ANÁLISE
Biden, a vacina e a reconstrução. A ordem não é
arbitrária
Portugal toma conta da presidência rotativa da União a 1
de Janeiro, num momento crítico para testar a capacidade europeia de resistir à
maior crise das nossas vidas. A que Europa vai presidir e em que mundo?
Teresa de Sousa
31 de Dezembro de
2020, 7:00
Chega ao fim um
ano que foi único na história da União Europeia, o mais difícil e mais
perturbador desde a II Guerra, o que deixa mais feridas abertas no tecido
humano, económico e social, o que levanta mais interrogações sobre o futuro. O
calvário da pandemia ainda não terminou, mas o ano termina com a garantia de
que o seu fim está à vista, graças aos extraordinários avanços da ciência e à
maciça intervenção financeira dos governos.
O ano que começa
vai ser para reconstruir a pulso o que ficou destruído. Será uma oportunidade
de reconstruir diferente. A crise pandémica pôs a descoberto profundas
desigualdades sociais, destruiu doutrinas, mudou a própria forma como os
cidadãos olham para a sua vida e para a sua relação com os outros. Também
acelerou as transformações mundiais. Nem sempre no melhor sentido.
A crise começou
por ser uma “prova de vida” para a própria União Europeia. E a União Europeia
sobreviveu. Começou mal. Deixou-se cair na tentação do “salve-se quem puder”,
mas conseguiu endireitar-se, mais depressa do que as melhores previsões e
encontrar um sentido comum. Ficou o sabor amargo da saída de um dos seus três
“grandes” que ainda merecem o título de potências (o Reino Unido), deixando um
vazio em múltiplos domínios.
Internamente, a
Europa joga a sua coesão política na recuperação, que não um mar de rosas. As
vacinas vão levar tempo até atingirem a imunidade de grupo. Os apoios
financeiros vão levar tempo a chegar. Na sua “prova de vida” face ao mundo, a
eleição de Joe Biden nos Estados Unidos abre uma imensa oportunidade. Mas ainda
falta provar que a Europa vai conseguir aproveitá-la.
A vacinação e a
recuperação vão dominar a agenda europeia nos seis meses da presidência
portuguesa, que começa dia 1 de Janeiro. Será “um período de transição para um
futuro diferente”, tal como a entende o primeiro-ministro português, António
Costa.
Com orientações
bem definidas: a transição verde, a transição digital e uma preocupação social
que deverá estar “na base de tudo”. “Não se pode transformar sem garantir que
ninguém fica para trás” - incluindo aqueles, cujas qualificações os afastam dos
empregos do futuro. A dimensão social será decisiva para reconquistar a
confiança dos cidadãos na democracia e na Europa e combater os populismos. É um
longo processo, que terá de atravessar um campo ainda minado de falências, de
desemprego e de privações.
Também começa em
breve uma outra “transição” cuja relevância ninguém nega. Em Berlim, inicia-se
em Março o processo de escolha da sucessão de Angela Merkel. Está tudo em
aberto. A Alemanha levará algum tempo a voltar a estabilizar e isso terá
repercussões para a Europa. O que quer dizer que, nos próximos tempos, a
liderança europeia vai pender para o lado da França.
Julho, o momento
da viragem
As decisões
históricas do Conselho Europeu de Julho passado, que marcou o início da
presidência alemã, não nasceram do nada. Deveram-se aos esforços conjugados do
Presidente francês, Emmanuel Macron, da presidente da Comissão Ursula von der
Leyen e de alguns líderes (como o português) que se empenharam num trabalho
insano para encontrar um terreno comum a partir de divergências que pareciam
insanáveis.
Macron convenceu
a chanceler alemã, Angela Merkel, de que a Europa se arriscava a morrer
dividida e sem glória, se não fosse capaz de travar os efeitos devastadores da
pandemia, sobretudo nas suas economias mais vulneráveis. Quando, no dia 17 de
Maio, a chanceler alemã e o Presidente francês surgiram juntos por
videoconferência para propor uma ajuda de 500 mil milhões de euros, a fundo
perdido, para a recuperação económica, começou a virar-se uma página.
“Este gesto mudou
a posição da Alemanha na Europa – deixou de estar no Norte para passar a estar
no Centro, nesta questão fundamental”, diz Luuk van Middellar, historiador
holandês, citado pelo Financial Times.
