segunda-feira, 1 de agosto de 2022

Santos Silva às costas de André Ventura, a caminho de Belém

 



OPINIÃO

Santos Silva às costas de André Ventura, a caminho de Belém

 

É mentira, e uma mentira descabelada, que Santos Silva tenha estado sempre “empenhado na defesa da democracia e da liberdade”. É ridículo armar-se em Navalny quem tem perfil de Lavrov.

 

João Miguel Tavares

23 de Julho de 2022, 0:00

https://www.publico.pt/2022/07/23/opiniao/opiniao/santos-silva-costas-andre-ventura-caminho-belem-2014631

 

O guião está escrito desde o primeiro dia. Há quatro meses, o presidente da Assembleia da República escolheu para tema do seu discurso inaugural a diferença entre patriotismo (excelente) e nacionalismo (péssimo), e logo ali se percebeu ao que vinha. Chamei-lhe na altura um “casamento feito no céu”, com quatro anos de conflitos assegurados entre a bancada do Chega e Augusto Santos Silva, com imensas vantagens para ambos e nenhuma para a democracia portuguesa.

 

André Ventura, grande adepto da estratégia “matar pai e mãe para poder dizer que é órfão”, garante dessa forma o tempo de antena diário nos telejornais, o que na sua cabeça é equivalente a transformar o Chega no “verdadeiro partido da oposição” em Portugal. E Santos Silva, como o sapo da fábula, vai inchando em prestígio, em peso e em pose, a ver se cresce o suficiente para que em 2026 o deixem entrar no Palácio de Belém. “Ventura rosna” – permitam-me mais uma autocitação – “e Santos Silva aparece com o açaime de grande homem de Estado, garante da decência da pátria e das suas instituições”.

 

Parece um divórcio, eu sei, porque há gritaria e virar de costas – mas é mesmo um casamento. Aconteceu de novo esta semana, num crescendo de descompostura e aparato: 1) Ventura libertou mais uma parvoíce sobre imigrantes; 2) Santos Silva celebrou do púlpito o “país aberto, inclusivo e respeitador dos outros”; 3) Ventura acusou-o de falta de isenção e de confundir o seu lugar com o de Eurico Brilhante Dias; 4) Santos Silva declarou não se impressionar “nem com pateadas nem com o volume de som”; 5) a bancada parlamentar do Chega abandonou o hemiciclo; 6) Santos Silva proclamou (só senti falta da música do filme Gladiador, como em 2005) que está “há muitos, mas mesmo muitos anos empenhado na defesa da democracia e da liberdade” e assim continuará até ao fim dos seus dias.

 

É o Chega, e apenas o Chega, que pode permitir a Santos Silva transformar a presidência da Assembleia da República num cargo politicamente relevante

 

O resultado está à vista. Muita conversa sobre a saída do Chega e vários artigos nos jornais acerca da putativa candidatura de Augusto Santos Silva a Belém em 2026. O próprio já nem esconde. Em entrevista à RTP2, no dia dos acontecimentos, afirmou não rejeitar a ideia dessa candidatura, mas que falar sobre ela neste momento seria “desrespeitoso” para com o actual Presidente da República. “Cada coisa na sua vez”, acrescentou ele. “Lá para 2025 começaremos a falar de presidenciais.” Quem é como quem diz: obviamente, sou candidato. (A não ser, claro, que António Guterres, Deus o guarde na ONU, decida voltar para Portugal.)

 

Portanto, sendo estas as ambições de Santos Silva e sendo a sua popularidade ainda muito limitada (7,8% de intenções de voto, segundo sondagem recente, ao nível de Mariana Mortágua), já todos sabemos o que nos espera até 2026. É o Chega, e apenas o Chega, que pode permitir a Santos Silva transformar a presidência da Assembleia da República num cargo politicamente relevante, coisa de que ele precisa como de pão para a boca para cumprir os seus objectivos. Repetir dez mil vezes “tem a palavra o senhor deputado” é manifestamente insuficiente.

 

Uma última nota, que enquanto não for tomado pelo Alzheimer nunca me esquecerei de fazer. É mentira, e uma mentira descabelada, que Santos Silva tenha estado sempre “empenhado na defesa da democracia e da liberdade”. Ele foi um dos principais defensores e obreiros do governo que mais ameaçou a nossa liberdade e a estrutura do regime desde o início da democracia. É ridículo armar-se em Navalny quem tem perfil de Lavrov.

 

O autor é colunista do PÚBLICO

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