terça-feira, 1 de novembro de 2022

A terceira era do lulismo não tem margem para erros / The third era of lulism has no room for error

 


ELEIÇÕES BRASIL 2022

A terceira era do lulismo não tem margem para erros

 

Os primeiros passos de Lula terão de assegurar a manutenção da coligação ampla que ajudou à sua eleição. No Congresso, há espaço para estabilidade, mas a negociação será permanente.

 

João Ruela Ribeiro

31 de Outubro de 2022, 22:29

https://www.publico.pt/2022/10/31/mundo/noticia/terceira-lulismo-nao-margem-erros-2026058

 

Na história da democracia brasileira, ninguém tem mais experiência do que Lula da Silva no que respeita a eleições — vitoriosas e falhadas. Foi apenas à quarta tentativa que conseguiu vencer umas eleições presidenciais, em 2002, e, duas décadas depois, tornou-se o primeiro político a garantir um terceiro mandato presidencial. Porém, os próximos tempos prometem ser (mais) um desafio monumental até para alguém com a experiência de Lula.

 

A curta margem de vitória de Lula, inferior a dois pontos percentuais, deixou evidente a profunda divisão do Brasil e superar esse abismo será uma missão prioritária. O politólogo Sérgio Abranches põe alguma água na fervura em relação ao diagnóstico de uma sociedade de costas voltadas, considerando que a diferença reduzida entre Lula e Jair Bolsonaro “tem pouca importância política”. “Esse grande número de pessoas que votou em Bolsonaro não é bolsonarista, não é um apoio total ao Bolsonaro”, explica, em entrevista ao PÚBLICO.

 

Os sinais de que a lua-de-mel de Lula será muito curta são muitos. Desde logo a recusa de Bolsonaro em reagir à derrota, mais de 24 horas depois da confirmação dos resultados. “Esse silêncio é eloquente da absoluta falta de decoro e compromisso democrático de Bolsonaro”, afirma Abranches. Se o perigo de uma ruptura institucional parece debelado, nem por isso o Brasil parece estar pacificado. Nesta segunda-feira, em 13 estados, camionistas afectos a Bolsonaro organizaram cortes de estradas em protesto, incluindo na importante rodovia Presidente Dutra, que liga São Paulo ao Rio de Janeiro.

 

A generalidade da imprensa e dos analistas considera que o primeiro passo de Lula, agora como Presidente eleito, para alcançar a almejada reconciliação nacional foi dado com distinção no discurso da noite de domingo. Tocando em praticamente todas as grandes preocupações dos brasileiros — desde a fome até aos serviços públicos, passando pela preservação da Amazónia e o combate ao racismo —, Lula prometeu “restabelecer a paz e o diálogo”.

 

A acompanhar os processos eleitorais desde 1989, Abranches diz que “em nenhum momento a aceitação da vitória foi tão formal como esta do Lula”. Ao contrário do habitual, o candidato do Partido dos Trabalhadores (PT) leu um discurso previamente redigido, sem lugar a improvisações, mostrando estar consciente da gravidade do momento. Abranches diz que tudo foi feito “com sentido de responsabilidade”.

 

Governo amplo

Lula apenas irá tomar posse a 1 de Janeiro de 2023, mas o período de transição ao longo dos próximos dois meses irá fornecer indicadores cruciais para se perceber que tipo de governo terá o Brasil. Uma das primeiras iniciativas de Lula, já nas próximas semanas, deverá ser viajar por alguns países considerados importantes para o Brasil, com o intuito de reconstruir laços que possam ter sofrido erosão durante o mandato de Bolsonaro. Já nesta segunda-feira, Lula recebeu o Presidente argentino, Alberto Fernández, para um encontro.

 

Na imprensa brasileira, já fervilham as especulações sobre a composição do futuro executivo de Lula. Esse será um dos exercícios mais complexos nas mãos do Presidente eleito que terá pouca margem para erros de cálculo. “Ele tem de começar a montar a coligação e tem de ser uma expressão daquilo que ele falou no discurso e daquilo que foi a eleição dele: uma frente ampla democrática e não petista”, diz Sérgio Abranches.

 

Por trás da candidatura de Lula, esteve uma aliança com uma enorme abrangência a que se somou, já na campanha para a segunda volta, a candidata derrotada Simone Tebet, que se revelou um trunfo decisivo para que o petista recuperasse votos na região Sudeste. Cabe agora a Lula e aos seus aliados mais próximos desenhar um governo que consiga fazer uma quadratura do círculo: juntar sensibilidades que vão desde a esquerda radical até conservadores de centro-direita sem perder a coesão. “Na armação do Governo, ele vai mostrar que é um governo da frente ampla democrática e isso vai facilitar o caminho”, prevê o analista.

 

Abranches acredita que há nomes incontornáveis que farão parte do elenco governamental, como o de Fernando Haddad, candidato do PT derrotado nas eleições em São Paulo, de Tebet ou ainda da ex-ministra do Ambiente, Marina Silva, que foi eleita recentemente deputada federal. Lula “vai ter de tomar várias decisões complicadas porque a crise é muito grave e profunda”, sublinha o politólogo, que adverte para a impossibilidade de o futuro Presidente conseguir agradar a todos.

 

“Em alguns casos, Lula vai tomar decisões que vão irritar os movimentos sociais, sobretudo a parte mais esquerdista do PT”, antevê Abranches.

 

“Centrão” aproxima-se

Determinante será também a relação do futuro Governo com o Congresso saído das eleições de 2 de Outubro. A fragmentação partidária obriga frequentemente os executivos a negociar coligações com dezenas de partidos para alcançar um patamar mínimo de governabilidade. Abranches, que cunhou a expressão “presidencialismo de coligação”, acredita que “Lula tem condições para fazer uma coligação maioritária” na Câmara dos Deputados.

 

Como tem sido habitual, o pêndulo da balança está dependente das bancadas que compõem o “centrão”, representado pelos deputados sem ideologia e que apoiam os governos de ocasião a troco de recursos e cargos. E Abranches nota que o “centrão” já está a caminhar na direcção de Lula, dando o exemplo do próprio presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira, aliado de Bolsonaro mas que foi rápido a reconhecer a sua derrota no domingo à noite. “Lira é ‘centrão’, ele sabe como é que isto funciona: rei morto, rei posto.”

 

A excepcionalidade da situação vivida na política brasileira também poderá ter efeitos no processo de transição entre o governo cessante e o próximo. Desde 2002 que está fixado em legislação os trâmites que regulam a passagem do testemunho entre as administrações, mas está longe de ser uma certeza que Bolsonaro esteja inclinado em facilitar a transição, mesmo reconhecendo relutantemente a derrota. Segundo a Folha de S. Paulo, não foi feito qualquer preparativo para a eventual transição, uma vez que essa possibilidade era um “tabu” entre a equipa presidencial.

 

No discurso que fez na Avenida Paulista no domingo à noite, junto dos seus apoiantes, o próprio Lula reconheceu que pode enfrentar dificuldades nessa matéria. “Eu preciso saber se o Presidente que nós derrotámos vai permitir que haja uma transição para que a gente tome conhecimento das coisas”, afirmou. Para além de um ritual que atesta a sã convivência democrática, este processo é importante para que os futuros governantes sejam informados acerca do estado das suas respectivas pastas e de projectos em curso antes da tomada de posse.

 

Aventam-se várias possibilidades para que algum tipo de transição decorra, apesar das dificuldades. Uma delas passa até pela renúncia de Bolsonaro antes do fim do mandato, deixando o seu vice, Hamilton Mourão, responsável pela tarefa de passar a faixa a Lula. Não é, porém, provável que Bolsonaro queira abrir mão tão depressa dos seus poderes. Uma alternativa é a de que sejam funcionários públicos de carreira de vários ministérios a passar os dossiers à equipa de transição de Lula.


BRAZIL ELECTIONS 2022

The third era of lulism has no room for error

 

Lula's first steps will have to ensure the maintenance of the broad coalition that helped his election. In Congress, there is room for stability, but the negotiation will be permanent.

 

Joao Ruela

October 31, 2022, 22:29

https://www.publico.pt/2022/10/31/mundo/noticia/terceira-lulismo-nao-margem-erros-2026058

 

In the history of Brazilian democracy, no one has more experience than Lula da Silva in terms of elections — victorious and failed. It was only the fourth attempt to win a presidential election in 2002, and two decades later he became the first politician to secure a third presidential term. However, the coming times promise to be (more) a monumental challenge even for someone with lula's experience.

 

Lula's short margin of victory, less than two percentage points, made evident the deep division of Brazil and overcoming this abyss will be a priority mission. The politico Sérgio Abranches puts some water on the boil in relation to the diagnosis of a society with its back turned, considering that the reduced difference between Lula and Jair Bolsonaro "has little political importance". "This large number of people who voted for Bolsonaro is not bolsonarista, it is not a total support to Bolsonaro", he explains, in an interview with público.

