OPINIÃO
Santos Silva às costas de André Ventura, a caminho de Belém
É mentira, e uma mentira descabelada, que Santos Silva
tenha estado sempre “empenhado na defesa da democracia e da liberdade”. É
ridículo armar-se em Navalny quem tem perfil de Lavrov.
João Miguel
Tavares
23 de Julho de
2022, 0:00
O guião está
escrito desde o primeiro dia. Há quatro meses, o presidente da Assembleia da
República escolheu para tema do seu discurso inaugural a diferença entre
patriotismo (excelente) e nacionalismo (péssimo), e logo ali se percebeu ao que
vinha. Chamei-lhe na altura um “casamento feito no céu”, com quatro anos de
conflitos assegurados entre a bancada do Chega e Augusto Santos Silva, com
imensas vantagens para ambos e nenhuma para a democracia portuguesa.
André Ventura,
grande adepto da estratégia “matar pai e mãe para poder dizer que é órfão”,
garante dessa forma o tempo de antena diário nos telejornais, o que na sua
cabeça é equivalente a transformar o Chega no “verdadeiro partido da oposição”
em Portugal. E Santos Silva, como o sapo da fábula, vai inchando em prestígio,
em peso e em pose, a ver se cresce o suficiente para que em 2026 o deixem entrar
no Palácio de Belém. “Ventura rosna” – permitam-me mais uma autocitação – “e
Santos Silva aparece com o açaime de grande homem de Estado, garante da
decência da pátria e das suas instituições”.
Parece um
divórcio, eu sei, porque há gritaria e virar de costas – mas é mesmo um
casamento. Aconteceu de novo esta semana, num crescendo de descompostura e
aparato: 1) Ventura libertou mais uma parvoíce sobre imigrantes; 2) Santos
Silva celebrou do púlpito o “país aberto, inclusivo e respeitador dos outros”;
3) Ventura acusou-o de falta de isenção e de confundir o seu lugar com o de
Eurico Brilhante Dias; 4) Santos Silva declarou não se impressionar “nem com
pateadas nem com o volume de som”; 5) a bancada parlamentar do Chega abandonou
o hemiciclo; 6) Santos Silva proclamou (só senti falta da música do filme
Gladiador, como em 2005) que está “há muitos, mas mesmo muitos anos empenhado
na defesa da democracia e da liberdade” e assim continuará até ao fim dos seus
dias.
É o Chega, e apenas o Chega, que pode permitir a Santos
Silva transformar a presidência da Assembleia da República num cargo
politicamente relevante
O resultado está
à vista. Muita conversa sobre a saída do Chega e vários artigos nos jornais
acerca da putativa candidatura de Augusto Santos Silva a Belém em 2026. O
próprio já nem esconde. Em entrevista à RTP2, no dia dos acontecimentos,
afirmou não rejeitar a ideia dessa candidatura, mas que falar sobre ela neste
momento seria “desrespeitoso” para com o actual Presidente da República. “Cada
coisa na sua vez”, acrescentou ele. “Lá para 2025 começaremos a falar de
presidenciais.” Quem é como quem diz: obviamente, sou candidato. (A não ser,
claro, que António Guterres, Deus o guarde na ONU, decida voltar para Portugal.)
Portanto, sendo
estas as ambições de Santos Silva e sendo a sua popularidade ainda muito
limitada (7,8% de intenções de voto, segundo sondagem recente, ao nível de
Mariana Mortágua), já todos sabemos o que nos espera até 2026. É o Chega, e apenas
o Chega, que pode permitir a Santos Silva transformar a presidência da
Assembleia da República num cargo politicamente relevante, coisa de que ele
precisa como de pão para a boca para cumprir os seus objectivos. Repetir dez
mil vezes “tem a palavra o senhor deputado” é manifestamente insuficiente.
Uma última nota,
que enquanto não for tomado pelo Alzheimer nunca me esquecerei de fazer. É
mentira, e uma mentira descabelada, que Santos Silva tenha estado sempre
“empenhado na defesa da democracia e da liberdade”. Ele foi um dos principais
defensores e obreiros do governo que mais ameaçou a nossa liberdade e a
estrutura do regime desde o início da democracia. É ridículo armar-se em
Navalny quem tem perfil de Lavrov.
O autor é
colunista do PÚBLICO
Sem comentários:
Enviar um comentário