O Novo Banco foi despachado como um
carro velho
Podemos ter despachado o Novo Banco —
mas não nos despachámos dos problemas do Novo Banco.
RUI TAVARES
3 de Abril de 2017, 6:55
O pensamento que presidiu ao negócio do Novo Banco, fechado
pelo governo na passada sexta, tem muitas semelhanças com a maneira com que
lidamos com um carro velho: despachá-lo, não para dar lucro, mas para que deixe
de dar problemas. Numa analogia deste tipo, o carro velho é aquele ativo do
qual ignoramos se nos dará mais problemas ou soluções. Nunca sabemos se cada
reparação que temos de pagar é mesmo a última nem se a despesa de manter o
carro compensa. Nessa situação, o que muita gente faz é procurar alguém que
fique com o carro velho em troca de lhe pagar o seguro e lhe fazer a inspeção,
de lhe encher o tanque com combustível, e de o levar para onde não incomode.
Não admira muito que, depois de anos em que os problemas da
banca nacional nos puxaram sempre para baixo, haja quem olhe para o Novo Banco
assim. Mas é um erro sério que o governo tenha decidido desta forma. Vejamos
porquê.
Em primeiro lugar, é óbvio que o Novo Banco não é um carro
velho. O antigo BES, de que o Novo Banco saiu, era um banco com uma enorme
presença na economia portuguesa, grande prestador de crédito às empresas e
destinatário de uma boa parte da poupança nacional. O banco foi sugado por
dentro pelos negócios da família Espírito Santo, que no processo ainda
conseguiu afundar a Portugal Telecom, e tem sido muito difícil separar a parte
saudável da parte doente do BES. No entanto, aquilo que sobra tem um papel a
desempenhar no desenvolvimento do país e seria decisivo que o governo
estribasse no Novo Banco uma parte das suas ações no relançamento económico de
Portugal. Isto aconselharia à nacionalização do banco, tendo em vista a sua
reconversão e uma eventual venda num período de completo restabelecimento da
economia pós-crise.
O segundo problema não é só o da privatização em geral, mas
desta privatização em particular, em que o novo dono do Novo Banco passa a ser
John Grayken, da Lone Star. Escrevi em janeiro que “países avisados não deixam
John Grayken entrar no seu sistema bancário”, e mantenho. John Grayken
enriqueceu a comprar bancos falidos, a desfazê-los e a vender os pedaços
lucrativos. O estado português sabe isso, e a Lone Star sabe que sabemos. Por
isso ambos se precaveram contra o outro numa teia de obrigações que permanece
para lá da privatização.
Como é evidente, a nacionalização teria um custo orçamental
e um custo político. O custo orçamental imediato não se sabe se contaria para o
défice mas contaria certamente para a dívida pública. E o custo político seria
interno e externo, ao que poderemos acrescentar a dificuldade de encontrar uma
gestão estratégica para o Novo Banco complementar à da Caixa Geral de Depósitos
(e enfermando de todos os problemas que esta tem: todas as decisões de gestão,
do fecho de balcões aos possíveis despedimentos, passam a ser também decisões
políticas). Mas convém não esquecer as vantagens da nacionalização: o estado
manteria mais poder sobre o setor bancário nacional, o Novo Banco poderia
tornar-se lucrativo a prazo e teríamos mais certeza de que o seu papel na
economia nacional não seria desvirtuado.
Se tivéssemos tratado o Novo Banco como um ativo de que
valeria a pena cuidar, ele daria trabalho no presente mas seria útil no futuro
próximo e lucrativo lá mais para a frente. Se, por outro lado, tratamos o Novo
Banco como um carro velho, o seu novo dono vai querer o habitual: que nos
responsabilizemos por qualquer avaria que apareça enquanto ele desmonta as
peças e vende pelo melhor dinheiro. Sendo assim, podemos ter despachado o Novo
Banco — mas não nos despachámos dos problemas do Novo Banco.
Novo Banco: Ainda bem que se fez este
péssimo negócio
António Costa
Ontem
O acordo de cedência do Novo Banco ao
Lone Star é um péssimo negócio. É o possível, não há melhor, e poderia ser
pior. Só falta que o expliquem de forma verdadeira e para que toda a gente o
entenda.
