ELEIÇÕES BRASIL
2022
A terceira era do lulismo não tem margem para erros
Os primeiros passos de Lula terão de assegurar a
manutenção da coligação ampla que ajudou à sua eleição. No Congresso, há espaço
para estabilidade, mas a negociação será permanente.
João Ruela
Ribeiro
31 de Outubro de
2022, 22:29
https://www.publico.pt/2022/10/31/mundo/noticia/terceira-lulismo-nao-margem-erros-2026058
Na história da
democracia brasileira, ninguém tem mais experiência do que Lula da Silva no que
respeita a eleições — vitoriosas e falhadas. Foi apenas à quarta tentativa que
conseguiu vencer umas eleições presidenciais, em 2002, e, duas décadas depois,
tornou-se o primeiro político a garantir um terceiro mandato presidencial.
Porém, os próximos tempos prometem ser (mais) um desafio monumental até para
alguém com a experiência de Lula.
A curta margem de
vitória de Lula, inferior a dois pontos percentuais, deixou evidente a profunda
divisão do Brasil e superar esse abismo será uma missão prioritária. O
politólogo Sérgio Abranches põe alguma água na fervura em relação ao
diagnóstico de uma sociedade de costas voltadas, considerando que a diferença
reduzida entre Lula e Jair Bolsonaro “tem pouca importância política”. “Esse
grande número de pessoas que votou em Bolsonaro não é bolsonarista, não é um
apoio total ao Bolsonaro”, explica, em entrevista ao PÚBLICO.
Os sinais de que
a lua-de-mel de Lula será muito curta são muitos. Desde logo a recusa de
Bolsonaro em reagir à derrota, mais de 24 horas depois da confirmação dos
resultados. “Esse silêncio é eloquente da absoluta falta de decoro e
compromisso democrático de Bolsonaro”, afirma Abranches. Se o perigo de uma ruptura
institucional parece debelado, nem por isso o Brasil parece estar pacificado.
Nesta segunda-feira, em 13 estados, camionistas afectos a Bolsonaro organizaram
cortes de estradas em protesto, incluindo na importante rodovia Presidente
Dutra, que liga São Paulo ao Rio de Janeiro.
A generalidade da
imprensa e dos analistas considera que o primeiro passo de Lula, agora como
Presidente eleito, para alcançar a almejada reconciliação nacional foi dado com
distinção no discurso da noite de domingo. Tocando em praticamente todas as
grandes preocupações dos brasileiros — desde a fome até aos serviços públicos,
passando pela preservação da Amazónia e o combate ao racismo —, Lula prometeu
“restabelecer a paz e o diálogo”.
A acompanhar os
processos eleitorais desde 1989, Abranches diz que “em nenhum momento a
aceitação da vitória foi tão formal como esta do Lula”. Ao contrário do
habitual, o candidato do Partido dos Trabalhadores (PT) leu um discurso
previamente redigido, sem lugar a improvisações, mostrando estar consciente da
gravidade do momento. Abranches diz que tudo foi feito “com sentido de
responsabilidade”.
Governo amplo
Lula apenas irá
tomar posse a 1 de Janeiro de 2023, mas o período de transição ao longo dos
próximos dois meses irá fornecer indicadores cruciais para se perceber que tipo
de governo terá o Brasil. Uma das primeiras iniciativas de Lula, já nas
próximas semanas, deverá ser viajar por alguns países considerados importantes
para o Brasil, com o intuito de reconstruir laços que possam ter sofrido erosão
durante o mandato de Bolsonaro. Já nesta segunda-feira, Lula recebeu o
Presidente argentino, Alberto Fernández, para um encontro.
Na imprensa
brasileira, já fervilham as especulações sobre a composição do futuro executivo
de Lula. Esse será um dos exercícios mais complexos nas mãos do Presidente
eleito que terá pouca margem para erros de cálculo. “Ele tem de começar a
montar a coligação e tem de ser uma expressão daquilo que ele falou no discurso
e daquilo que foi a eleição dele: uma frente ampla democrática e não petista”,
diz Sérgio Abranches.
Por trás da
candidatura de Lula, esteve uma aliança com uma enorme abrangência a que se
somou, já na campanha para a segunda volta, a candidata derrotada Simone Tebet,
que se revelou um trunfo decisivo para que o petista recuperasse votos na
região Sudeste. Cabe agora a Lula e aos seus aliados mais próximos desenhar um
governo que consiga fazer uma quadratura do círculo: juntar sensibilidades que
vão desde a esquerda radical até conservadores de centro-direita sem perder a
coesão. “Na armação do Governo, ele vai mostrar que é um governo da frente
ampla democrática e isso vai facilitar o caminho”, prevê o analista.
