“Arte
urbana em Lisboa é muito mais do que pinturas em grandes fachadas”
POR O CORVO • 3
ABRIL, 2017 •
Lisboa está nas
bocas do mundo por causa dos seus murais e nunca foi tão procurada
por artistas internacionais de renome, que também querem deixar a
sua assinatura nas nossas fachadas. Em poucos anos, assistiu-se a uma
revolução na forma de olhar o graffiti, antes sinónimo de
vandalismo. Aproveitando o recente lançamento do álbum “Street
Art Lisbon 2”, O Corvo entrevistou Pedro Soares Neves, pioneiro nos
estudos sobre o universo dos graffitis em Portugal, também ele um
graffiter nos anos 90. O investigador da Faculdade de Belas-Artes da
Universidade de Lisboa explica como a forma de expressão foi
integrada na estratégia de publicitação internacional da cidade.
Mas, diz, ainda há muita trabalho a fazer pela Câmara de Lisboa,
que, com frequência, hesita entre rasurar ou promover.
Texto: Sofia
Cristino Fotografias: Zest Books e O Corvo*
Lisboa é hoje uma
cidade muito procurada por graffiters de todo o mundo, mas nem sempre
foi assim. O que está a mudar?
Há um leque
bastante vasto de fenómenos, que vão à boleia dessa palavra
“graffiti”. E esse leque de fenómenos tem várias
características, que funcionam num eixo legal e ilegal, num eixo de
alta e de baixa cultura e no eixo espacial e temporal, os espaços
onde são feitos e em que momento são feitos. E, normalmente, quando
falamos no eixo legal e de alta cultura, estamos a falar de arte
contemporânea, arte pública e produção de murais. Quando estamos
a falar do eixo ilegal e de baixa cultura, se calhar, estamos a falar
de escritos de casa de banho ou de palavras erráticas, que surgem
nos viadutos, ou seja, há um leque bastante vasto entre uma coisa e
outra. Em Lisboa, a evolução é diferente, conforme nos
posicionamos nesta matriz e, por isso, é um bocado difícil só
falar de uma coisa.
Em 2008, a Câmara
Municipal de Lisboa (CML) desenvolveu uma programação dirigida a
este fenómeno, que trabalhou uma dimensão, sobretudo a dimensão
legal, como é evidente. O Departamento de Cultura da CML, através
da Galeria de Arte Urbana (GAU), tem promovido muitas intervenções
de pinturas de murais.
E qual tem sido o
papel da GAU?
A GAU nasce em 2008,
com intenções muito específicas, relacionadas com uma operação
de limpeza das tags (assinaturas) das fachadas dos edifícios do
Bairro Alto e eu acompanhei esse processo, desde o início. O horário
dos bares ia ser reduzido e a contrapartida para a Associação de
Comerciantes do Bairro Alto seria a qualificação do espaço
público, do espaço exterior, para que se pudessem fazer mais
esplanadas e vender bebidas mais caras num espaço diferente. As
assinaturas, os cartazes e os graffitis não eram vistos com bons
olhos para essa lógica de qualificação do espaço público e, na
altura, já havia muita produção interessante no Bairro Alto.
Haviam intervenções de autores que hoje são conhecidos, como o
Dolk e o Banksy.
A origem da GAU é a
de um encontro que promovi com a Câmara e autores que eu conhecia do
passado, visto também ter sido autor. A intenção inicial era
promover o diálogo, mas tomou um rumo inesperado. Foi com as
intervenções que aconteceram nas fachadas da Avenida Fontes Pereira
de Melo, o primeiro grande projecto da GAU, que se percebeu a
dimensão da projecção deste tipo de intervenções. Começou-se a
observar esta iniciativa com outros olhos por parte de toda a
estrutura da Câmara, desde a presidência a outras divisões.
Mudou-se um pouco o
paradigma inicial de ser um projecto abaixo do radar de trabalho de
mediação com uma unidade subcultural, passando a ser um instrumento
da própria promoção e comunicação da cidade. E, portanto, foi
benéfico para todos, especialmente para os jovens, que tinham
vontade de mostrar o seu trabalho, já o faziam de forma espontânea,
mas assim foram-lhes proporcionados meios para o que desenvolvessem
numa escala ainda maior.
Por outro lado, o
departamento de Higiene Urbana tem desenvolvido acções de remoção
de graffiti ilegal indesejado. É interessante fazer investigação
nesta área, porque rapidamente se chega à conclusão que 98% do
orçamento relacionado com graffiters é utilizado para a remoção
de graffitis e só 2% está a ser utilizado para apoiar algum tipo de
evento ou de intervenção. Essa forte dicotomia, entre a limpeza e a
promoção, continua bastante desequilibrada. A limpeza continua a
ter orçamentos colossais e a promoção continua reduzida a um
nicho.
Acha que algum dia
essa relação vai encontrar um equilíbrio?
Do ponto de vista de
quem executa, para eles é indiferente as abordagens institucionais
de contacto, sejam elas para limpar ou evitar a vigilância e a
polícia, ou sejam elas direccionadas para concursos de graffiti e
projectos que possam envolver e cativar. Acho é que, do ponto de
vista de quem gere os recursos públicos, tem de haver uma maior
articulação e isso não existe. Ou seja, as pessoas conhecem-se e
contactam umas com as outras, mas não articulam o trabalho.
As equipas que estão
no terreno a limpar, quando identificam uma peça que possa vir a ter
valor, não contactam o município para perceber se é para
conservar, se é para registar, ou o que é para fazer. Ainda há uma
forte desarticulação e a limpeza ainda é qualquer coisa vista
muito próxima da higiene urbana. É um serviço que se contrata em
grande escala, que serve para várias ruas da cidade, tem o mesmo
tipo de abordagem que as recolhas do caixote do lixo. Não existe
ninguém, nenhuma figura ou entidade, que consiga gerir esta
situação, e acho que seria essencial. Deveria haver mais diálogo e
acho que isso está por fazer.
Acha que é isso
que está a faltar ainda para uma efectiva aceitação do graffiti
como arte urbana?
Sim, acho que sim.
Ao nível do reconhecimento de autores, de uma forma geral, já estão
bem identificados. Até já há separadores da televisão pública
que são feitos por autores identificados com esse tipo de cultura.
Longe de ser uma subcultura, já estamos a falar mesmo de uma cultura
de massas e acho que, a esse nível, a questão está resolvida. O
mais complicado é a gestão dos recursos de massa, do anónimo, isso
é que é mais complicado.
Por outro lado, há
outro beco sem saída, que é a questão da caracterização da
cidade do ponto de vistas turístico, aquela mensagem que está
escrita para fora de que Lisboa é criativa e tem murais grandes. A
imagem das grandes fachadas pintadas está associada a este excesso
de turismo de baixo custo (associado aos fenómenos de aluguer de
casas, por exemplo) e isso não é positivo para essa visão do
fenómeno. Foi importante em determinada altura, ajudou ao
reconhecimento da cidade e de alguns autores, sem dúvida, mas creio
que não é por aí o desenvolvimento positivo desta área de
produção criativa.
E por onde acha que
poderia ser?
Acho que tem muito a
ver com a gestão do dia-a-dia, da infra-estrutura necessária da
cidade de todos os dias e aí, olhando para a relação entre a
limpeza e a promoção, nota-se que a abordagem convencional continua
a ser a remoção. E é nessa relação que, acho, está o potencial
desenvolvimento.
A forma como vejo
esta área é muito na perspectiva da contribuição do cidadão para
com o seu espaço ambiente. É importante que quem gere os
territórios dos municípios tenha essa percepção e saiba trabalhar
com isso. Também não está definido o que é arte urbana e é
preciso trabalhar mais esse âmbito de redução de espartilhos de
que o graffiti é só pintura. Por outro lado, é preciso inserir
isso no trabalho quotidiano de gestão da cidade, que não seja algo
excepcional, mas que seja algo que faça parte da gestão diária da
cidade. Não é só por uma questão de moda, mas de necessidade. Há
muita necessidade de encontrar formas de optimizar os recursos que
nós temos nas cidades e esta é uma forma válida, como tantas
outras.
Acha que esse papel
passaria mais então por instituições como a Câmara e outras
entidades públicas?
Sim. Se as
instituições governamentais, que fazem a gestão dos vários níveis
de administração, seja uma junta de freguesia ou uma câmara, não
estão atentas ao que está a acontecer no território, acho que se
estão a perder várias coisas, energia e oportunidades. É também
com a ideia de providenciar formas de validação e de
reconhecimento, de análise e de monitorização do que se está a
passar, que estou a apostar na parte de investigação e de
organização de conferências internacionais. Quero reunir as
pessoas que mais estudam este fenómeno, que se debruçam sobre casos
de estudo nacionais e internacionais e que vão produzindo esse
conhecimento através de textos e artigos, que depois podem ser lidos
e utilizados pelos decisores e é esse papel que, neste momento,
estou a tentar desenvolver, a partir de Lisboa também.
Acredita que o meio
académico pode ter um papel importante na evolução destas
relações?
Sim. Há cerca de 40
anos que se produzem textos e artigos nesta área, mas, infelizmente,
tem sido sempre sobre áreas científicas específicas. Cada vez mais
há pessoas que tiveram a experiência prática, como eu, e que,
depois, acabaram por fazer um percurso académico e falam com
conhecimento de causa. Não são observadores externos, e isso
caracteriza muito a existência de um meio próprio.
É particularmente
estimulante porque já há muito tempo que não se desenvolviam
tópicos num contexto académico que sejam tão fracturantes e
relevantes de solucionar e observar, num contexto real. Existem uma
série de paradoxos no que se relaciona com esta questão do
graffiti. Desde logo, a Câmara tem uma entidade que promove e, ao
mesmo tempo, tem entidades que são contra. Portanto, há aqui um
espectro muito indefinido, que convém observar e monitorizar e a
academia também tem uma grande responsabilidade nisso.
Apesar do que falta
fazer e aprimorar, já houve uma grande evolução destas relações
com a autarquia…
Sim, claro que sim.
Apesar de tudo, de uma forma geral, ainda não há a prática de
relacionamento da autarquia com a academia na perspectiva de usar o
conhecimento que é produzido nela para a tomada de decisão. Ou
seja, a tomada de decisão ainda é muito feita do ponto de vista
empírico dos técnicos e dos decisores políticos. Não existe a
prática de fundamentar as decisões em conhecimentos que são
desenvolvidos no mundo académico, pelo menos no que toca a estas
áreas. De qualquer forma, desde 2008 houve uma grande mudança de
paradigma aqui em Lisboa, com a Galeria de Arte Urbana. Desde então,
o projecto não terminou e tem ganho um perfil específico e com a
sua consistência.
O graffiti é cada
vez menos uma actividade amadora. Já é possível viver desta
prática?
A produção de
graffiti ou Street Art é um fenómeno espontâneo, informal, de
pessoas anónimas e de difícil relação, na sua essência, com a
vertente empresarial. Por isso, o grosso da coluna continua a ser
amador e nunca vai deixar de ser, porque é também aí que reside a
força do fenómeno. Estamos a falar de uma prática viva, em que há
milhares de pessoas anónimas que a desenvolvem e essa é a grande
mais-valia do fenómeno. Mas sim, já começou a deixar de ser uma
actividade somente amadora. Já foi gerado um ecossistema
empreendedor de profissionais à volta destas questões da Street
Art, aqui em Lisboa. Não é uma coisa fixa e definida, é mutável.
É algo que está a desenvolver-se e a evoluir. Agora, tem de se
perceber para que direcção está a evoluir, para que se possa tirar
melhor partido disso.
Como é que vê o
futuro do graffiti em Portugal?
O futuro tem a ver
com a maturidade do fenómeno e das pessoas que ganham a vida com
esta arte. Acho que vai haver um assentar de expectativas e uma
espécie de regulação e de autogestão. Por outro lado, vão ser
lançados grandes desafios no que diz respeito às relações com as
instituições, nomeadamente com a questão da distribuição de
orçamento. Independentemente do futuro mais ou menos risonho, acho
que, sem dúvida, vai existir futuro e, evidentemente, estamos a
falar de uma actividade humana que é inerente à condição de
existir. Por isso, independentemente do nome que lhe seja dada no
futuro, ela vai existir.
Também existe uma
prática de abordagem do espaço público que é diferente do norte
da Europa, dos EUA e de outras geografias. Acho que essa diferença
contém valor, que é necessário identificar e expor. Mantenho a
esperança que o caso de estudo de Lisboa seja um caso de estudo à
escala global, que possa melhorar o desempenho, a gestão dos
recursos e da sustentabilidade, em geral, de várias cidades do
mundo.
Quando teve o
primeiro contacto com o mundo do graffiti?
Comecei a ter um
envolvimento pessoal com esta temática numa fase em que este tipo de
intervenções, com latas de spray, começou a aparecer em Portugal.
Fiz parte de um grupo que começou a intervir no espaço público com
aquilo que nós consideramos ser o graffiti associado à cultura
hip-hop, que é uma subcultura. Nos anos 90, existiam dois ou três
grupos e, desses grupos iniciais, fui o único que fez uma
licenciatura, em Design da Comunicação. Senti um bocado a
responsabilidade de estudar o fenómeno, porque, ao longo da década
de 90, o número de pessoas que fazia este tipo de intervenções, de
uma forma informal e num espaço público, foi aumentando. Comecei a
estudar o fenómeno e a perceber que se trata de uma função muito
mais lata, que há uma contextualização mais genérica onde se
encaixam estes fenómenos.
Por exemplo, há
relações muito importantes com o que aconteceu logo depois do 25 de
Abril, com os murais de Abril e, claro, também antes, recuando até
à essência da criação humana, até às pinturas nas cavernas.
Identifiquei, também, que no meio académico havia uma lacuna.
Existiam algumas investigações e análises do fenómeno, mas sempre
de um ponto de vista externo, do ponto de vista do sociólogo ou do
antropólogo, que visita o fenómeno como visita outros fenómenos de
carácter subcultural. Não existia uma análise a 360 graus, com
base na vertente prática também, e isso é uma coisa que só se
está a criar agora em termos globais.
Quando diz que as
investigações académicas estão a surgir agora, estamos a falar de
quantos anos?
Já existem coisas
escritas sobre estas questões há 40 anos, se estivermos a falar do
graffiti da lata de spray, que é aquele que tem origem em Nova
Iorque. Depois, existem estudos e literatura mais antiga, que vem do
século XIX, relacionados com os graffitis encontrados nas escavações
arqueológicas da cidade da Pompeia. Num contexto português, é
recente, só em 2008 é que foi defendida a primeira tese de
doutoramento em antropologia e, desde aí, foram defendidas mais duas
ou três. Num contexto internacional, a massificação do estudo
deste fenómeno, ou a criação de uma massa crítica de estudiosos,
só agora, depois da primeira década do século XXI, é que está a
ganhar algum significado.
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