MEGAFONE
É mais difícil arrendar casa em Lisboa do que ser membro
do Governo
Uma trabalhadora independente, sem rendimento fixo
mensal, a pagar contas sozinha, como é que vive? Pede ajuda financeira à
família, que está longe de ter um rendimento folgado.
Rita Dias
Nascida em
Coimbra em 1989, Rita Dias canta, compõe, escreve e representa. Lançou o seu
primeiro disco "com os pés na terra" em 2013, participou no Festival
da Canção em 2018 e editou o livro de poesia "O Encontro do Tempo
Ternário", em Portugal e no Brasil, em 2019. Desde então, já se estreou em
duas peças de teatro e, em 2022, lançou o seu segundo disco, "Morremos
tanto para crescer".
24 de Janeiro de
2023, 12:00
https://www.publico.pt/2023/01/24/p3/cronica/dificil-arrendar-casa-lisboa-membro-governo-2036084
Este artigo devia
começar com era uma vez, dados os contornos ficcionais da realidade. Mas não me
coíbo de contar uma história.
Depois de uma
pandemia que levou praticamente todas as minhas fontes de rendimento, porque
sou uma jovem artista precária de 33 anos, e depois de ter regressado durante
cinco meses a casa dos meus pais em Coimbra, algo que nunca fiz (nem imaginei
fazer!) desde que saí de casa aos 19 anos, no início de 2021 tornei a reunir
condições profissionais que me permitiam regressar a Lisboa, onde estavam os
meus trabalhos avulsos. A procura de casa à distância e ainda no meio de alguma
covid-19 foi exigente, os valores para uma pessoa solteira são sempre altos e,
tendo animais, torna-se um jogo de xadrez. Mas consegui. Um T1 no centro de
Lisboa, num prédio antigo, que custava 650 euros com contrato ou 500 euros sem
contrato. Ficou à minha consideração escolher. Deduzo que imaginam o que
aconteceu.
Passados oito
meses, perto do fim de 2021, com o forte verão e as temperaturas elevadas,
houve uma praga de baratas que nem a proprietária nem eu conseguimos resolver.
De duas em duas semanas, tinha novas habitantes, da cozinha à casa de banho,
até chegarem à almofada onde eu punha a cabeça todas as noites, que foi a gota
de água. Aproveitei a situação limite para tentar procurar um T2, para ter um
quarto para a minha afilhada. E comecei a busca em Lisboa, que se tornou uma
divina comédia. Um T2 estava completamente fora de questão, tudo superior a
1000 euros; mas mesmo os T1 estavam com valores absurdos. Conclusão: mudei-me
para Sintra. Fui uma das que saíram da capital para ter direito à habitação,
para si e para a família que só em sonhos é que é uma realidade,
independentemente da ascendência ou origem étnica, sexo, língua, território de
origem, nacionalidade, religião, crença, convicções políticas ou ideológicas,
instrução, situação económica, género, orientação sexual, idade, deficiência ou
condição de saúde. Penso já ter lido isto em algum lado, acho que foi na Lei de
Bases da Habitação.
De acordo com
dados recentes do Gabinete de Estratégia e Planeamento do Ministério do
Trabalho, 65% dos jovens trabalhadores em Portugal receberam um salário abaixo
de 1000 euros, em 2022. O apartamento que encontrei em Sintra, e um dos mais
baratos que vi na altura, é um T2 de 700 euros. Um luxo por ser um achado.
Agora é juntar tudo muito bem e fazer omeletes sem ovos: uma trabalhadora
independente, sem rendimento fixo mensal, mas normalmente abaixo dos 1000
euros, a pagar contas sozinha, como é que vive? Pede ajuda financeira à
família, que está longe de ter um rendimento folgado mas que é família e por
isso ajuda com o que tem, sempre que pode. Penso nas pessoas que não têm a quem
recorrer. Como é que vivem? Ou como é que sobrevivem? Torna-se um jogo de Mikado.
E, às vezes, acabam na rua.