A venda (?) do Novo Banco ao fundo Lone Star tem o mérito de
resolver mais um problema do sistema financeiro português, mas os termos deste
acordo – ainda condicionado à imposição de novas perdas a obrigacionistas
seniores… outra vez – têm outro virtude: põem fim a um conjunto de mitos sobre
a resolução do BES, a qualidade do balanço do Novo Banco, a ausência de
garantias do Estado, as alternativas a uma venda e a força do governo, deste ou
de outro, perante as instâncias europeias. Vamos falar em português corrente,
para que todos possam entender um negócio em que o Lone Star fica com 75% do
capital e injeta mil milhões no Novo Banco, o Estado com 25% através do Fundo
de Resolução e, depois, presta uma garantia pública no valor de 3,9 mil milhões
de euros para cobrir os riscos de créditos problemáticos.
Comecemos pela resolução do BES no dia 3 de agosto de 2014.
A resolução foi uma experiência europeia imposta a Portugal, pela primeira vez
num banco de caráter sistémico na zona euro. E o governo de Passos Coelho,
porque tinha sido o campeão da saída limpa, alinhou na festa. Deixou o
governador do Banco de Portugal à frente do carro, a conduzir sozinho, e depois
daqueles prejuízos gigantescos – de 3,5 mil milhões – o BES estava à beira do
precipício e deu um passo em frente. Resolvido num fim de semana, pré-anunciado
por Marques Mendes, do BES, nasceu um Novo Banco e ficou um ‘BES mau’ para
trás. Hoje, sabe-se, ‘para trás’ é uma força de expressão. Desde a sua criação
e até setembro de 2016, últimos dados disponíveis, o Novo Banco acumulou
prejuízos de 1.800 milhões de euros.
Depois, nesse fim de semana, foi decidido capitalizar o Novo
Banco com 4,9 mil milhões de euros. Supunha-se, o capital suficiente para
permitir uma nova vida ao Novo Banco. Mentira. Deveriam explicar-nos, hoje, o
que justificou aquele balanço, aquela avaliação de ativos e passivos. Quase
três anos depois, já se arranjaram várias soluções para ‘meter’ dinheiro no
Novo Banco. Os lesados do Grupo Espírito Santo (GES) perderam a ‘almofada
financeira’ que lhes tinha sido prometida, os obrigacionistas seniores perderam
mais de dois mil milhões de euros e o Novo Banco foi fazendo, neste período, a
venda de ativos problemáticos que ajudaram a ‘limpar’ um balanço de um Novo
Banco com créditos velhos e de difícil cobrança. Sempre a somar.
Já tinha havido uma primeira tentativa de venda do Novo
Banco. Falhou, e verdadeiramente não se sabem as razões. Mas uma coisa ficou
clara, o Banco de Portugal não estava nem está talhado para vender bancos,
coisa que lhe está cometida por ser (ainda) a entidade de resolução bancária em
Portugal. Deve concentrar-se na supervisão, e como se percebe pelos sucessivos
problemas de bancos em Portugal, não é coisa pouca, nem coisa fácil. Foi isso,
aliás, que levou Carlos Costa a contratar Sérgio Monteiro para coordenar o segundo
processo de venda do Novo Banco. Foi a melhor decisão.
Passados quase 15 meses sobre a abertura de um novo
concurso, ficou um candidato firme à compra do Novo Banco. E não foi nenhum
banco do sistema, nem sequer uma instituição financeira de outro país. Foi um
fundo de private equity norte-americano especializado na gestão de ativos
imobiliários. Este é o primeiro ponto relevante desta negociação e dá a ideia
das condições desfavoráveis desta negociação. Do ponto de partida. Mostra,
também, que o Novo Banco não era propriamente um tesouro, nem sequer escondido,
mas um banco a tentar fazer pela vida, em circunstâncias muito difíceis, com um
passado recente traumático, e não apenas financeiro.
O acordo com o Lone Star é um péssimo negócio para o Estado.
Mas não há melhor, e poderia ser pior. As alternativas também. Não é péssimo
para todos, é bom para o Lone Star, mas por alguma razão o fundo ficou sozinho.
Só quem estava iludido, pode estar desiludido. O que está implícito nos termos
deste acordo é uma resolução do Novo Banco, uma nova divisão entre banco bom e
banco mau, embora debaixo da mesma marca. Para falar em bom português, com este
negócio, o governo deu a parte boa do Novo Banco ao Lone Star, contra uma
capitalização de mil milhões de euros, e pôs o Estado, através do Fundo de
Resolução, a assumir o risco financeiro e de gestão dos créditos problemáticos
que o Novo Banco ainda tem. E são muitos.
Deu uma garantia de 3,9 mil milhões de euros – chamemos as
coisas pelo seu nome próprio, mesmo com nome de família diferente – e vai
ganhar tempo na gestão destes créditos, com a secreta esperança de que se
recupere o valor desses empréstimos de forma a limitar as perdas desta
garantia, que tem o nome pomposo de ‘mecanismo de capital contingente’. A
diferença tem também a ver com a forma como esta garantia vai impactar as
contas públicas. Ao longo do tempo, em função da sua utilização, e não já em
2017, quando é constituída.
Há alguma defesa do Estado? Há, e reforçada face às
garantias clássicas. Os créditos que estão protegidos são decididos pelo Fundo
de Resolução, que pode ceder a sua gestão a terceiros. Por outro lado, a
utilização desta garantia, criativa e engenhosa – mérito de Sérgio Monteiro –
tem um conjunto de regras que limita os riscos. Por exemplo, só pode ser usada
se os rácios de capital do Novo Banco baixarem de um determinado nível e não em
função de um crédito isolado. . O novo dono está proibido de distribuir
dividendos durante oito anos, os mesmos da validade deste garantia, o mecanismo
de capital contigente. Ou seja, os incentivos, do Estado e do Lone Star, estão
alinhados no mesmo sentido. Dito isto, só existe porque existe risco e
acreditar que o Estado se livrará deste contingente sem custos é uma
ingenuidade. Ou outra coisa.
Sim, a garantia é do Estado através do Fundo de Resolução,
que é financiado pelos bancos do sistema, mas como este fundo não tem dinheiro,
serão os contribuintes a assumir o primeiro risco, o de emprestarem o dinheiro
necessário para fazer face às perdas que aí vêm. O Estado, todos nós, vai
endividar-se para o fazer, e vai fazê-lo agora, mas se os créditos se perderam
ao ponto de ser necessária a utilização dos 3,9 mil milhões de euros, cenário
mais do que possível, os bancos vão começar a devolver este empréstimo a partir
de… 2046. Sim, leu bem, com um período de carência de 30 anos. Até lá, estão a
pagar cerca de 200 milhões por ano do empréstimo anterior. A perpetuidade é o
limite. É o equilíbrio possível para não não rebentar com os bancos e os
respetivos acionistas.
É por estas razões, e por outras, que o primeiro-ministro
deveria poupar-nos a afirmações que fez no anúncio do acordo. “Não há garantia,
nem direta nem indireta”, diz Costa. Quer mesmo manter a afirmação!? É justo
reconhecer-lhe, a ele e a Mário Centeno, a perseverança nos processos do
sistema financeiro, com trambolhões aqui e ali pelo meio, nas negociações com
Bruxelas. Mas também se exige respeito pelos contribuintes e pelos eleitores. A
política não justifica tudo. Há dois anos, o uso do Fundo de Resolução tinha
custos para os contribuintes, agora já não há riscos nenhuns. Pedro Passos
Coelho e Assunção Cristas cometem o mesmo pecado. A diferença? Mudaram de lado.
(Mais) coerentes neste ponto são o BE e o PCP. Mas, também estes, falam muito,
para os seus eleitores, mas não vão fazer nada. O poder é o que é… e é melhor
tê-lo, não é?
E alternativas, há? Há, mas são… inviáveis. Se os termos
deste negócio são o que são, a nacionalização seria assumir estes riscos já à
cabeça – o primeiro-ministro falou em 4,7 mil milhões de euros – e arriscar
outros, pesados, no futuro. Alguém pode dizer que a fatura ficaria fechada
aqui? Não nos esquecemos do que ainda há a pagar do BPN, um banco que tinha uma
quota reduzida no mercado, incomparável com a posição do Novo Banco, que, nas
empresas, domina cerca de 20% do mercado. E a CGD, que ainda agora recebeu mais
2,5 mil milhões em capital público.