Abranches
acredita que há nomes incontornáveis que farão parte do elenco governamental,
como o de Fernando Haddad, candidato do PT derrotado nas eleições em São Paulo,
de Tebet ou ainda da ex-ministra do Ambiente, Marina Silva, que foi eleita
recentemente deputada federal. Lula “vai ter de tomar várias decisões
complicadas porque a crise é muito grave e profunda”, sublinha o politólogo,
que adverte para a impossibilidade de o futuro Presidente conseguir agradar a
todos.
“Em alguns casos,
Lula vai tomar decisões que vão irritar os movimentos sociais, sobretudo a
parte mais esquerdista do PT”, antevê Abranches.
“Centrão”
aproxima-se
Determinante será
também a relação do futuro Governo com o Congresso saído das eleições de 2 de
Outubro. A fragmentação partidária obriga frequentemente os executivos a
negociar coligações com dezenas de partidos para alcançar um patamar mínimo de
governabilidade. Abranches, que cunhou a expressão “presidencialismo de
coligação”, acredita que “Lula tem condições para fazer uma coligação
maioritária” na Câmara dos Deputados.
Como tem sido
habitual, o pêndulo da balança está dependente das bancadas que compõem o
“centrão”, representado pelos deputados sem ideologia e que apoiam os governos
de ocasião a troco de recursos e cargos. E Abranches nota que o “centrão” já
está a caminhar na direcção de Lula, dando o exemplo do próprio presidente da
Câmara dos Deputados, Arthur Lira, aliado de Bolsonaro mas que foi rápido a
reconhecer a sua derrota no domingo à noite. “Lira é ‘centrão’, ele sabe como é
que isto funciona: rei morto, rei posto.”
A
excepcionalidade da situação vivida na política brasileira também poderá ter
efeitos no processo de transição entre o governo cessante e o próximo. Desde
2002 que está fixado em legislação os trâmites que regulam a passagem do
testemunho entre as administrações, mas está longe de ser uma certeza que
Bolsonaro esteja inclinado em facilitar a transição, mesmo reconhecendo
relutantemente a derrota. Segundo a Folha de S. Paulo, não foi feito qualquer
preparativo para a eventual transição, uma vez que essa possibilidade era um
“tabu” entre a equipa presidencial.
No discurso que
fez na Avenida Paulista no domingo à noite, junto dos seus apoiantes, o próprio
Lula reconheceu que pode enfrentar dificuldades nessa matéria. “Eu preciso
saber se o Presidente que nós derrotámos vai permitir que haja uma transição
para que a gente tome conhecimento das coisas”, afirmou. Para além de um ritual
que atesta a sã convivência democrática, este processo é importante para que os
futuros governantes sejam informados acerca do estado das suas respectivas
pastas e de projectos em curso antes da tomada de posse.
Aventam-se várias
possibilidades para que algum tipo de transição decorra, apesar das
dificuldades. Uma delas passa até pela renúncia de Bolsonaro antes do fim do
mandato, deixando o seu vice, Hamilton Mourão, responsável pela tarefa de
passar a faixa a Lula. Não é, porém, provável que Bolsonaro queira abrir mão
tão depressa dos seus poderes. Uma alternativa é a de que sejam funcionários
públicos de carreira de vários ministérios a passar os dossiers à equipa de
transição de Lula.
BRAZIL ELECTIONS
2022
The third era of
lulism has no room for error
Lula's first steps will have to ensure the maintenance of
the broad coalition that helped his election. In Congress, there is room for
stability, but the negotiation will be permanent.
Joao Ruela
October 31, 2022,
22:29
https://www.publico.pt/2022/10/31/mundo/noticia/terceira-lulismo-nao-margem-erros-2026058
In the history of
Brazilian democracy, no one has more experience than Lula da Silva in terms of
elections — victorious and failed. It was only the fourth attempt to win a
presidential election in 2002, and two decades later he became the first
politician to secure a third presidential term. However, the coming times
promise to be (more) a monumental challenge even for someone with lula's
experience.
Lula's short
margin of victory, less than two percentage points, made evident the deep
division of Brazil and overcoming this abyss will be a priority mission. The
politico Sérgio Abranches puts some water on the boil in relation to the
diagnosis of a society with its back turned, considering that the reduced
difference between Lula and Jair Bolsonaro "has little political
importance". "This large number of people who voted for Bolsonaro is
not bolsonarista, it is not a total support to Bolsonaro", he explains, in
an interview with público.
The signs that
Lula's honeymoon will be too short are many. Bolsonaro's refusal to react to
the defeat, more than 24 hours after the confirmation of the results. "This
silence is eloquent of bolsonaro's absolute lack of decorousness and democratic
commitment," Says Abranches. If the danger of an institutional rupture
seems debatable, not so Brazil seems to be pacified. On Monday, in 13 states,
truckers assigned to Bolsonaro organized road cuts in protest, including on the
important Presidente Dutra highway, which connects São Paulo to Rio de Janeiro.
The general ity
of the press and analysts considers that Lula's first step, now as
President-elect, to achieve the desired national reconciliation was made with
distinction in sunday night's speech. Touching on virtually all the great
concerns of Brazilians - from hunger to public services, through the
preservation of the Amazon and the fight against racism - Lula promised to
"restore peace and dialogue."
Monitoring the
electoral processes since 1989, Abranches says that "at no time was the
acceptance of the victory as formal as lula's." Contrary to the usual, the
candidate of the Workers' Party (PT) read a previously written speech, with no
place for improvisations, showing to be aware of the severity of the moment.
Abranches says everything was done "with a sense of responsibility."
Broad government
Lula will only
take office on January 1, 2023, but the transition period over the next two
months will provide crucial indicators to understand what kind of government
Brazil will have. One of Lula's first initiatives, already in the coming weeks,
should be to travel through some countries considered important to Brazil, in order
to rebuild ties that may have been eroded during bolsonaro's term. Already on
Monday, Lula welcomed the Argentine President, Alberto Fernández, for a
meeting.
In the Brazilian
press, speculation about the composition of Lula's future executive is already
rife. This will be one of the most complex exercises in the hands of the
President-elect who will have little room for miscalculation. "He has to
start building the coalition and it has to be an expression of what he said in
his speech and what was his election: a broad democratic front and not a
ptista," says Sérgio Abranches.
Behind Lula's
candidacy was an alliance with a huge scope to which was added, already in the
campaign for the second round, the defeated candidate Simone Tebet, which
proved a decisive asset for the PT to recover votes in the Southeast region. It
is now up to Lula and his closest allies to design a government that can square
the circle: to gather sensibilities ranging from the radical left to
center-right conservatives without losing cohesion. "In the government's
setup, it will show that it is a broad democratic front government and this
will ease the way," predicts the analyst.
Abranches
believes that there are unavoidable names that will be part of the government
cast, such as Fernando Haddad, pt candidate defeated in the elections in São
Paulo, Tebet or former Minister of the Environment, Marina Silva, who was
recently elected federal deputy. Lula "will have to make several
complicated decisions because the crisis is very serious and profound",
stresses the politico, who warns of the impossibility of the future President
can please everyone.
"In some
cases, Lula will make decisions that will irritate social movements, especially
the most leftist part of the PT", predicts Abranches.
"Centrão"
approaches
The relationship
of the future Government with the Congress coming out of the elections of 2
October will also be decisive. Party fragmentation often forces executives to
negotiate coalitions with dozens of parties to achieve a minimum level of
governability. Abranches, who coined the expression "coalition
presidentialism", believes that "Lula is able to make a majority
coalition" in the House of Representatives.
As has been
customary, the balance pendulum is dependent on the benches that make up the
"center", represented by members without ideology and who support the
governments of occasion in exchange for resources and positions. And Abranches
notes that the "center" is already moving in lula's direction, giving
the example of the president of the House of Representatives, Arthur Lira, an
ally of Bolsonaro but who was quick to acknowledge his defeat on Sunday night.
"Lira is 'centrão', he knows how this works: king dead, king put."
The
exceptionality of the situation experienced in Brazilian politics may also have
effects on the transition process between the outgoing government and the next.
Since 2002, the procedures that regulate the passage of testimony between
administrations have been fixed in legislation, but it is far from certain that
Bolsonaro is inclined to facilitate the transition, even reluctantly
recognizing the defeat. According to Folha de S. Paulo, no preparation was made
for the eventual transition, since this possibility was a "taboo"
among the presidential team.
In his speech on
Paulista Avenue on Sunday night, with his supporters, Lula himself acknowledged
that he may face difficulties in this matter. "I need to know if the
President we defeated will allow there to be a transition for us to become
aware of things," he said. In addition to a ritual that attests to the
healthy democratic coexistence, this process is important for future rulers to
be informed about the state of their respective portfolios and ongoing projects
before the inauguration.
Several
possibilities are suggested for some kind of transition to take place, despite
the difficulties. One of them even goes through the resignation of Bolsonaro
before the end of the term, leaving his deputy, Hamilton Mourão, responsible
for the task of passing the track to Lula. It is not, however, likely that
Bolsonaro wants to give up his powers so quickly. An alternative is that they
are career civil servants of various ministries to pass the dossiers to lula's
transition team.
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