sexta-feira, 1 de janeiro de 2021

Biden, a vacina e a reconstrução. A ordem não é arbitrária

 


ANÁLISE

Biden, a vacina e a reconstrução. A ordem não é arbitrária

 

Portugal toma conta da presidência rotativa da União a 1 de Janeiro, num momento crítico para testar a capacidade europeia de resistir à maior crise das nossas vidas. A que Europa vai presidir e em que mundo?

 

Teresa de Sousa

31 de Dezembro de 2020, 7:00

https://www.publico.pt/2020/12/31/mundo/analise/biden-vacina-reconstrucao-ordem-nao-arbitraria-1944639

 

Chega ao fim um ano que foi único na história da União Europeia, o mais difícil e mais perturbador desde a II Guerra, o que deixa mais feridas abertas no tecido humano, económico e social, o que levanta mais interrogações sobre o futuro. O calvário da pandemia ainda não terminou, mas o ano termina com a garantia de que o seu fim está à vista, graças aos extraordinários avanços da ciência e à maciça intervenção financeira dos governos.

 

O ano que começa vai ser para reconstruir a pulso o que ficou destruído. Será uma oportunidade de reconstruir diferente. A crise pandémica pôs a descoberto profundas desigualdades sociais, destruiu doutrinas, mudou a própria forma como os cidadãos olham para a sua vida e para a sua relação com os outros. Também acelerou as transformações mundiais. Nem sempre no melhor sentido.

 

A crise começou por ser uma “prova de vida” para a própria União Europeia. E a União Europeia sobreviveu. Começou mal. Deixou-se cair na tentação do “salve-se quem puder”, mas conseguiu endireitar-se, mais depressa do que as melhores previsões e encontrar um sentido comum. Ficou o sabor amargo da saída de um dos seus três “grandes” que ainda merecem o título de potências (o Reino Unido), deixando um vazio em múltiplos domínios.

 

Internamente, a Europa joga a sua coesão política na recuperação, que não um mar de rosas. As vacinas vão levar tempo até atingirem a imunidade de grupo. Os apoios financeiros vão levar tempo a chegar. Na sua “prova de vida” face ao mundo, a eleição de Joe Biden nos Estados Unidos abre uma imensa oportunidade. Mas ainda falta provar que a Europa vai conseguir aproveitá-la. 

 

A vacinação e a recuperação vão dominar a agenda europeia nos seis meses da presidência portuguesa, que começa dia 1 de Janeiro. Será “um período de transição para um futuro diferente”, tal como a entende o primeiro-ministro português, António Costa.

 

Com orientações bem definidas: a transição verde, a transição digital e uma preocupação social que deverá estar “na base de tudo”. “Não se pode transformar sem garantir que ninguém fica para trás” - incluindo aqueles, cujas qualificações os afastam dos empregos do futuro. A dimensão social será decisiva para reconquistar a confiança dos cidadãos na democracia e na Europa e combater os populismos. É um longo processo, que terá de atravessar um campo ainda minado de falências, de desemprego e de privações.

 

Também começa em breve uma outra “transição” cuja relevância ninguém nega. Em Berlim, inicia-se em Março o processo de escolha da sucessão de Angela Merkel. Está tudo em aberto. A Alemanha levará algum tempo a voltar a estabilizar e isso terá repercussões para a Europa. O que quer dizer que, nos próximos tempos, a liderança europeia vai pender para o lado da França.

 

Julho, o momento da viragem

As decisões históricas do Conselho Europeu de Julho passado, que marcou o início da presidência alemã, não nasceram do nada. Deveram-se aos esforços conjugados do Presidente francês, Emmanuel Macron, da presidente da Comissão Ursula von der Leyen e de alguns líderes (como o português) que se empenharam num trabalho insano para encontrar um terreno comum a partir de divergências que pareciam insanáveis.

 

Macron convenceu a chanceler alemã, Angela Merkel, de que a Europa se arriscava a morrer dividida e sem glória, se não fosse capaz de travar os efeitos devastadores da pandemia, sobretudo nas suas economias mais vulneráveis. Quando, no dia 17 de Maio, a chanceler alemã e o Presidente francês surgiram juntos por videoconferência para propor uma ajuda de 500 mil milhões de euros, a fundo perdido, para a recuperação económica, começou a virar-se uma página.