A partir daí o
caminho estava aberto para as decisões do Conselho Europeu que, apesar da feroz
oposição inicial dos países que se mantinham no “Norte político”, conseguiu ir
ainda mais longe, permitindo à Comissão endividar-se nos mercados financeiros
para financiar o novo Fundo de Recuperação e Resiliência. Foi uma batalha de
cinco dias. Os “frugais” ainda quiseram colocar em cima da mesa velha a ideia
do “risco moral”, atribuindo aos países do Sul a maior devastação sofrida com a
primeira vaga da pandemia.
A segunda vaga,
muito mais violenta, provou que não tinham razão. Atingiu todos por igual - nos
sistemas de saúde em ruptura (incluindo na Alemanha, na Holanda ou na Suécia),
na violência dos óbitos, na paralisação da economia. Acabaram por ceder, depois
de pequenos reequilíbrios e algumas recompensas por via do Orçamento Plurianual
para 2021-2027, aprovado em conjunto – 1,8 biliões de euros no total. Uma verba
nunca antes vista, que selou o destino da União Europeia perante a maior crise
da sua história.
“Este Conselho
Europeu é um momento semelhante ao do Conselho Europeu de Hanôver, em 1988”,
diz Brigid Laffan, directora do Centro Robert Schuman de Florença. Em Hanôver,
os líderes europeus lançaram o Mercado Único e criaram a Comissão Delors para
começar a desenhar o caminho para a moeda única europeia. “Foi um avanço
histórico na integração europeia – potencialmente, o maior desde o início do
caminho para o euro, há 30 anos”, escreve Gideon Rachman no Financial Times.
Regressando a
Middellar, “a Primavera e o Verão de 2020 foram momentos de ‘solidão geopolítica’,
com a China a prosseguir a sua ‘diplomacia das máscaras’ e a implosão da
resposta americana ao coronavírus.” Este sentimento de “estarem nisto sozinhos”
levou os países europeus a concentrarem-se naquilo que queriam manter em comum.
O acordo de Julho
foi finalmente aprovado no Conselho Europeu de Dezembro, depois de um
braço-de-ferro com os governos da Hungria e da Polónia, que resistiram até
poderem à cláusula que condiciona o acesso aos fundos ao respeito pelo Estado
de Direito. A questão de fundo não ficou resolvida e não sairá da agenda
europeia tão depressa. As derivas iliberais e autoritárias de qualquer
Estado-membro não são compatíveis com a pertença à União Europeia, porque
violam os seus princípios fundadores, sem os quais a sua natureza mudaria
irremediavelmente. Vai ser preciso mais cedo do que tarde encarar a questão de
frente. A boa notícia é que os governos de Budapeste e de Varsóvia perderam o
seu grande aliado americano. A sua vida será a partir de agora mais difícil.
A última oportunidade
para a convergência?
Há ainda uma
segunda interpretação para esta viragem estratégica da União, à qual vale a
pena prestar atenção. Os “frugais” não abandonaram as suas reticências.
Continuam a insistir que as soluções encontradas para responder à crise são
“temporárias”. Torná-las definitivas está em boa medida nas mãos dos países do
Sul. Os seus Planos de Recuperação nacionais têm de ser consistentes e
credíveis e a sua aplicação eficaz. Os financiamentos que vão receber são
enormes, mas são também, muito provavelmente, a última oportunidade para
aceleraram o caminho de convergência com o Norte.
A presidência
portuguesa será um duplo teste: acompanhar a grande operação da vacina e o
processo de aprovação dos planos nacionais. Portugal tem de dar o exemplo nas
duas dimensões.
“O que é a
“autonomia estratégica”?
O debate sobre a
“autonomia estratégica” manter-se-á no topo da agenda. Quatro anos de Donald
Trump somados à crise pandémica tornaram-no incontornável. O que significa
exactamente, ainda varia bastante conforme o “utilizador”. Pode a Europa ser
autónoma fora do quadro transatlântico? Pode a Europa ser autónoma face à
emergência de duas grandes potências autocráticas que olham para ela como o
“campo de batalha” do seu jogo de poder com os Estados Unidos? Pode a Europa
continuar a “ter o bolo e comê-lo”, beneficiando sem custos da protecção americana?