Chegamos ao
início de 2023. Um eventual trabalho em Lisboa poderá obrigar-me a regressar à
capital da República. Não tenho carro, desloco-me de transportes públicos
(matéria tão forte que merece um artigo à parte!), o que pode tornar inviável
permanecer em Sintra. E ando a sondar as imobiliárias, elas próprias,
independentemente dos nomes, idealistas. Encontrei uma pérola: um T1 no
Saldanha por 600 e poucos euros por mês, sem condições básicas de
habitabilidade como ter água, com obrigatoriedade de obras num valor superior a
20.000 euros, referentes a um caderno de encargos já fechado, ao gosto do
proprietário, e com um contrato de arrendamento de pelo menos cinco anos, sem
possibilidade de subarrendamento. Um mimo.
E depois é
navegar, navegar, ir ao fundo e voltar. A opção mais barata que encontrei foi
um T0 a 649 euros, que devia ser mais ou menos o equivalente a morar numa
carrinha de caixa aberta; os T1 começam nos 800 euros e vão em velocidade
galopante até aos 1500 euros; os T2 são uma espécie de arco-íris que aparecem
de vez em quando, tendo em conta o meu plafond máximo, ora a 1100 euros na
Maria Pia ora a 1350 euros numa rua perdida no Bairro Alto. E isto é resultado
prático de Lisboa ter ultrapassado em dezembro de 2022, pela primeira vez, os
2000 euros de renda média, o que faz com que o valor da renda média seja 519
euros mais caro do que há um ano, de acordo com o barómetro Imovirtual. E esta,
hein?
Se isto não é
viver uma ficção, não devo andar longe. Mas e o que é que tem que ver com a
escolha de ministros e ministras e de secretários e secretárias de Estado? Para
mim, que ando embrulhada em duas ou três rendas, duas ou três cauções,
comprovativos de IRS e comprovativos de salário mensal, um fiador com casa
própria, comprovativos de dívidas às Finanças e à Segurança Social, só me resta
pensar que é mais difícil arrendar casa em Lisboa do que ser membro do Governo,
mesmo com o novo questionário.
Caso o
primeiro-ministro António Costa ainda vá a tempo, deixo a sugestão de pedir uma
franquia a cada pessoa convidada no valor do seu ordenado, a ser entregue no
fim do mandato, se o comportamento for adequado e se deixar a pasta senão
melhor, pelo menos igual ao que estava. E caso o Governo coloque anúncios no LinkedIn
perante a dificuldade de encontrar alguém, já que fazer política neste país se
está a assemelhar a lavar a roupa suja em praça pública, com consequências
graves para a democracia, como se todos os políticos e políticas fossem
corruptos, incompetentes e mal-intencionados, que não são, eu fiz o favor de me
adiantar, já respondi às 36 perguntas e, segundo análise fiável e sob
compromisso de honra, deu tudo certo, pelo que estou apta a servir o país
formalmente.
Não sei se ria,
se chore. O Diogo Faro pôs as pessoas a rir com a avó, que ninguém sabe se tem
ou não haxixe em casa ou na quinta com os gatos, e pôs as pessoas a partilhar
os choros que são as suas vidas: casais divorciados a viver na mesma casa
porque não têm forma de ter uma casa própria, vítimas de violência doméstica
que não conseguem procurar uma casa para si e para as crianças, trabalhadores
no ativo, com crianças, que regressam a casa dos pais ou que vivem nas
traseiras de uma fábrica ou que chegam a viver no carro, idosos com ordens de despejo
com prazos de um mês.
Chega? Não. E foi
por isso que o humorista se mexeu para fundar a plataforma Casa é Um Direito
(@casaeumdireito), com uma manifestação agendada para o dia 1 de abril. Parece
tudo mentira, mas não é. E não vá o Ministério Público lembrar-se de pedir a
inconstitucionalidade da Lei de Bases da Habitação ou mesmo do artigo 65.º
Habitação e Urbanismo da Constituição da República Portuguesa, como pediu da
norma da Lei n.º 69/2014, de 29 de agosto, que criminaliza os maus tratos a animais
de companhia, um verdadeiro absurdo, temos mesmo de ir para a rua gritar — de
novo — que só há liberdade a sério quando houver a paz, o pão, habitação,
saúde, educação.
A autora escreve
segundo o novo acordo ortográfico
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