 

“Este gesto mudou a posição da Alemanha na Europa – deixou de estar no Norte para passar a estar no Centro, nesta questão fundamental”, diz Luuk van Middellar, historiador holandês, citado pelo Financial Times.

 

A partir daí o caminho estava aberto para as decisões do Conselho Europeu que, apesar da feroz oposição inicial dos países que se mantinham no “Norte político”, conseguiu ir ainda mais longe, permitindo à Comissão endividar-se nos mercados financeiros para financiar o novo Fundo de Recuperação e Resiliência. Foi uma batalha de cinco dias. Os “frugais” ainda quiseram colocar em cima da mesa velha a ideia do “risco moral”, atribuindo aos países do Sul a maior devastação sofrida com a primeira vaga da pandemia.

 

A segunda vaga, muito mais violenta, provou que não tinham razão. Atingiu todos por igual - nos sistemas de saúde em ruptura (incluindo na Alemanha, na Holanda ou na Suécia), na violência dos óbitos, na paralisação da economia. Acabaram por ceder, depois de pequenos reequilíbrios e algumas recompensas por via do Orçamento Plurianual para 2021-2027, aprovado em conjunto – 1,8 biliões de euros no total. Uma verba nunca antes vista, que selou o destino da União Europeia perante a maior crise da sua história.

 

“Este Conselho Europeu é um momento semelhante ao do Conselho Europeu de Hanôver, em 1988”, diz Brigid Laffan, directora do Centro Robert Schuman de Florença. Em Hanôver, os líderes europeus lançaram o Mercado Único e criaram a Comissão Delors para começar a desenhar o caminho para a moeda única europeia. “Foi um avanço histórico na integração europeia – potencialmente, o maior desde o início do caminho para o euro, há 30 anos”, escreve Gideon Rachman no Financial Times.

 

Regressando a Middellar, “a Primavera e o Verão de 2020 foram momentos de ‘solidão geopolítica’, com a China a prosseguir a sua ‘diplomacia das máscaras’ e a implosão da resposta americana ao coronavírus.” Este sentimento de “estarem nisto sozinhos” levou os países europeus a concentrarem-se naquilo que queriam manter em comum.

 

O acordo de Julho foi finalmente aprovado no Conselho Europeu de Dezembro, depois de um braço-de-ferro com os governos da Hungria e da Polónia, que resistiram até poderem à cláusula que condiciona o acesso aos fundos ao respeito pelo Estado de Direito. A questão de fundo não ficou resolvida e não sairá da agenda europeia tão depressa. As derivas iliberais e autoritárias de qualquer Estado-membro não são compatíveis com a pertença à União Europeia, porque violam os seus princípios fundadores, sem os quais a sua natureza mudaria irremediavelmente. Vai ser preciso mais cedo do que tarde encarar a questão de frente. A boa notícia é que os governos de Budapeste e de Varsóvia perderam o seu grande aliado americano. A sua vida será a partir de agora mais difícil.

 

A última oportunidade para a convergência?

Há ainda uma segunda interpretação para esta viragem estratégica da União, à qual vale a pena prestar atenção. Os “frugais” não abandonaram as suas reticências. Continuam a insistir que as soluções encontradas para responder à crise são “temporárias”. Torná-las definitivas está em boa medida nas mãos dos países do Sul. Os seus Planos de Recuperação nacionais têm de ser consistentes e credíveis e a sua aplicação eficaz. Os financiamentos que vão receber são enormes, mas são também, muito provavelmente, a última oportunidade para aceleraram o caminho de convergência com o Norte.

 

A presidência portuguesa será um duplo teste: acompanhar a grande operação da vacina e o processo de aprovação dos planos nacionais. Portugal tem de dar o exemplo nas duas dimensões.

 

“O que é a “autonomia estratégica”?

O debate sobre a “autonomia estratégica” manter-se-á no topo da agenda. Quatro anos de Donald Trump somados à crise pandémica tornaram-no incontornável. O que significa exactamente, ainda varia bastante conforme o “utilizador”. Pode a Europa ser autónoma fora do quadro transatlântico? Pode a Europa ser autónoma face à emergência de duas grandes potências autocráticas que olham para ela como o “campo de batalha” do seu jogo de poder com os Estados Unidos? Pode a Europa continuar a “ter o bolo e comê-lo”, beneficiando sem custos da protecção americana? Há ainda respostas diferentes entre os aliados europeus.