Há ainda respostas diferentes entre os aliados europeus.
Economicamente, a
pandemia pôs em evidência a excessiva dependência da China em sectores vitais
como medicamentos ou materiais de protecção. A diversificação e mesmo a
relocalização de algumas destas cadeias de valor foi outra das lições
aprendidas.
Portugal quer
deixar a sua marca neste debate. Prefere uma Europa que continue a ser aberta
ao mundo e que desenvolva a sua autonomia no quadro da relação transatlântica.
Receia que a ideia subjacente de autonomia económica (a França prefere o termo
“soberania”) se traduza numa política industrial que privilegie a promoção de
“gigantes económicos” europeus para desafiar os “gigantes económicos”
americanos e chineses, que beneficiaria sobretudo as grandes economias e as
mais fortes.
Prefere a
diversificação das cadeias de valor ao proteccionismo. Daí a importância que
atribui à cimeira com a Índia, prevista para Maio, no Porto. Há um vasto campo
para a cooperação económica e tecnológica com o outro gigante asiático que é
uma democracia. Mas há também a oportunidade de contrabalançar o peso da China
na região do Indo-Pacífico – um interesse que pode ser comum às duas partes e
que vai ao encontro do interesse americano.
Na gestão da
agenda externa, o governo tem uma vantagem: Portugal é simultaneamente
europeísta e atlantista.
Biden virá à
Europa. Será bem-recebido?
Joe Biden toma
posse como o 46.º Presidente dos Estados Unidos no dia 20 de Janeiro. Tem uma
pesada agenda doméstica para consertar o que Trump destruiu. A relação
transatlântica regressará à normalidade que se espera entre aliados
permanentes. Os líderes europeus aprovaram na última cimeira uma proposta da
Comissão para o relançamento da aliança. Haverá provavelmente durante os primeiros
seis meses uma visita de Biden à Europa, seja por causa da NATO, seja para a
cimeira do G7 em Junho, que incluirá um encontro com os líderes da União em
Bruxelas.
A China estará no
centro de uma nova agenda transatlântica porque representa o maior desafio
estratégico que os Estados Unidos enfrentam. Bruxelas propôs a abertura de um
novo “diálogo sobre a China”, que permitirá “criar os mecanismos para defender
os interesses comuns e gerir as diferenças”. Nada disto faria supor que a
presidência alemã quisesse concluir rapidamente com a China um acordo sobre
investimento a menos de um mês de Biden entrar em funções.
O interesse de
Pequim é óbvio, dispondo-se a fazer cedências que levou sete anos a regatear. O
acordo ainda levanta muitas dúvidas em matéria de proibição do “trabalho
forçado” (como o que a China pratica com a minoria uigure de Xinjiang).
Sucedem-se as prisões em Hong Kong. A equipa de Biden fez saber publicamente
que teria preferido uma coordenação prévia. “Um tal acordo, quando se abre uma
nova oportunidade para a relação transatlântica e no preciso momento da tomada
de posse de Biden, só poderia ser um sinal errado”, escreveu no PÚBLICO Nuno
Severiano Teixeira.
A Europa terá um
dia de saber onde quer estar. A tentação da “terceira força” não a levará muito
longe. Sozinha, não tem força - nem económica, nem miliar, nem tecnológica –
para competir ao mesmo nível.
As armadilhas do
futuro
“As grandes
crises têm grandes consequências, habitualmente imprevisíveis”, lembra Francis
Fukuyama no seu ensaio sobre A pandemia e a ordem política, publicado na
Foreign Affairs. Foi assim na Grande Depressão, que levou à ascensão do
fascismo na Europa, mas também ao New Deal, permitindo à América viver nas
décadas seguintes um dos períodos mais extraordinários da sua história. Foi
assim com a crise financeira de 2008 e a Grande Recessão, com a ascensão dos
populismos nos dois lados do Atlântico. É assim agora, numa crise que atingiu
toda a humanidade, que se abateu com particular violência nos países mais ricos
do planeta, que provocou uma “grande paralisia” traduzida numa queda do PIB
nunca antes registada a não ser em tempos de guerra. Que desgastou quase até ao
limite o prestígio da América. A Europa vê-se rodeada de instabilidade e de
conflitos por todos os lados.
As suas
consequências a mais longo prazo são ainda imprevisíveis.
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