segunda-feira, 30 de março de 2020

André Freire: "A crise é obviamente um terreno mais fértil para os populismos"




André Freire: "A crise é obviamente um terreno mais fértil para os populismos"

O politólogo André Freire diz que a Europa poderá ser o "farol" para o mundo consoante a resposta que der à crise pandémica e à económica que se segue. Se não existir solidariedade entre Estados, a "fatura" chegará. Em forma de forças políticas indesejadas.

Paula Sá
30 Março 2020 — 00:22

Considera que o estado de emergência era inevitável e foi bem decretado no tempo que foi pelo Presidente da República?
O que se está a passar em Portugal e no mundo é vertiginoso e os acontecimentos evoluem mais rápido do que se imaginava. Se calhar, naquela altura muitas pessoas pensaram que fosse cedo demais, até o próprio primeiro-ministro, e eu próprio tinha algumas dúvidas. Isto tem sempre uma racionalização a posteriori. Mas, perante o que se está a passar em Espanha e em Itália, se calhar foi a decisão mais prudente. O Conselho Nacional de Saúde Pública, no final da tarde de uns dias anteriores, tinha dito que não era recomendável o fecho das escolas... Mas foi prudente a decisão no contexto em que estamos a viver. Na dúvida, vale mais ser exigente. E agora ainda faz mais sentido com tudo o que estamos a observar e porque é tudo tão incerto. Os cientistas não conhecem bem o vírus, as suas consequências, como se propaga. Por isso, o lado da prudência deve merecer o maior crédito. Hoje até é mais consensual do que era na altura.

Uma sondagem mostrou que a adesão dos cidadãos ao decretar do estado de emergência foi esmagadora. Terá sido pelo que estavam a ver no resto da Europa?
Seguramente, as pessoas estão todas apreensivas. Eu próprio vejo relato de pessoas amigas que estão com problemas e o grau vertiginoso com que as coisas se estão a passar e é natural que as pessoas fiquem sensíveis. De qualquer modo, a implementação do estado de emergência não é ainda, pelo menos em termos de circulação das pessoas, tão intrusivo como vemos noutros sítios. E as pessoas estão a tentar seguir isso de uma forma geral, com um certo cuidado. Pelo menos é o que vejo na minha zona e o que tenho ouvido do relato de outras pessoas aqui em Benfica. Há pessoas a fazer jogging, outras que vão passear o cão ou às compras, mas as ruas estão a tender para o deserto. Tirando uma coisa ou outra, uma situação ou outra, os relatos que vejo são de prudência geral. O que não quer dizer que não possam existir alguns problemas e até alguma subestimação nos dados ou pelo número de testes que são realizados. Mas não há razão para não confiarmos nas autoridades.

Os cidadãos, perante o medo, e no caso da doença, ficam dispostos a abdicar dos seus direitos, aqueles que são considerados fundamentais, como a liberdade de circulação e de viverem a vida comunitária? Direitos ainda suspensos de uma maneira suave, mas podem vir a ser suspensos de maneira mais dura.
Acho que sim. Aqui há vários valores, e o da vida sobrepõe-se aos outros. Até agora, as restrições têm sido interpretadas com sensatez e equilíbrio no caso português, também porque a situação não é tão grave como nos casos italiano e espanhol. A ação das pessoas, que tem sido generalizada, e se a evolução da situação não for tão demorada e for mais contida, pode ser que não se avance muito. Mas estou convencido de que as pessoas estão disponíveis, perante o risco de vida, para aceitar medidas mais restritivas. Mas pode haver um problema de pânico e de insensatez.

Sobretudo se for um período muito prolongado...
Sim, se for muito prolongado tem outros efeitos. Já ouvi falar de um plano para a saúde mental, porque isto tem um efeito sobre as pessoas fechadas em casa sempre. Por isso é que os tais passeios higiénicos, do cão, de um certo exercício contíguo à zona de residência, etc., faz sentido para preservar algum equilíbrio mental e também físico. É também uma sensatez que é desejável que seja preservada. Só se a situação ficar fora de controlo.

"Estou convencido que as pessoas estão disponíveis, perante o risco de vida, para aceitar medidas mais restritivas"

Sente que poderá existir algum atropelo aos direitos dos cidadãos neste tempo de emergência, nomeadamente de as autoridades exacerbarem o seu poder?
Poderá existir excesso de zelo e exageros, mas globalmente não vejo que haja aqui uma situação generalizada de abusos. Os próprios agentes de autoridade podem vir a ser alvo do medo e do pânico e exagerarem, mas também penso que, mesmo que aconteça, não seja generalizado.

