segunda-feira, 24 de outubro de 2022

Quanto vão subir as taxas de juro?

 


OPINIÃO

Quanto vão subir as taxas de juro?

 

Parece pouco provável que o BCE aumente a taxa de juro de referência muito acima dos 3%, mesmo que a taxa de inflação em 2023 supere os 5,5% previstos.

 

Ricardo Cabral

24 de Outubro de 2022, 6:40

https://www.publico.pt/2022/10/24/economia/opiniao/vao-subir-taxas-juro-2025107

 

A Reserva Federal aumentou a taxa de juro de referência – que é o seu objetivo para a taxa de juro efetiva a que os bancos dos EUA realizam empréstimos interbancários de muito curto prazo –, de 0% - 0,25% até março de 2022 para 3,0% - 3,25% no final de setembro. A Reserva Federal deverá continuar a aumentar a taxa de referência até 4,5% - 5% em 2023.

 

Como sugere o gráfico, este aumento da taxa de juro efetiva a que os bancos nos EUA realizam empréstimos interbancários, está em vias de se tornar o mais abrupto desde o início dos anos 80 e colocará essa taxa de juro nos níveis mais elevados desde meados da década de 2000.

 

 

Face aos níveis de endividamento privado e público da economia americana (383% do PIB em 2021) e da economia global (cerca de 300% do PIB), estes aumentos da taxa de juro implicam a prazo transferências muito significativas de devedores para credores, que podem resultar em muitas situações de entrada em incumprimento. Por exemplo, se a taxa de juro média aumentar 2 pontos percentuais nos EUA, a despesa com juros dos devedores aumentaria o equivalente a 7,6% do PIB de 2021 (=2%*383%) dos EUA.

 

Não obstante, essa taxa de juro é ainda significativamente inferior à taxa de inflação anual nos EUA que, nos doze meses concluídos em setembro, foi de 7,9%, a taxa de inflação mais elevada desde agosto de 1982.

 

Note-se que, em agosto de 1982, a taxa de inflação anual foi igualmente de 7,9%, mas a taxa de juro efetiva a que os bancos realizavam empréstimos interbancários era de 10,1%.

 

Assim, se a taxa de inflação se mantiver aos níveis atuais em 2023 e a taxa de juro de referência subir para os 4,5%-5% previstos, as taxas de juro reais seriam negativas.

 

Críticas à política monetária da Reserva Federal e do BCE

O primeiro ponto a destacar é que, apesar da subida da taxa de juro pela Reserva Federal ser apoiada por vários académicos “mainstream” que aconselham a Reserva Federal a “manter o rumo” ou mesmo a aumentar a taxa de juro de referência de forma ainda mais rápida, um número crescente de analistas e de instituições defende que a Reserva Federal não deve aumentar demasiado, nem tão rapidamente, a sua taxa de juro de referência, sob o risco de causar uma recessão nos EUA e a nível global.

 

Embora outros bancos centrais do mundo ocidental não critiquem a Reserva Federal, a depreciação das respetivas moedas (e.g., iene, euro e libra) face ao dólar torna a respetiva política monetária mais difícil, nomeadamente por via do aumento da inflação importada. Assim, é provável que esses bancos centrais (bem como bancos centrais de países em desenvolvimento) vejam com preocupação um aumento rápido da taxa de juro de referência pela Reserva Federal e sejam favoráveis a um abrandamento do ritmo de subida das taxas de juro nos EUA.

 

No Financial Times, Martin Sandbu chama a atenção para um ponto já referido nesta coluna, que o atual modelo macroeconómico dominante dos novos keynesianos, que serve de fundamento intelectual às políticas monetárias dos bancos centrais independentes do mundo desenvolvido, nasceu na sequência da estagflação dos anos 70 e da política monetária então implementada pelo Presidente da Reserva Federal, Paul Volcker. Esse modelo macroeconómico enfrenta o seu mais sério teste desde que se tornou dominante nos anos 80. Sandbu cita as declarações de Antti Ronkai da Universidade de Helsínquia, anteriormente citadas num tweet da primeira-ministra da Finlândia: “Há algo seriamente errado com as ideias dominantes de política monetária quando os bancos centrais, para proteger a sua credibilidade, [têm de provocar] uma recessão das [respetivas] economias”.

 

Note-se que os economistas académicos pós-keynesianos – que criticam o modelo macroeconómico dominante dos novos keynesianos – há muito argumentam que a inflação não se controla com políticas de gestão da procura agregada restritivas.

 

Sandbu também cita Emmanuel Macron, que igualmente critica a tese que é necessário “esmagar a procura europeia para melhor conter a inflação”. Sandbu nota que foi a estagflação dos anos 70 que conduziu ao novo regime macroeconómico (e à nova política monetária) dominante no presente, mas que é perigoso (e contraproducente) criticar e evitar o debate sobre se esse regime monetário é adequado face aos objetivos da política macroeconómica da atualidade. Defende que, 40 anos após a introdução desse novo regime e consenso, é necessário reavaliar intelectual- e politicamente os resultados do mesmo, como também já aqui se defendeu.

 

Aumentos da taxa de juro da Reserva Federal já causam estragos

Benjamin Dunn, um analista citado pela CNBC, defende que as alterações bruscas e significativas na taxa de juro da Reserva Federal estão já a “partir coisas” nos mercados, observando-se volatilidade sem precedentes em algumas variáveis financeiras, que podem ter efeitos nefastos na economia.

 

Diversos analistas argumentam que, à imagem do que ocorreu com os fundos de pensão britânicos, o mercado de títulos de dívida pública dos EUA e de outras economias avançadas pode sofrer disrupções, obrigando investidores institucionais a liquidar dívida pública para obter liquidez e, nesse processo, contagiar os respetivos mercados de dívida pública causando um aumento drástico das taxas de juro da dívida com maiores maturidades. De notar, como refere Paulo Coimbra no blog Ladrões de Bicicletas, citando o Financial Times, que o fundo de pensões holandês APG, com 558 mil milhões de euros de ativos sob gestão, e a Associação Internacional de Swaps e Derivados, pretendem que o BCE seja emprestador de última instância também para o sector segurador, aceitando emprestar liquidez contra a entrega de dívida pública como colateral, porque o aumento das taxas de juro está a causar quebras substanciais no valor de mercado dessa dívida pública (e do valor de mercado desses fundos) e ... no final da cadeia ... o risco recai sobre os pensionistas e os contribuintes.

 

Reserva Federal parece reconhecer limitações à política monetária

A presidente da Reserva Federal de São Francisco, Mary Daly, num sinal de que essas críticas podem vir a ter algum reflexo na condução da política monetária, defendeu na sexta-feira passada, 21 de outubro, que a política monetária da Reserva Federal irá procurar evitar que um aumento demasiado rápido da sua taxa de juro de referência cause uma recessão nos EUA e que, não sendo a altura para deixar de aumentar essa taxa de juro de forma significativa (na próxima reunião de política monetária no dia 1-2 de novembro) é altura para começar a “falar” e “planear” o processo de desaceleração da taxa de aumento da taxa de juro de referência. Isto é, pode ser que a Reserva Federal nos presenteie no início de novembro com um aumento de apenas 0,5 pontos percentuais (e não de 0,75 pontos percentuais como esperado) da sua taxa de juro de referência.

 

Bancos centrais entre a espada e a parede

Após anos de exuberância em diversos mercados financeiros e face aos elevados níveis de dívida pública e privada, aumentos drásticos da taxa de juro de referência parecem problemáticos.

 

No caso dos EUA, dificilmente a Reserva Federal pode imitar a política monetária que adotou, sob a presidência de Paul Volcker, a partir do final dos anos 70 do século passado. Em 1979, a dívida pública federal representava 32% do PIB de então. Em 2021, representava 125% do PIB. Algo análogo ocorre com a dívida do sector privado.

 

Por conseguinte, a Reserva Federal não será capaz de aumentar a taxa de juro de referência para 10%, muito menos para próximo de 20%, como ocorreu entre janeiro de 1979 e setembro de 1982.

 

Assim, se a taxa de inflação não descer, é de esperar que a Reserva Federal mantenha a taxa de juro a níveis significativamente abaixo da taxa de inflação.

 

No caso da Área do Euro, embora a taxa de juro de referência relevante do BCE apenas tenha subido, no presente, até 0,75%, já se traduziu em tensões preocupantes nos mercados de refinanciamento com colateral (que serve de garantia de empréstimo entre instituições financeiras), nos mercados de swaps (e de derivados), nos mercados de dívida pública e em alguns mercados imobiliários.

 

Em Agosto, previa-se que a taxa de juro de referência para depósitos junto do BCE atingisse os 2,75%-3% no final de 2023, o que, a confirmar-se, deixaria indexantes como a Euribor a seis meses próxima dos 4% e a taxa de juro da dívida pública a 10 anos de Itália provavelmente em torno dos 6%. Parece, por isso, pouco provável que o BCE aumente a taxa de juro de referência muito acima dos 3%, mesmo que a taxa de inflação em 2023 supere os 5,5% previstos pelo BCE, devido aos riscos para a estabilidade financeira e macroeconómica das economias da Área do Euro.

Sem comentários: