OPINIÃO
Ainda as duas esquerdas
A esquerda é actualmente a mais importante força de
estabilidade e de conservação política. Se pudesse, tudo ficava como está. Mas
sabe que, mantendo-se imóvel, fica dependente e pode perder os trunfos actuais.
Por isso vamos, quase inevitavelmente, assistir a grandes movimentos políticos
e doutrinários no universo esquerdista.
António Barreto
27 de Fevereiro
de 2021, 10:44
https://www.publico.pt/2021/02/27/opiniao/opiniao/duas-esquerdas-1952354
Por vezes, as
grandes crises são propícias às transformações. A actual pandemia é disso um
bom exemplo. Aliás, mesmo antes de esta última se ter revelado, já havia sinais
de que se preparava uma reconfiguração da política portuguesa. Havia sinais
inconfundíveis. O declínio assustador da direita democrática e da democracia
cristã. A decadência do centro social-democrata. A frenética ascensão da
extrema-direita e do Chega. O imobilismo comunista. A deriva da esquerda
radical não comunista. O desenvolvimento das tendências e das “sensibilidades”
socialistas. E a proliferação de pequenos partidos.
O protagonismo do
Presidente da República acrescentou uma nota consistente e um peso específico
próprio com o qual teremos de contar durante os próximos anos. Na sociedade em
geral, no mundo sindical, nos meios católicos, nos ambientes maçónicos, nos
círculos profissionais e no universo intelectual, surgem fenómenos inéditos que
não desmentem a descrença política e sugerem novas afirmações políticas.
Por enquanto, em
Portugal, a pandemia tem favorecido o que está estabelecido, o statu quo e o
poder do dia. E tem beneficiado os socialistas. Não se sabe por quanto tempo.
Por isso, com a necessidade de aprovar três novos orçamentos, com a aproximação
das eleições autárquicas e já com as legislativas (antecipadas ou não) no
horizonte, a urgência de revisão política é total. Tanto nas esquerdas como nas
direitas.
Estranhamente ou
não, a esquerda é actualmente a mais importante força de estabilidade e de
conservação política. Se pudesse, tudo ficava como está. Aos outros, na
oposição, nas margens e nas extremas, compete o mais difícil: reconquistar,
reorganizar, renovar e consolidar. Mas a esquerda sabe que, mantendo-se imóvel,
fica dependente e pode perder os trunfos actuais. Por isso vamos, quase
inevitavelmente, assistir a grandes movimentos políticos e doutrinários no
universo esquerdista. E aqui surge, uma vez mais, a necessidade de clarificar
as semelhanças e as diferenças entre as duas esquerdas.
Há muitos anos,
mais de um século, as divisões dentro das esquerdas são conhecidas. Martov e
Kerenski, por um lado, Lenine e Trotski ou Estaline, por outro, representam boa
parte dessas diferenças. Que atingiram estados elevados de violência, como é
sabido: o assassinato de milhares de socialistas pelos bolchevistas constitui
ainda hoje inesquecível marco.
Antes e depois
deles, na Rússia e alhures, as discussões dentro das esquerdas nunca foram
suaves. Karl Kautsky e Eduard Berenstein protagonizaram visões moderadas do
socialismo. Tal como Ebert, na Alemanha, Leon Blum, em França, ou os
trabalhistas ingleses Attlee, Bevin e Bevan. Enquanto os comunistas desses
países se constituíram depositários do poder soviético e da tradição
autoritária e despótica da esquerda.
Em todas as
esquerdas europeias, passando pelas alemãs, as suecas, as italianas e as
espanholas, encontramos fenómenos semelhantes: desde a segunda metade do século
XIX e até há bem pouco tempo, as separações dentro das esquerdas foram sempre
um capítulo fundamental, muitas vezes violento, da história política europeia.
Por exemplo, os confrontos entre as duas esquerdas, em plena guerra civil
espanhola, ficaram para a história. Mais perto de nós e sem o carácter
sangrento de outras paragens, o confronto entre socialistas e comunistas, ou
entre Soares e Cunhal, transformou-se no mais sério contributo dos portugueses
para a história política das esquerdas na Europa.
A associação do
PS às esquerdas radicais (PCP e BE), no Parlamento e no governo, já criou uma
situação inédita que dura há quase seis anos. Na crise actual, já se percebeu
que as coisas não ficarão como estão ou como têm sido. E o que está em causa é
muito importante. Juntam-se finalmente as esquerdas democráticas e as não
democráticas? Separam-se de vez? A esquerda democrática consegue atrair e
digerir as esquerdas não democráticas? Ou estas últimas obtêm a vitória
histórica de mudar e dominar os socialistas democráticos?
Os socialistas
têm o benefício das opiniões e dos votos. Por enquanto. Fortemente
identificados com a Europa e a democracia (e a Aliança Atlântica), mostram
vantagem. Mas a sua vulnerabilidade diante dos negócios, dos grandes grupos
económicos, da corrupção e do jacobinismo abre-lhe um flanco mais fraco. Tal
como a sua dificuldade em combater a desigualdade e em alicerçar uma aliança
durável com o mundo do trabalho. Dependentes das outras esquerdas, os
socialistas, para ganhar, podem ter de vender alma e doutrina.
Na sua melhor
tradição, os socialistas opõem-se aos métodos revolucionários, ao terrorismo, à
violência, à colectivização, à destruição da iniciativa privada, à opressão da
Igreja, ao monopólio do Estado na educação e na saúde, à aniquilação das Forças
Armadas e a formas de governo não democráticas e não parlamentares. Mas também
sabem que nas esquerdas há muito fortes tendências exactamente contrárias, com
especial inclinação para destruir o mercado livre e a iniciativa privada, com
um estranho afecto por formas “populares” de governo, com a obsessão do
monopólio do Estado e com uma absoluta aversão pelo investimento privado. Estão
ainda conscientes de que as esquerdas radicais têm uma concepção elástica dos
direitos fundamentais, sobretudo dos direitos cívicos e políticos; assim como
têm convicções condescendentes sobre a guerra civil e a luta das classes, a
violência e o terrorismo (se este for de esquerda, das minorias, de tudo quanto
é anti-capitalista ou anti-americano…) contrárias às tradições socialistas.
Como é sabido que nas esquerdas vegeta uma grande complacência, quando não
admiração, por formas de governo muito especiais, como sejam as do despotismo
tropical latino-americano, as das ditaduras militares africanas e asiáticas, as
das burocracias parasitárias africanas e árabes, as dos movimentos radicais
muçulmanos e as dos separatistas europeus violentos.
Quando, há seis
anos, António Costa decretou “o fim do tabu”, isto é, dispôs-se a governar em
aliança com as esquerdas radicais, iniciou-se uma nova e interessante fase na
política nacional: a colaboração entre as duas esquerdas. Na Europa, com o
desaparecimento dos partidos comunistas e aparentados, já não se falava disso.
Mas, em Portugal, quase sempre atrasado, iniciou-se essa colaboração. Por
necessidade, claro, mais do que por convicção. Mas, sem esclarecimento,
trata-se de colaboração passageira. Sem objectivos. Sem horizonte. Quer isto
dizer que a hora das escolhas está a chegar.
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