 

The signs that Lula's honeymoon will be too short are many. Bolsonaro's refusal to react to the defeat, more than 24 hours after the confirmation of the results. "This silence is eloquent of bolsonaro's absolute lack of decorousness and democratic commitment," Says Abranches. If the danger of an institutional rupture seems debatable, not so Brazil seems to be pacified. On Monday, in 13 states, truckers assigned to Bolsonaro organized road cuts in protest, including on the important Presidente Dutra highway, which connects São Paulo to Rio de Janeiro.

 

The general ity of the press and analysts considers that Lula's first step, now as President-elect, to achieve the desired national reconciliation was made with distinction in sunday night's speech. Touching on virtually all the great concerns of Brazilians - from hunger to public services, through the preservation of the Amazon and the fight against racism - Lula promised to "restore peace and dialogue."

 

Monitoring the electoral processes since 1989, Abranches says that "at no time was the acceptance of the victory as formal as lula's." Contrary to the usual, the candidate of the Workers' Party (PT) read a previously written speech, with no place for improvisations, showing to be aware of the severity of the moment. Abranches says everything was done "with a sense of responsibility."

 

Broad government

Lula will only take office on January 1, 2023, but the transition period over the next two months will provide crucial indicators to understand what kind of government Brazil will have. One of Lula's first initiatives, already in the coming weeks, should be to travel through some countries considered important to Brazil, in order to rebuild ties that may have been eroded during bolsonaro's term. Already on Monday, Lula welcomed the Argentine President, Alberto Fernández, for a meeting.

 

In the Brazilian press, speculation about the composition of Lula's future executive is already rife. This will be one of the most complex exercises in the hands of the President-elect who will have little room for miscalculation. "He has to start building the coalition and it has to be an expression of what he said in his speech and what was his election: a broad democratic front and not a ptista," says Sérgio Abranches.

 

Behind Lula's candidacy was an alliance with a huge scope to which was added, already in the campaign for the second round, the defeated candidate Simone Tebet, which proved a decisive asset for the PT to recover votes in the Southeast region. It is now up to Lula and his closest allies to design a government that can square the circle: to gather sensibilities ranging from the radical left to center-right conservatives without losing cohesion. "In the government's setup, it will show that it is a broad democratic front government and this will ease the way," predicts the analyst.

 

Abranches believes that there are unavoidable names that will be part of the government cast, such as Fernando Haddad, pt candidate defeated in the elections in São Paulo, Tebet or former Minister of the Environment, Marina Silva, who was recently elected federal deputy. Lula "will have to make several complicated decisions because the crisis is very serious and profound", stresses the politico, who warns of the impossibility of the future President can please everyone.

 

"In some cases, Lula will make decisions that will irritate social movements, especially the most leftist part of the PT", predicts Abranches.

 

"Centrão" approaches

The relationship of the future Government with the Congress coming out of the elections of 2 October will also be decisive. Party fragmentation often forces executives to negotiate coalitions with dozens of parties to achieve a minimum level of governability. Abranches, who coined the expression "coalition presidentialism", believes that "Lula is able to make a majority coalition" in the House of Representatives.

 

As has been customary, the balance pendulum is dependent on the benches that make up the "center", represented by members without ideology and who support the governments of occasion in exchange for resources and positions. And Abranches notes that the "center" is already moving in lula's direction, giving the example of the president of the House of Representatives, Arthur Lira, an ally of Bolsonaro but who was quick to acknowledge his defeat on Sunday night. "Lira is 'centrão', he knows how this works: king dead, king put."

 

The exceptionality of the situation experienced in Brazilian politics may also have effects on the transition process between the outgoing government and the next. Since 2002, the procedures that regulate the passage of testimony between administrations have been fixed in legislation, but it is far from certain that Bolsonaro is inclined to facilitate the transition, even reluctantly recognizing the defeat. According to Folha de S. Paulo, no preparation was made for the eventual transition, since this possibility was a "taboo" among the presidential team.

 

In his speech on Paulista Avenue on Sunday night, with his supporters, Lula himself acknowledged that he may face difficulties in this matter. "I need to know if the President we defeated will allow there to be a transition for us to become aware of things," he said. In addition to a ritual that attests to the healthy democratic coexistence, this process is important for future rulers to be informed about the state of their respective portfolios and ongoing projects before the inauguration.

 

Several possibilities are suggested for some kind of transition to take place, despite the difficulties. One of them even goes through the resignation of Bolsonaro before the end of the term, leaving his deputy, Hamilton Mourão, responsible for the task of passing the track to Lula. It is not, however, likely that Bolsonaro wants to give up his powers so quickly. An alternative is that they are career civil servants of various ministries to pass the dossiers to lula's transition team.


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