comunicou a situação à PGR porque não lhe deu relevância; e também que não informou o primeiro-ministro na reunião do conselho de ministros que se seguiu, a 21 de outubro de 2017.

Outro dos argumentos utilizados para vetar a audição de António Costa foi que o primeiro-ministro já tinha respondido às questões dos deputados na Comissão Parlamentar de Inquérito ao caso de Tancos e, nessa altura, negado qualquer conhecimento sobre a farsa que foi a recuperação das armas roubadas.

Estas cautelas do diretor do DCIAP com o Presidente da República e o primeiro-ministro não foram caso único. Do outro lado da rua, no edifício da Polícia Judiciária, as mesmas cautelas verificaram-se com o ex-ministro da Defesa, Azeredo Lopes. Exemplo: no mesmo dia em que o ex-ministro foi ouvido como testemunha, a 21 de junho deste ano, a PJ elaborou um extenso "expediente" de 76 páginas, com a análise da prova recolhida em relação a alguns suspeitos do assalto e a outros do encobrimento. No final, a Judiciária propôs a constituição como arguidos e interrogatórios perante um juiz de instrução de Nuno Reboleira, técnico da Polícia Judiciária Militar, e dos coronéis da GNR Taciano Correia e Amândio Marques. A lista não contemplava Azeredo Lopes, nome que os procuradores do MP acabariam por incluir num despacho para o juiz de instrução, juntamente com os propostos pela PJ. Aliás, nos corredores do DCIAP comenta-se que a própria diretora da Unidade Nacional Contraterrorismo, Manuel Santos, terá comentado com os procuradores que, na sua opinião, Azeredo Lopes terá sido apenas negligente, não havendo motivo para se suspeitar de crimes.

A apreensão insólita
Treze dias depois, Azeredo Lopes voltou a ser chamado ao caso - desta vez para ser interrogado e constituído arguido por suspeitas dos crimes de denegação de justiça, prevaricação e abuso de poderes. Acompanhado pelo advogado Germano Marques da Silva, o ex-ministro da Defesa foi interrogado pelo juiz de instrução criminal João Bártolo e confrontado com todas as suspeitas que sobre si recaiam - no fundo, de ter tido conhecimento da farsa que foi a recuperação das armas de Tancos e de não ter comunicado o que sabia à Procuradoria-Geral da República.

O interrogatório ficou marcado por um final atribulado quando a procuradora Cláudia Porto pediu a Azeredo Lopes que entregasse voluntariamente o telemóvel para ser analisado no caso.

Azeredo Lopes (AL): Mas isso é o quê? Eu não tenho o telemóvel. Que telemóvel?
Cláudia Porto: O senhor professor há pouco tinha um telefone que consultou. É o aparelho para copiar.
AL: Mas este é o meu telemóvel pessoal. Que nunca era utilizado… nunca era utilizado.

O MP considerou que as comunicações constantes do aparelho podiam ser - como se vieram a revelar - importantes para a investigação. E a magistrada sugeriu que se o ex-ministro não o entregasse, o mesmo podia ser apreendido. Azeredo Lopes não ficou satisfeito, estava apenas disponível para entregar o telemóvel do ministério, se ainda o tivesse e cujo conteúdo, disse, tinha apagado quando deixou o governo.

AL: Há uma coisa que me incomoda muito. É a minha vida privada. E a minha vida íntima vai ficar exposta, quando digo que disponibilizo o telemóvel do ministério se o tiver como é evidente. Compreende o que quero dizer? É só isso.

A oposição foi inútil. Ao fim de 8m33s de diálogo, o telemóvel Huawei acabou por ser colocado em cima da mesa, apreendido e selado para ser analisado. Aí a PJ acabaria por encontrar mensagens trocadas com o deputado do PS, Tiago Barbosa Ribeiro, em que admitia, de acordo com a versão do MP, que estava previamente informado da operação de recuperação das armas.

A extensão do lápis azul
A intervenção hierárquica de Albano Pinto não se ficou pela proibição da audição de António Costa e Marcelo Rebelo de Sousa. O diretor do DCIAP, que antes de assumir tais funções foi auditor jurídico no Ministério da Defesa (em acumulação com a Administração Interna), decidiu ainda avaliar a "utilidade" das questões que os procuradores queriam colocar à antiga PGR, Joana Marques Vidal, e, sobretudo a responsáveis militares: o ex-chefe da Casa Militar do Presidente da República, tenente-general João Cordeiro; o ex-chefe de Estado-Maior General das Forças Armadas, general Pina Monteiro; o ex-chefe do Estado-Maior do Exército (CEME), general Rovisco Duarte; o ex-chefe de gabinete do CEME, tenente-general Fonseca e Sousa; o ex-vice-CEME, tenente-general Fernando Serafino.

Ao todo, foram mais de 48 as questões que o diretor do DCIAP considerou não terem qualquer utilidade por envolverem o mais "alto representante da nação" ou "irrelevantes" por as testemunhas não "terem que comentar ou exprimir juízos de valor sobre os comportamentos de outras pessoas". Todos estes responsáveis acabaram por ser questionados, por escrito um mês depois, a 26 de julho deste ano - mas sem qualquer referência direta ao conhecimento que quer o Presidente da República ou o primeiro-ministro podiam ter sobre o caso de Tancos.

Todavia, na acusação deduzida na semana passada, os procuradores acabaram por deixar algumas referências quer ao Governo quer à presidência da República. Sobre o Executivo, escreveram que "a recuperação do material subtraído assumia um papel muito importante na imagem interna do Governo, numa altura em que se debatia com as nefastas consequências dos incêndios". Já a presidência da República é atingida por arrasto. Os magistrados consideraram que "a prova existente" permite "suspeitar que João Cordeiro pudesse estar a acompanhar, de alguma forma, as diligências" da Polícia judiciária Militar à "margem do MP e da PJ e que tivesse conhecimento do acordo que foi efetuado com o autor da subtração". Por esse motivo, foi extraída uma certidão tendo em vista a instauração de um novo inquérito para investigar a atuação do ex-chefe da Casa Militar de Marcelo Rebelo de Sousa.

O caso acabou por ser utilizado pelo líder do PSD, Rui Rio, para atacar António Costa, dizendo que o partido tem o dever de perguntar se o primeiro-ministro "sabia ou não sabia" da farsa da recuperação das armas de Tancos. "Se sabia, foi conivente com um crime; se não sabia, ficamos a saber que os ministros não informam o primeiro-ministro". António Costa respondeu que a insinuação de Rio é "absolutamente lamentável" de "uma pessoa que julgava que seria firme nos seus princípios e que num dia diz que passa de maior inimigo público do MP para, de repente, ser o maior desconfiado quanto àquilo que é a competência própria dos tribunais para julgar". Mais tarde, em entrevista à RTP, explicou: "Até hoje nunca a Justiça me fez qualquer pergunta, se houvesse alguma dúvida seguramente me teriam feito qualquer pergunta."   

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