 

Economicamente, a pandemia pôs em evidência a excessiva dependência da China em sectores vitais como medicamentos ou materiais de protecção. A diversificação e mesmo a relocalização de algumas destas cadeias de valor foi outra das lições aprendidas.

 

Portugal quer deixar a sua marca neste debate. Prefere uma Europa que continue a ser aberta ao mundo e que desenvolva a sua autonomia no quadro da relação transatlântica. Receia que a ideia subjacente de autonomia económica (a França prefere o termo “soberania”) se traduza numa política industrial que privilegie a promoção de “gigantes económicos” europeus para desafiar os “gigantes económicos” americanos e chineses, que beneficiaria sobretudo as grandes economias e as mais fortes.

 

Prefere a diversificação das cadeias de valor ao proteccionismo. Daí a importância que atribui à cimeira com a Índia, prevista para Maio, no Porto. Há um vasto campo para a cooperação económica e tecnológica com o outro gigante asiático que é uma democracia. Mas há também a oportunidade de contrabalançar o peso da China na região do Indo-Pacífico – um interesse que pode ser comum às duas partes e que vai ao encontro do interesse americano.

 

Na gestão da agenda externa, o governo tem uma vantagem: Portugal é simultaneamente europeísta e atlantista.

 

Biden virá à Europa. Será bem-recebido?

Joe Biden toma posse como o 46.º Presidente dos Estados Unidos no dia 20 de Janeiro. Tem uma pesada agenda doméstica para consertar o que Trump destruiu. A relação transatlântica regressará à normalidade que se espera entre aliados permanentes. Os líderes europeus aprovaram na última cimeira uma proposta da Comissão para o relançamento da aliança. Haverá provavelmente durante os primeiros seis meses uma visita de Biden à Europa, seja por causa da NATO, seja para a cimeira do G7 em Junho, que incluirá um encontro com os líderes da União em Bruxelas.

 

A China estará no centro de uma nova agenda transatlântica porque representa o maior desafio estratégico que os Estados Unidos enfrentam. Bruxelas propôs a abertura de um novo “diálogo sobre a China”, que permitirá “criar os mecanismos para defender os interesses comuns e gerir as diferenças”. Nada disto faria supor que a presidência alemã quisesse concluir rapidamente com a China um acordo sobre investimento a menos de um mês de Biden entrar em funções.

 

O interesse de Pequim é óbvio, dispondo-se a fazer cedências que levou sete anos a regatear. O acordo ainda levanta muitas dúvidas em matéria de proibição do “trabalho forçado” (como o que a China pratica com a minoria uigure de Xinjiang). Sucedem-se as prisões em Hong Kong. A equipa de Biden fez saber publicamente que teria preferido uma coordenação prévia. “Um tal acordo, quando se abre uma nova oportunidade para a relação transatlântica e no preciso momento da tomada de posse de Biden, só poderia ser um sinal errado”, escreveu no PÚBLICO Nuno Severiano Teixeira.

 

A Europa terá um dia de saber onde quer estar. A tentação da “terceira força” não a levará muito longe. Sozinha, não tem força - nem económica, nem miliar, nem tecnológica – para competir ao mesmo nível.

 

As armadilhas do futuro

“As grandes crises têm grandes consequências, habitualmente imprevisíveis”, lembra Francis Fukuyama no seu ensaio sobre A pandemia e a ordem política, publicado na Foreign Affairs. Foi assim na Grande Depressão, que levou à ascensão do fascismo na Europa, mas também ao New Deal, permitindo à América viver nas décadas seguintes um dos períodos mais extraordinários da sua história. Foi assim com a crise financeira de 2008 e a Grande Recessão, com a ascensão dos populismos nos dois lados do Atlântico. É assim agora, numa crise que atingiu toda a humanidade, que se abateu com particular violência nos países mais ricos do planeta, que provocou uma “grande paralisia” traduzida numa queda do PIB nunca antes registada a não ser em tempos de guerra. Que desgastou quase até ao limite o prestígio da América. A Europa vê-se rodeada de instabilidade e de conflitos por todos os lados.

 

As suas consequências a mais longo prazo são ainda imprevisíveis. 

Sem comentários: