Por Ana Henriques in Público
Templo desenhado por Troufa Real é criticado mesmo dentro das fileiras católicas. Em Miraflores, obras de igreja-foguetão, do mesmo arquitecto, estão paradas há ano e meio
O bojo que era para ser dourado ficou, afinal, cor-de-ferrugem e a exótica torre de 108 metros de altura não saiu, por enquanto, do papel. Com inauguração marcada para o próximo sábado, a igreja-caravela que o arquitecto Troufa Real desenhou para o alto do Restelo, em Lisboa, é, ainda assim, um dos templos católicos que mais polémica desencadearam nas últimas décadas - a ponto de suscitar a crítica do próprio cardeal-patriarca.
Todo o projecto se baseia numa alegoria à vida de S. Francisco Xavier e aos Descobrimentos portugueses. Daí que a nave do templo, com capacidade para cinco centenas de fiéis, simule o casco de uma embarcação. Enferrujada por fora, graças a uma técnica que consiste em fundir cobre no ferro, esta parte do edifício acompanha, no interior, as formas exteriores: as paredes da igreja são curvas, com janelas em forma de óculo. No exterior, uma grande cruz de ferro deverá ficar tombada no chão. Coladas ao bojo da igreja-caravela, várias cornucópias simularão as ondas do mar.
A casa paroquial foi pintada em cor-de-laranja berrante. Rematado no topo por pequenas pirâmides no lugar do telhado, é uma alusão "à casa mourisca que o arquitecto Raul Lino [meados do séc. XX] soube respeitar", e ainda ao casario da Lisboa do séc. XVI que o missionário deixou atrás de si quando partiu de Lisboa, rumo ao Oriente. O vermelho, o verde e o branco foram também cores escolhidas para as paredes exteriores do complexo religioso. "São as cores das bandeiras indiana e portuguesa", esclarece o pároco de S. Francisco Xavier, António Colimão, nascido em Damão. É ele o grande entusiasta da obra, que só não se apresenta ainda tão profusamente colorida como nos desenhos por falta de dinheiro para tintas. Esta primeira fase da obra custou três milhões de euros. Acontece que as contribuições dos fiéis não chegam sequer a metade. O resto foi pago à custa de um empréstimo bancário contraído pela paróquia. "Estamos à espera de ofertas. Claro que o dinheiro não cai do céu", refere o padre.
A projectada torre da igreja sofre, aliás, do mesmo problema de escassez de dinheiro para subir em direcção ao firmamento. Troufa Real chegou a idealizá-la em forma de minarete, uma opção muito contestada. Mudou, no entanto, de ideias, e agora pretende levantar no Restelo uma estrutura metálica de aspecto mais leve. Para concretizar os seus intentos recorreu a um nome de peso: o pai do satélite português, Carvalho Rodrigues, está apostado em "casar a arte e a tecnologia para produzir energia" eólica e solar na torre. "Parte da torre mover-se-á, como a hélice do ADN", descreve o investigador.
Trocado o dourado pela ferrugem, o epíteto "bolo de noiva" com que a igreja-caravela foi alcunhada quando nasceu perde sentido. As alterações ao desenho inicial não são, ainda assim, suficientes para amainar o enjoo que a construção provoca no seio da própria instituição eclesiástica. Há muito à frente do Secretariado das Novas Igrejas, o departamento do patriarcado que se encarrega dos templos que vão sendo construídos, o arquitecto Diogo Pimentel não consegue explicar cabalmente o processo que culmina no próximo sábado, dia de S. Francisco Xavier, com a inauguração do contestado templo. "Discordo por completo que a igreja promova este tipo de espectáculo no meio da cidade", observa. "A mensagem que um edifício destes deve transmitir às pessoas deve ser "aqui estou eu ao vosso serviço", e não "aqui estou eu em todo o meu esplendor"".
Quando encarrega um arquitecto de conceber uma igreja, este departamento entrega-lhe um documento, a que chama "elucidário", para lhe guiar os passos. Nele se diz que "se devem evitar expressões de triunfalismo ou ostentação". O arquitecto deverá antes "procurar uma expressão de simplicidade e um certo despojamento, que mais se afirme pela qualidade arquitectónica do que pelos recursos decorativos".
Foi pouco depois de este documento ter sido elaborado, no início dos anos 90, que Troufa Real acedeu a desenhar a igreja para a paróquia sem cobrar honorários. "Processos como este são uma enorme ratoeira", nota o padre João Norton, da equipa de arquitectura do Secretariado Nacional da Pastoral da Cultura. "O pobre aceita a semente que lhe dão e cresce-lhe uma árvore de que não estava à espera". Neste caso, demasiado espalhafatosa para a função a que se destina: "Uma das qualidades de uma igreja deve ser o silêncio - mesmo visual - e a serenidade", advoga João Norton, para quem o simbolismo empregue no Restelo é "pobrezinho, superficial, de centro comercial". A contradição flagrante entre as orientações do elucidário e a obra do Restelo, explica-a o padre com uma simples frase: "Não é um documento vinculativo", tal como não o é o parecer do Secretariado das Novas Igrejas.
Maçon e ao mesmo tempo católico - "como muitos bispos e até papas", salienta -, Troufa Real gosta de se comparar a Gaudi quando fala da incompreensão de que tem sido alvo nesta obra. Embora já tenha admitido gostar de ideias "que se aproximam do limiar entre o kitsch e o piroso", neste momento prefere descrever esta obra como um trabalho surrealista, "que parece feito por vários arquitectos diferentes".
"Considero-me um arquitecto de templos. Fiz esta igreja a pensar em Deus", declara. E pôs-lhe símbolos maçónicos? Onde? "São segredos meus", responde Troufa Real. "Como cardeal adjunto, foi D. José Policarpo [actual patriarca] quem lançou a primeira pedra da igreja", recorda. Certo é que a construção só avançou há dois anos. Como a obra não está pronta, depois da inauguração a empreitada ainda durará mais um ou dois meses.
Para fases posteriores do projecto, sem data marcada para avançar, ficarão quer a torre quer um outro edifício de grande porte. O padre Colimão já anunciou que não irá morar Na casa paroquial: "Gosto das coisas simples e pequenas". Então e a igreja? "Para a glória de Deus, tenho de fazer o melhor". Para declarar a seguir, orgulhoso: "Esta obra vai marcar a cidade de Lisboa. Deve ser a maior igreja construída em Lisboa nos últimos 25 anos". Quando ficar tudo pronto, os custos finais ascenderão "a sete ou nove milhões de euros".
Mais modesta no seu orçamento de 3,1 milhões, a igreja que está em construção em Miraflores, Algés, também granjeou desde cedo alguma antipatia. Aqui, o que serviu de inspiração a Troufa Real foi o cosmos. O povo, esse, chama-lhe "igreja-foguetão", mas também "supositório". "Aquele cilindro tem lá dentro uma cúpula invertida que é um meteorito", explica o arquitecto. Ignora-se, no entanto, quando poderá semelhante nave desafiar o espaço sideral: desentendimentos entre a paróquia e o arquitecto levaram a que a empreitada parasse há ano e meio. "É uma vergonha", queixa-se o projectista, alegando que alterações feitas ao projecto sem o seu consentimento transformaram o foguetão "num paliteiro sem segurança estrutural". Está previsto que o enorme cilindro seja forrado a azulejos de Querubim Lapa.
O pároco local, Daniel Henriques, admite que o objectivo da transformação foi tornar a obra mais leve mas também mais barata - mas nega que isso tenha comprometido a segurança do imóvel. E deixa uma crítica velada: "Pode ser que, depois de inaugurada a igreja do Restelo, o arquitecto tenha mais disponibilidade para acompanhar esta obra". Tal como o anterior, também o projecto de Miraflores foi oferecido. "A cavalo dado não se olha o dente", diz Diogo Pimentel, assegurando que não estão previstas para Lisboa mais igrejas espalhafatosas. "Não tenho dúvida nenhuma de que a igreja do Restelo se vai tornar uma atracção turística", acrescenta. Mesmo que por razões erradas.
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Além de impossiveis tentativas de classificar tal obra ( só um assustador manual clínico de aberrações o conseguiria ) ... devemos ... acima de tudo ... apercebermo-nos do tipo de mentes capazes de as conceber ... e essas mentes ... pertencem a uma geração que ainda se movimenta na chamada “Ordem” dos Arquitectos e … além disso … e agora vem o mais Grave … Ainda influenciam e formam outras mentes através do Ensino Universitário (!!).
António Sérgio Rosa de Carvalho.
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