Além disso, há outro ‘pormaior’: quem disse que a Comissão
Europeia, e as Direção-Geral da Concorrência (DGComp) aceitaria tal decisão? Se
impôs tantos entraves e limitações à posição de 25% no capital, isto é, sem
votos e sem administradores, o que leva a considerar que aceitaria a
nacionalização? Nada.
Se ninguém quer falar da liquidação, com data marcada a 3 de
agosto, regra geral porque o país ainda não está preparado para isso e, com
toda a certeza, seria feita à pressa, como sucedeu com a resolução do Banif, há
quem defenda dois outros caminhos:
O governo deveria ter vendido 100% e não deveria ter
assumidos riscos e garantias;
O governo deveria ter negociado um alargamento do prazo de
venda do Novo Banco.
Quer uma, quer outra solução partem de pressupostos errados.
Mas se só houve um candidato e com tantas garantias dadas, seria possível
encontrar compradores sem o Estado assumir riscos e a parte má do Novo Banco?
Não. E, quanto ao tempo, a história mostra-nos que o Novo Banco perderia valor
se estivesse mais tempo numa situação de indefinição, os problemas que já tem
agravar-se-iam, os que não tem apareceriam por falta de capital.
O governo de Costa fechou este negócio, Passos Coelho e
Assunção Cristas não teriam feito melhor. Poderiam vender o negócio de outra
forma, poderiam ter feito uma ou outra opção diferentes, mas no que é
essencial, a última decisão não é portuguesa, é de Bruxelas. Foi o que se viu
nos poderes conferidos ao Fundo de Resolução decorrentes da participação de
25%. Também seriam obrigados a dar garantias públicas através do Fundo de
Resolução, porque, no essencial, o Novo Banco tem duas caras, a de uma equipa
comercial junto das empresas do melhor que os bancos têm, uma carteira de
empréstimos e de participações que são uma fonte de perdas, presentes e
futuras. Parecem características contraditórias, não são.
O governo foi a jogo, já tinha ido com a CGD, foi outra vez
com o Novo Banco. Cometeu erros, passou linhas que nos recordaram outro tipo de
intervenções passadas com tão maus resultados, assumiu os resultados. Pedro
Passos Coelho perdeu por falta de comparência no sistema financeiro. Não entrou
sequer em campo, apostou tudo na saída limpa e no esforço, esse feito, nas
contas públicas, deixou a banca para outras rondas, convencido de que o sistema
teria capacidade para se regenerar à medida da economia. Não teve.
O que falta fazer para o acordo passar a negócio? Impor
perdas a obrigacionistas que, de uma maneira ou de outra, resultem em 500
milhões de euros no rácio ‘common equity tier 1’. Uma troca de dívida que o
Banco de Portugal e a gestão do Novo Banco puseram em cima da mesa, o Lone Star
agradeceu e o BCE elogiou. Por redução dos prazos e dos juros, ou de ambos. É
um modelo voluntário, ao contrário do que sucedeu no final de 2015. Os
investidores, alguns, não vão gostar, vão desconfiar, e só não vão fugir se não
puderem. Provavelmente, não vão ter alternativa, porque a alternativa é a
liquidação. E aí, vão perder muito mais. Esta operação, aliás, tem de estar
fechada para que o negócio com o Lone Star avance.
Finalmente, vamos saber com detalhe o que o Lone Star quer
fazer do Novo Banco. O plano de reestruturação imposto por Bruxelas tem de
passar para o business plan do Novo Banco, exatamente como aconteceu com a CGD.
Para já há uma aprovação informal, a formal vai depender do plano que vier a
ser feito. E, aqui, a exigência de Bruxelas e a agressividade do Lone Star vão
no mesmo sentido. Uma reestruturação rápida e profunda.
Tudo somado, ainda bem que se fez este péssimo negócio.
Amanhã, provavelmente, seria pior.
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