CRÓNICA
Quando o mercado da Habitação impede uma cidade coesa
António Brito Guterres, especialista em urbanismo e
questões sociais, escrutina a crise da habitação e as suas consequências. “Uma
cidade coesa é uma cidade em que a presença de cada um de nós num dado bairro
não é um pop up de apenas dois anos, mas sim um investimento a médio prazo que
permite criar relações de vizinhança, solidariedade e proteção.”
por António Brito
Guterres
18.01.2023
Nos dois
primeiros dias de Janeiro, duas notícias tiveram ampla difusão em Portugal. A
partir de dia 1, o Canadá proibiu a aquisição de habitações a estrangeiros não
residentes e Marina Gonçalves foi nomeada ministra da Habitação.
A verdade é que a
decisão do executivo canadiano já estava prevista e assenta num plano mais
elaborado do que o mero anúncio a que, na generalidade, tivemos acesso. Para o
primeiro-ministro Justin Trudeau todos os canadianos, e imigrantes, têm direito
a uma habitação acessível e isso simplesmente deixou de acontecer.
Para o ministro
da habitação canadiano, Ahmed Hussen, a proibição pretende evitar que os
compradores usem a habitação como mercadoria. As casas devem ser um local para
viver.
À referida
proibição junta-se a criação de um imposto, inédito na história do Canadá para
os proprietários estrangeiros não-residentes que detenham casas vazias, em sub
uso ou terrenos urbanos vazios.
Está a criar-se
uma agência federal para investigar a lavagem de dinheiro no mercado de
habitação e a prevenir os lucros excessivos através de uma taxação dos fundos
de investimento.
Estas medidas de
regulamentação do mercado são complementadas por outras: apoios diretos às
famílias, jovens, mulheres vítimas de violência doméstica, estudantes,
populações indígenas; e o incentivo à construção de mais habitação.
Não pretendo com
esta exposição assinar em branco as políticas de habitação do governo federal
do Canadá, mas talvez ajudar a compreender a boa receção que tiveram em
Portugal.
É que o governo
do Canadá é liderado pelo Partido Liberal, que corresponde ao mesmo lugar no
espectro político que o Partido Socialista em Portugal: ambos são supostamente
os grandes partidos do centro-esquerda dos seus países (embora com origens
distintas).
Talvez resida aí
o argumento que levou a tantas partilhas sobre as medidas do governo de
Trudeau. Infelizmente, em Portugal, habituámo-nos a que todo o arco governativo
andasse de braço dado com políticas de fomento à especulação no sector do
imobiliário.
A quebra desses
laços, a partir de precursores do liberalismo, deu alguma esperança, nem que
seja meramente argumentativa.
Aliás, em
Portugal, a criação do primeiro ministério exclusivo da Habitação não pareceu
levantar grandes esperanças. Nem argumentativas.
Do que
conhecemos, tanto do programa de governo como das declarações da ministra
Marina Gonçalves, não se esperam medidas robustas que melhorem os acessos à
habitação. Executar o PRR da habitação é insuficiente.
Este mês tem sido
pródigo no levantamento de situações concretas no que respeita aos acessos à
habitação. O humorista Diogo Faro fez um vox populi através das suas redes
sociais e o resultado foi o que já sabíamos: médicos, engenheiros e enfermeiros
não conseguem competir com reformados estrangeiros ou nómadas digitais para as
mesmas habitações em Lisboa. Agora imagine-se o resto da população portuguesa…
cujos rendimentos são bem menores do que os exemplos citados.
É preciso lembrar
que a habitação é de longe a maior despesa das famílias, representando
sensivelmente um terço do total. Intervenções marginais ao sector como aumento
de ordenados, ajudas ocasionais em numerário, ou mesmo redução de impostos dos
combustíveis; apesar de justas, são medidas que nunca vão compensar os aumentos
sentidos, tanto no arrendamento como nas prestações mensais da habitação
própria.
