OPINIÃO
A Praça do Império (da demagogia)
A abertura da Caixa de Pandora pela demagogia de
iconoclastas e órfãos de símbolos poderá causar consequências imprevisíveis.
Depois da aceitação da vandalização de estátuas por uns, há agora responsáveis
políticos a propor a demolição do Padrão dos Descobrimentos. Em Democracia, a
Demagogia, por mais delirante que seja, apenas deverá ser combatida com Cultura
e Educação.
André Varela
Remígio
26 de Fevereiro
de 2021, 17:15
https://www.publico.pt/2021/02/26/opiniao/opiniao/praca-imperio-demagogia-1952156
Para entender
minimamente as obras projectadas para a Praça do Império, em Lisboa, e a
contestação que as envolve, importa resumir primeiramente o percurso histórico
deste espaço. A Praça do Império foi projectada numa linguagem nacionalista
pelo Arquitecto Cottinelli Telmo (1897-1948) e construída em 1940 em frente ao
Mosteiro de Santa Maria de Belém (vulgo Mosteiro dos Jerónimos), por ocasião da
Exposição do Mundo Português. No âmbito da XI Exposição Nacional de
Floricultura, ocorrida em 1961, foram acrescentados brasões (com as armas dos
distritos e das então províncias ultramarinas) e símbolos nacionais (esfera
armilar, insígnias das antigas Ordens Militares de Nosso Senhor Jesus Cristo,
de São Bento de Avis e de Sant’Iago da Espada e outros), executados com flores
ornamentais e sebes, aos canteiros que rodeiam a fonte luminosa que centra a
praça. Estes brasões e símbolos florais foram conservados ao longo de anos,
tendo depois sido deixados ao abandono. Enquanto os símbolos ainda mantêm
alguma leitura, os brasões já não tanto. Fundamentada umas vezes por questões
políticas e outras por razões económicas, a Câmara Municipal de Lisboa pretende
remover os brasões e símbolos da praça, tendo originado uma acesa contestação
pública e muita demagogia desde o início do processo (2016). Num concurso de
ideias, o projecto da Arquitecta Paisagista Cristina Castel-Branco foi o
vencedor.
Contudo, importa
abordar esta questão em termos técnicos, o que não tem acontecido. A primeira
questão basilar a discutir sobre este tema é a possibilidade de um jardim
integrar o Património Cultural. Segundo a Carta de Florença – Sobre a
Salvaguarda de Jardins Históricos (ICOMOS, 1982), que devia ser do conhecimento
de todos os arquitectos paisagistas, “um jardim histórico é uma composição
arquitectónica e hortícola com interesse para o público pelo seu ponto de vista
histórico ou artístico. Como tal, deve ser considerado como sendo um monumento”
(Artigo 1.º). Não restam dúvidas. O jardim da Praça do Império pode ser
considerado um monumento de pleno direito, devendo mesmo ser encarado
exclusivamente como tal. Na verdade, os valores reconhecidos num monumento
arquitectónico também podem existir num jardim histórico, como se verifica
neste caso. Apesar de em Portugal não se entenderem na generalidade os jardins
enquanto parte integrante do Património Cultural e, em consequência, não se
valorizar a coerência do conjunto, isso já se verifica noutros países europeus
há muito tempo e a larga escala.
Outra questão
basilar é a filosofia da intervenção a realizar-se, isto é, se se deve seguir
uma linha restaurativa, recuando ao projecto de Cottinelli Telmo (1940), ou uma
linha conservativa, assumindo os brasões e símbolos acrescentados em 1961.
Depois das
intervenções restaurativas do século XIX (e algumas do XX), inspiradas em
Violet-Le-Duc (1814-1879), terem originado uma enorme destruição patrimonial
por toda a Europa e a construção de falsos históricos, optou-se
internacionalmente por uma linha conservativa, muito mais respeitadora do bem
cultural como documento histórico. Nasceu assim a Carta de Atenas – Sobre o
Restauro de Monumentos (1931), actualizada depois pela Carta de Veneza [Sobre a
Conservação e Restauro de Monumentos e Sítios (ICOMOS, 1964)]. A Carta de
Florença explicita claramente que “enquanto monumento, o jardim histórico deve
ser salvaguardado segundo o espírito da Carta de Veneza” (artigo 3.º).
Esta carta refere
no seu início que “a conservação e o restauro dos monumentos visam
salvaguardar, quer a obra de arte, quer o testemunho histórico” (artigo 3.º).
Mais à frente, desenvolve que “a unidade de estilo não deve constituir um
objectivo a alcançar no decurso de um restauro. Pelo contrário, devem ser
respeitados os contributos válidos das diferentes fases de construção. Quando
um edifício contiver estilos diferentes, em resultado de diversas campanhas de
obras ao longo do tempo, não se justifica a remoção de partes do edifício (…)”
(artigo 11.º). A própria Carta de Florença resume muito bem este ponto,
referindo que “a intervenção de recuperação [de um jardim] deve respeitar a
evolução do jardim em questão. Em princípio, não se deve privilegiar uma época
em prejuízo das demais (…)” (Artigo 16.º).
Aplicando as
directrizes de ambas as cartas no presente caso, os brasões e símbolos do
jardim da Praça do Império devem ser conservados, uma vez que constituem um
episódio histórico do jardim da Praça do Império. Se as cartas patrimoniais
existem e são reconhecidas internacionalmente, devem ser rigorosamente seguidas
em todos os casos e não apenas quando convém. A função dos técnicos culturais é
precisamente abordar estes temas tecnicamente, sem cederem a tentações
políticas.
O projecto de
Cristina Castel-Branco não segue uma linha restaurativa nem conservativa, mas
sim uma inventiva. Não só desrespeita grosseiramente os princípios basilares
das cartas patrimoniais, como acrescenta elementos ferindo a coerência do
conjunto. A sua recente proposta de desenhar os brasões e símbolos nacionais na
calçada da praça é igualmente inaceitável pelas mesmas razões.
A Praça do
Império e o seu jardim devem ser conservados tal como estão, conservando o
projecto de Cottinelli Telmo (1940) e restaurando os brasões e símbolos
nacionais acrescentados em 1961. Se não houver meios para tal, há que os
encontrar.
Os monumentos são
marcos da identidade de um país e de uma história conjunta das suas gentes, não
podendo por isso ser usados como arremessos políticos circunstanciais em
guerras sem princípios e critérios.
Na verdade, as
sedes dos mais altos órgãos de soberania nacional e o espaço público estão
carregados de símbolos nacionais relacionados com um Passado com pouca
equiparação ao Presente. Num país com quase nove séculos, isso é muito natural.
Convém lembrar que o ideal nacionalista nasceu nas últimas décadas da Monarquia
Constitucional, e atravessou a 1.ª República, a Ditadura Militar e o Estado
Novo. Logo, não está exclusivamente ligado a um regime político.
Projectada pelo
Arquitecto Ventura Terra (1866-1919) e inaugurada em 1903, ainda na Monarquia
Constitucional, a Sala das Sessões da actual Assembleia da República é um
excelente exemplo disso mesmo, uma vez que ostenta exactamente os mesmos
brasões, pintados depois por Benvindo Ceia (1870-1941) em 1921, já em plena 1.ª
República. Se não há artes menores e todas elas fazem parte do Património
Cultural, não será coerente remover uns e depois fingir que os outros não
existem.
Apesar de
vivermos há cento e onze anos em República, os símbolos monárquicos pululam por
todos os cantos de Portugal e o seu significado é compreendido.
A Caixa de Pandora não tinha apenas males, mas também um
dom, a Esperança. Tenhamos esperança de que haja bom senso e a Praça do Império
seja conservada e o seu jardim restaurado segundo as Cartas Patrimoniais
A abertura da
Caixa de Pandora pela demagogia de iconoclastas e órfãos de símbolos poderá
causar consequências imprevisíveis. Depois da aceitação da vandalização de
estátuas por uns, há agora responsáveis políticos a propor a demolição do
Padrão dos Descobrimentos, construído em 1960, segundo o desenho de Cottinelli
Telmo e com esculturas de Leopoldo de Almeida (1898–1975). Em Democracia, a
Demagogia, por mais delirante que seja, apenas deverá ser combatida com Cultura
e Educação.
Apesar de estarem inseridos em zonas de
protecção de monumentos classificados, tanto a Praça do Império como o Padrão
dos Descobrimentos mereciam ter a sua própria classificação.
A Caixa de
Pandora não tinha apenas males, mas também um dom, a Esperança. Tenhamos
esperança de que haja bom senso e a Praça do Império seja conservada e o seu
jardim restaurado segundo as Cartas Patrimoniais.
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