O confinamento quase voluntário dos portugueses, porque começou antes de ser decretado o estado de emergência, mostra que podemos ser um povo mais disciplinado e mais unido perante uma situação de crise extrema?
As pessoas foram bastante previdentes, mas se calhar beneficiámos de ver o que se estava a passar, nomeadamente em Itália, antes dos outros. Portugal não tem propriamente uma tradição de povo disciplinado, o que também não quer dizer que seja o oposto. Aprendemos e interiorizamos os problemas que estamos a ver à nossa volta e as pessoas foram mais cuidadosas. Isso foi positivo e deve ser valorizado. Mas isso não é uma virtude que os outros não tenham. Se calhar, quando o vírus apareceu na Itália, não havia esta informação para pôr as campainhas de alarme acionadas.

Preocupa-o a resposta do SNS no combate e tratamento da pandemia
Estou preocupado não no sentido de o SNS - e os meios privados que foram agora mobilizados - não ser competente ou que não confie em termos de orientações médicas ou técnico-científicas. Mas o problema que está aqui colocado é se a situação se tornar explosiva, e houver um crescimento do número de casos, isso se possa tornar um problema para a capacidade de resposta do SNS - do nosso como de outro qualquer. Agora, o nosso é um que ainda tem problemas adicionais por causa do período da troika e porque não somos um país rico. Vivemos esta crise muito forte que foi a recessão, com a intervenção da troika, e isso gerou uma grande contração do investimento na saúde, dos recursos e dos meios. Portanto, o ponto de partida já é problemático, aqui é mais problemático do que na Suécia ou na Alemanha. Um dos dados que estão em cima da mesa muito fortes é tentar que o crescimento da curva não seja tão exponencial, tão explosivo, de modo a que o SNS consiga gerir os picos de procura relacionados com isto. Mas que há motivos de apreensão, há, e em Portugal ainda mais, pelo que acabei de dizer.

Como professor universitário, que constrangimentos lhe trouxe o ensino à distância?
No ensino universitário somos um bocadinho mais privilegiados porque nos adaptamos mais depressa a este sistema de videoconferências. Parámos as aulas presenciais, mas tenho estado a dar as aulas aos alunos regularmente. Os alunos têm os seus computadores, são mais maduros, mais crescidos. É diferente do secundário e do primário. A minha experiência é que têm funcionado bem as aulas, fazemos as reuniões também por videoconferência. O ministério já legislou, porque havia, em termos de júris de concursos, a obrigação de a última reunião ser presencial, para suspender isso neste período de exceção e permitir que seja tudo por videoconferência. Mas não funcionou tão bem por videoconferência e acho que há muitas vantagens na interação presencial. Presumo que no ensino primário e no secundário seja muito mais difícil.

"Vivemos esta crise muito forte que foi a recessão, com a intervenção da troika e isso gerou uma grande contração do investimento na saúde"

No campo político, é possível fazer oposição neste tempo de emergência?
É difícil, mas é desejável que haja. É preciso manter a vigilância sobre todos nós e a bem de todos nós. Mas neste contexto é mais difícil fazer uma oposição contundente, mais assertiva, até porque é desejável que seja mais contida, mais moderada. Mas acho que é possível.

Quando passar a pandemia, haverá outra crise social e económica. A oposição também estará condicionada porque não pode assacar ao governo a responsabilidade por essa crise?
Ah, pois! A crise que há de vir será económico-financeira, e esperemos que isto não se prolongue muito, pois assim ela será menos profunda. A responsabilidade disso não poderá ser assacada, pelo menos diretamente e linearmente, em toda a sua extensão, ao governo. Penso que os eleitores também não irão responsabilizar, mas tudo depende das medidas que forem tomadas, das respostas. Mas é um tipo de crises em que os responsáveis não são os agentes políticos, a não ser que estejam a gerir a situação de uma forma irresponsável e imprudente, como vimos nalguns países.

Então, não vê nesta crise campo para progredirem os populismos, que já tinham muito terreno na Europa e algum em Portugal?
No imediato, não sei se vejo, mas, se isto se prolongar e dependendo das respostas, a crise é obviamente um terreno mais fértil para os populismos. Mas depende muito da duração desta crise pandémica e dos seus efeitos e da resposta dos agentes políticos. Mas nós acabámos de sair de uma crise violentíssima, os problemas de dívida continuam e não temos muita margem. Portanto, a resolução não vai ser muito simples e o contexto é propício ao populismo. Também dependerá da União Europeia, que tem dado sinais contraditórios. Vê-se uma certa renitência em adotar soluções solidárias por parte da Alemanha e da Holanda, o que é preocupante, porque depois vai surgir um problema de dívida. Aliás, nós temos a memória do que se passou em 2008 e 2009, em que também flexibilizaram as regras para gastar e contrariar a recessão. Depois veio a fatura e caiu para cima de nós. O Dr. António Costa e o Presidente Marcelo, os agentes políticos portugueses e de outros países, nomeadamente os que sofreram isto e têm memória, devem agir. Podemos gerir isto de uma forma mais solidária, europeia, com as tais obrigações conjuntas para esta dívida extra ou então vamos ficar à mercê dos mercados de capitais e vamos ter por cima desta crise uma crise ainda mais grave. Em qualquer caso, recessão teremos. Por isso, tudo depende das respostas, da visão, da capacidade visionária dos agentes políticos, sobretudo europeus. E poderá ser um elemento de luta política, a marcação de posições diferentes e de opções e de alianças que se façam.

