Pode
Marine Le Pen ser eleita, por distracção, com menos de 50% dos
votos?
A
abstenção pode transformar uma minoria nas sondagens em maioria nas
urnas.
JORGE ALMEIDA
FERNANDES
1 de Abril de 2017,
8:55
A campanha das
presidenciais francesas continua o seu percurso estonteante, tecido
de incertezas e a exigir muitos termos entre aspas. Depois da “queda”
de François Fillon e da “imparável” ascensão de Emmanuel
Macron, a semana foi marcada por novos “factos políticos”. O
ex-primeiro-ministro Manuel Valls renegou o candidato oficial
socialista e anunciou o voto em Emmanuel Macron. “Requiem pelo
Partido Socialista”, titulou Le Monde em editorial. Ao mesmo tempo,
Benoît Hamon era ultrapassado nas sondagens pelo “esquerdista”
Jean-Luc Mélenchon: 11% contra 15%.
Para lá do “caso
Valls”, a semana trouxe uma “revelação” que enervou a Europa.
O físico e politólogo Serge Galam, investigador do Centro de
Investigações Políticas de Sciences-Po (Cevipof), publicou um
artigo a explicar que o resultado da segunda volta dependia
largamente da taxa de abstenção e que Marine Le Pen poderia vencer
com 45% ou até 42% dos votos. Os media passaram a dar mais atenção
aos abstencionistas e indecisos. O diário online Politico.eu,
publicado em Bruxelas, resumia os títulos de outros jornais
europeus: “Como poderia Marine Le Pen vencer.”
A hipótese de Galam
Neste momento, quase
um terço dos franceses admite abster-se e 43% dizem ainda não saber
em quem votar. Muitos eleitores não estão “definitivamente
seguros” quanto ao candidato que elegem nas sondagens,
designadamente em relação a Macron. Frisam os analistas que é
muito alto o nível de desconfiança e de “fadiga” em relação
aos políticos e partidos. Há também indícios de um clima de
crispação entre alguns “eleitorados”, o que pode vir a ter
repercussão na segunda volta.
Que diz Serge Galam?
Os candidatos favoritos nas sondagens são também objecto de uma
forte rejeição. Muitos eleitores dizem não ter vontade de ir votar
na segunda volta porque rejeitam ao mesmo tempo Le Pen, Fillon ou
Macron. Entretanto, Marine Le Pen tem um eleitorado consolidado e
mobilizado.
Ela jamais atingirá
os 50% de votos necessários, dado que a grande maioria dos franceses
não a deseja na presidência e é hostil ao seu partido. Mas se se
verificar uma “abstenção diferenciada” que penalize o seu
adversário, a sua vitória passará de “impossível” a
“improvável” — o que quer dizer que passa a ser concebível.
O autor faz vários
cenários. Por exemplo: as sondagens dariam a Marine apenas 44% das
intenções de voto; imaginemos que a afluência às urnas seria de
76%; ela mobilizaria 90% dos seus eleitores virtuais, enquanto o
adversário apenas arrastaria 70% dos seus; neste caso, ela seria
eleita por 50,07% dos sufrágios expressos. Podem fazer-se outras
contas. “Tudo repousa no diferencial de abstenção, mas o que é
surpreendente não é o mais importante”, comenta o físico. Com
uma mera diferença de 20% na mobilização dos eleitores, uma
minoria nas sondagens pode tornar-se maioria nas urnas. “Espero que
este estudo abra os olhos para o facto de que não votar significa
votar em Marine Le Pen na segunda volta.” As sondagens não estão
erradas. O problema é outro: ela poderá ser eleita “por
distracção”.
Outros politólogos
reconhecem que a “frente republicana”, que outrora obrigava os
partidos de esquerda e direita a unirem-se contra a Frente Nacional
(FN), está no mínimo enfraquecida. Verifica-se uma relativa
“banalização” das posições políticas de Marine Le Pen e 33%
dos franceses dizem concordar com as suas teses. Quase um terço dos
eleitores de Os Republicanos (de Sarkozy, Fillon e Juppé) defende
uma aproximação à FN e uma parte poderia votar em Marine na
segunda volta.
Mas permanece um
obstáculo fundamental: 75% dos franceses não a querem na
presidência. Apenas 19% (menos do que a sua cotação nas sondagens)
a querem ver no Eliseu. A estratégia de “desdiabolização” de
Marine funcionou, mas só em parte: 58% dos inquiridos consideram que
a FN “é um perigo para a democracia em França”.
Tem ainda um ponto
fraco que virá a lume na segunda volta: a questão do euro. Marine
tem flutuado e neste momento procura desvalorizá-la, afirmando que
apenas quer que sejam os eleitores a decidir. A saída do euro é
rejeitada por 85% dos franceses.
Os alarmes sobre a
possibilidade da sua vitória são em boa medida uma forma de
pressionar os eleitores para o voto útil — “para derrotar Le
Pen”. Mas, a partir do momento em que se reconhece que a sua
vitória deixou de ser “impossível” para ser apenas
“improvável”, compreende-se o frisson que se apodera dos
dirigentes europeus, já escaldados pelas surpresas do “Brexit”
ou de Trump.
Implosão do PS
A “cisão” do
Partido Socialista terá sido o facto com maior impacto no futuro. A
ruptura de Valls com Hamon é o culminar de uma polarização entre
duas linhas políticas antagónicas que remonta às crises da
presidência de François Hollande. Enquanto Valls tentava impor uma
orientação dita social-democrata ou “social-liberal”, os
ex-ministros Hamon e Arnaud Montebourg aliavam-se a ecologistas e
comunistas hostis ao PS para tentar fazer passar moções de censura
ao Governo.
Não era um mero
ajuste de contas. Anota o politólogo Gérard Grunberg, historiador
do socialismo francês: “Por trás desta aliança de circunstância,
esboçava-se na realidade um projecto estratégico alternativo ao
projecto social-democrata, o de uma recomposição da esquerda
antiliberal fundada na aliança entre a esquerda do PS e a
extrema-esquerda, que tendia a desembocar na criação de um
movimento novo, do tipo do Podemos espanhol.”
A candidatura de
Macron fez detonar as contradições. Ao romper com Hamon, Valls
rompe de facto com o partido. Tentará “reconstruir” o PS,
desígnio que defendeu antes ainda de ser primeiro-ministro? A
clarificação fica adiada para as legislativas de Junho.
Quanto a Hamon, está
num impasse cego, arrastando o PS para uma derrota à esquerda e ao
centro. A iniciativa passou para Mélenchon, candidato a líder de
uma nova esquerda radical. Conclui Grunberg: “O círculo está
fechado, o impasse estratégico do candidato socialista aparece em
toda a sua crua verdade, pois o seu projecto não pôde desembocar
nem na união das esquerdas antiliberais nem na da esquerda
social-democrata.”
A três semanas do
voto, a prudência é obrigatória. Apesar da relativa continuidade
nas sondagens, tudo continua incerto, fora das regras de antigamente.
É cedo para enterrar de vez o candidato da direita, à espera de um
“improvável” sobressalto. Tal como é cedo para proclamar Macron
vitorioso. O seu eleitorado “virtual” é ainda algo inseguro e
vai acentuar-se o “todos contra Macron”. E falta saber o que nos
trarão as próximas três semanas.
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