Este é o
principal entrave à qualidade de vida, e é nele que se deve intervir
estruturalmente.
O governo
anterior quis notabilizar-se pela revogação das medidas impostas pela troika
executadas por Pedro Passos Coelho, mas o sector da habitação ficou de fora
desse movimento.
Eno meio de tanta
desinformação, como é que chegamos aqui?
Em 2011, o
governo português pediu um resgate a três instituições que em conjunto ficaram
conhecidas como troika: Fundo Monetário Internacional, Comissão Europeia e
Banco Central Europeu. Foram assinados dois documentos entre o estado português
e o consórcio internacional: o Memorando de Políticas Económicas e Financeiras
e o Memorando de Entendimento.
Neste último
encontramos o ponto 6: “Mercado da Habitação”, que também tinha o objetivo de
“melhorar o acesso das famílias à habitação”.
Sim, leram bem.
Mais à frente
percebe-se que as alterações a realizar retiram os prazos para negociação das
rendas, diminuem o controlo de rendas, impossibilitam a transmissão dos
contratos a familiares diretos e reforçam os despejos extrajudiciais.
Estas medidas
foram corporizadas pela nova lei das rendas de Novembro de 2012 que ficou
conhecida como a Lei Cristas. Foi uma liberalização total do mercado.
Como se a nova
lei não fosse suficiente, ela foi animada por uma série de iniciativas: vistos
gold, regime para residentes não habituais (isenção de impostos para
estrangeiros que domiciliem a sua residência em Portugal), “Reabilita Agora
Paga Depois” (em Lisboa) e o visto para nómadas digitais.
Sazonalmente
somos inundados com a crueza dos números destas políticas. O ano passado o SEF
anunciou que, em dez anos, os vistos gold captaram mais de 5 mil milhões de
euros de investimento. Estes números são-nos entregues como se contracenassem
com um nada. Como se não houvesse transações imobiliárias caso os vistos gold
não existissem. Como se cidadãos estrangeiros não fossem investir de todo no
país, se não houvesse vistos gold. E como se os que aqui residem não
realizassem essas transações.
No fundamental,
quem nos apresenta esses números, de economistas a responsáveis políticos,
ignora o valor económico de cidades coesas.
Uma cidade em que a presença de cada um de nós num dado
bairro, numa determinada rua não é um pop up de apenas dois anos, mas sim um
investimento a médio prazo que permite criar relações de vizinhança que
conduzam a uma primeira linha de proteção dos mais vulneráveis, uma estima
pelos espaços comuns e públicos, comerciantes que podem oferecer contratos
estáveis e qualificados aos seus trabalhadores.
Se as famílias
que habitam e trabalham em Portugal estiverem seguras face ao valor das suas
prestações com uma casa, de renda ou aos bancos, e menos assustadas com as suas
oscilações, podem investir noutros patamares da vida coletiva.
Contando ainda
que muitos dos investidores das iniciativas ao mercado de habitação não pagam
impostos em Portugal, duvido muito que os milhões anunciados compensem a
desagregação em curso.
O ónus das
políticas em vigor desde 2011 vai recair sobre os mais desfavorecidos. Num
estado social que se vê sobrecarregado pelo fim de diversas redes de
solidariedade. E atenção, estamos só a falar do mercado de habitação.
Porque uma
política de habitação é muito mais do aqui escrutinei.
*Assistente
Social com pós-graduação em Estudos Urbanos e doutorando na mesma área
temática. Investigador no Dinâmia-Cet ISCTE-IUL. Tem coordenado projectos de
desenvolvimento comunitário em vários territórios da Área Metropolitana de
Lisboa. Na área da cultura, foi um dos responsáveis das “Estratégias para a
Cultura da Cidade Lisboa”, ainda em 2022 foi curador da exposição
“Interferências” no MAAT e de “Também Estão no Mapa” no Museu de Lisboa.
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