"Vê-se uma certa renitência a adotar soluções solidárias por parte da Alemanha e da Holanda, o que é preocupante, porque depois vai surgir um problema de dívida. Aliás, nós temos a memória do que se passou em 2008 e 2009, em que também flexibilizaram as regras para gastar e contrariar a recessão. Depois veio a fatura e caiu para cima de nós"

No próximo ano vamos ter autárquicas, que eram muito importantes, por exemplo, para o PSD. Esta crise não irá ter influência nessas eleições?
É muito distante para se poder perceber. Depende da duração da pandemia e da profundidade e durabilidade da crise económica e como ela for politicamente gerida. Agora, se entrarmos num ciclo recessivo e ele se prolongar, isso pode afetar. As autarquias são especiais, porque o fator local, a situação de cada concelho, conta mais do que noutro tipo de eleições, mas há sempre o efeito nacional. Se houver uma situação de refluxo, mesmo sabendo-se agora que não é uma responsabilidade dos atores domésticos, é expectável que possa ter algum efeito a la longue e possa ter alguma influência. Mas ainda é muito longe, porque as eleições só são em outubro do próximo ano e muita água há de passar sob as pontes.

O que também se aplica à ideia de poder eventualmente ter efeitos na durabilidade do mandato de um governo minoritário do PS?
Pois, o governo não tem nenhum aliança formal, o PS decidiu governar com alianças ad hoc, embora tivesse dito que preferia lidar com os parceiros. Claro que em situação de escassez, de crise, ainda tem menos coisas para oferecer à esquerda. Portanto, a situação pode ficar mais complicada. Não para já, porque há uma certa contenção, no sentido de responsabilidade, mas para a frente a situação pode-se colocar.

Nomeadamente se o desemprego disparar?
Pois, isso é um risco muito grande. Estes pequenos negócios que foram muito atingidos com o estado de emergência - restaurantes, os pequenos negócios -, isso pode ser um problema. Hoje houve uma tomada de posição de vários líderes europeus, penso que o Dr. António Costa deve priorizar de modo a que as respostas europeias sejam mais solidárias. Porque a fatura há de vir.

"Parece a peste que regressa no século XXI, que era uma coisa remota que pensávamos que no estado de desenvolvimento das nossas sociedades estava arredada"

Como perspetiva o mundo após a crise? Ninguém vai conseguir escapar, mesmo os que resistiram mais, como Trump e Bolsonaro?
Estão a ter uma gestão um bocado irresponsável, pode ser que nesse caso, se a situação evoluir como tem evoluído e com o padrão de resposta que estão a ter, possa ter o efeito de os fazer tremer e eventualmente perder o poder. A situação aconselha prudência e isso a gente não vê nem no Bolsonaro nem no Trump, estão mais preocupados com a economia do que com tudo o resto. Para já, isto é uma coisa de que ninguém estava à espera. Parece a peste que regressa no século XXI, que era uma coisa remota que pensávamos que no estado de desenvolvimento das nossas sociedades estava arredada. Embora tivéssemos visto o ébola não há muito tempo. Isto veio denunciar a fragilidade em que estamos todos e que nada está garantido e que o nosso avanço económico e científico também não é garantia de que estejamos a salvo, embora nos capacite para respostas se calhar melhores do que noutros que estão mais enfraquecidos e menos desenvolvidos. Mas vai mudar radicalmente o paradigma da nossa existência, até em termos de horizonte. Depois, pode refrear a globalização, que é até um elemento que pode ser positivo. De repente, descobrimos que se houver um grande problema, uma guerra, por exemplo, estamos completamente dependentes da China para nos mandar coisas. E Europa será um sítio de sinalização do que de melhor e pior pode ocorrer. Podemos dar respostas solidárias e isso pode contaminar outros ou pode haver uma questão de egoísmos e de falta de solidariedade, e isso pode levar a explosões e ao surgimento de forças políticas indesejáveis, à instabilidade e a conflitos militares. A Europa pode ser um farol, para o melhor e para o pior, do mundo.

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