Baixa
Pombalina transformou-se numa "fantasia para turistas"
13 DE MARÇO DE 2017
07:37
Ana Bela Ferreira
Entre 2008 e a
atualidade, a Baixa Pombalina ganhou hotéis, lojas de souvenirs
low-cost e perdeu espaços únicos dos quais não restam vestígios,
mostra um estudo feito pelo sociólogo Guilherme Pereira. Mas também
há bons exemplos como a manutenção da decoração da Alfaitaria
Nunes Corrêa ou das paredes e estrutura da Ginjinha Sem
Rival-Eduardino
A Baixa de Lisboa
está transformada num conjunto de ruas preenchidas por turistas com
ofertas a pensar neles. Dos hotéis aos souvenirs baratos, passando
pelos restaurantes e lojas "típicas" inventadas. É por
entre os turistas que vamos à descoberta da história que
desapareceu, da que ainda se mantém e da que foi inventada. "Agora
temos esta fantasia para turista ver", lamenta Guilherme
Pereira, o guia do DN nesta visita por alguns pontos que são
referidos no seu estudo "Mudanças e Globalização na Baixa
Pombalina". A comparação feita pelo sociólogo e amante de
Lisboa, como se descreve, regista as mudanças entre 2008 e 2016/17.
O pior que aconteceu
à Baixa foi "perder a sua população e as suas atividades
genuínas e tradicionais", aponta. O sociólogo não nega que há
negócios que hoje já não fazem muito sentido, como manter uma
correaria. No entanto, não se conforma que o património histórico
destes espaços se perca no tempo. "Não são mantidas nem as
paredes. Perdem-se azulejos, as madeiras antigas, portadas, tetos, e
com isso perde-se a alma das casas", lamenta.
Começando a
caminhada no Rossio, Guilherme Pereira começa por apontar o que no
seu entender é um exemplo da fantasia que está a ser vendida aos
turistas. A loja O Mundo Fantástico da Sardinha - "antes era
aqui o meu barbeiro e funcionava uma loja de telemóveis, coisas que
serviam a população local e agora existe esta loja que é para
turistas" - tem funcionários vestidos a rigor, montras cheias
de cor, carrosséis e turistas, muitos turistas que não param de
entrar.
Mais abaixo, a Feira
dos Tecidos ocupa agora o espaço que já foi da Loja do Diário de
Notícias. "Era um edifício classificado e entretanto o
letreiro já foi tirado e substituído e ninguém deu por nada."
Para evitar que este tipo de património se perca, Guilherme Pereira
gostava que fossem aprovados "vários tipos de classificação".
"A classificação de loja histórica que inclui a marca e o
conjunto do estabelecimento, como é atualmente, e depois haver
subclassificações para a manutenção da fachada ou do interior,
separadamente, por exemplo."
Até porque as ruas
da Baixa ainda preservam alguns bons exemplos. Fachadas de madeira,
remodelações que mantiveram os traços no interior e exterior, como
a antiga Alfaiataria Nunes Corrêa, que ainda vive nas paredes,
janelas, teto e fachada da atual Kiko (loja de maquilhagem), no
cruzamento da Rua Augusta com a Rua de Santa Justa. "Estamos
perante uma combinação de uma clássica alfaiataria inglesa, com um
negócio atual. Mas infelizmente estas decisões de manter ou não o
património das lojas antigas é deixada ao critério do novo dono,
não há nenhuma proteção na lei", aponta o autor do estudo
sobre as mudanças na Baixa.
As pessoas que fogem
Ao mesmo tempo que
os comerciantes se voltam para os turistas - só as lojas de
recordações de baixo preço passaram de 9 a 90 em seis anos, aponta
o levantamento feito por Guilherme Pereira, que considera que estes
negócios "colocam Lisboa ao nível de uma vulgar estância
balnear" -, muitos dos prédios estão a ser comprados por
capitais estrangeiros. "Passamos pela Baixa e vemos estrangeiros
em frente a prédios em ruínas. Estão a vender-lhes casas ainda em
papel", critica. O sociólogo defende, tal como o presidente da
Junta de Freguesia de Santa Maria Maior (ver entrevista na página ao
lado), que se torna urgente rever a lei das rendas. "Passámos
do 8 ao 80 com a lei das rendas. Agora os donos, muitas vezes
estrangeiros, chegam e dizem "têm de sair porque vamos fazer
obras" e nem há negociações para manter as lojas ou as
casas."
Foi o que aconteceu
com o restaurante Palmeira. O prédio foi vendido e o novo dono
anunciou as obras e a necessidade de o restaurante fechar. Não houve
negociações e agora quem passar pela Rua do Crucifixo, junto à
entrada do metro, vê apenas uma fachada que se ergue apoiada em
barras de ferro, já sem os azulejos e arcadas que deram vida à
histórica tasca, fechada no final de 2015.
O "último
exemplo da barbárie", segundo Guilherme Pereira, foi o
encerramento do restaurante Pessoa. "Outro restaurante típico
de Lisboa, aberto desde 1800 e tal e que foi remodelado nos anos
1950. Tinha azulejos típicos da época, tinha clientes e de repente
no verão fechou e não voltou a abrir", descreve o sociólogo
em frente às portas fechadas e ao prédio em obras na esquina da Rua
dos Douradores.
Melhor sorte teve a
Ginjinha Sem Rival-Eduardino. "O prédio foi comprado e
demolido, mas houve um movimento de contestação forte e conseguiram
manter a Ginjinha dentro das próprias paredes. A loja está a
funcionar mantendo as paredes com uma cofragem e esta é uma solução
que acho adequada, porque "as paredes também falam" e
temos visto demolições em que resta apenas a fachada",
defende. Além de que, acrescenta o autor do estudo, "não
sabemos se a nova construção é antissísmica, só sabemos que
estão a desaparecer as marcas da Baixa Pombalina".
Depois das
remodelações, nascem por norma hotéis ou apartamentos de luxo,
este último um segmento que começa agora a ser a aposta dos novos
donos da Baixa, refere Guilherme Pereira. Desde 2010, surgiram aqui
21 hotéis a que se juntam 40 estabelecimentos de alojamento local -
"apenas entre os que estão à vista" - uma especialização
que "está a esvaziar a Baixa de moradores e com as suas frentes
de rua expulsa o comércio, novo ou antigo".
A Baixa tem ao todo
849 estabelecimentos, desapareceram cerca de 120, e ainda que o autor
da comparação reconheça que "as renovações são
necessárias", receia que até os próprios turistas acabem por
fugir da Baixa se esta continuar a descaracterizar-se. Um problema
que poderia resolver-se garantindo a permanência de população na
zona e manter "nas remodelações os interiores, fachadas e
traços definidores do edificado pombalino".
Guilherme Pereira
lamenta que Lisboa ainda não esteja ao nível de Barcelona
(Espanha), onde "a especialização no turismo levou a população
a reagir, a travar o aumento das rendas". Lisboa poderia começar
por "colocar quotas-partes à construção para hotelaria,
habitação, comércio e serviços" e "rendas acessíveis
para a população local" até porque o turismo se for
desregulado começa "a perturbar a vida local". O sociólogo
acredita que o segredo está afinal "num equilíbrio" entre
o turista e o lisboeta.
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