EDITORIAL
Um discurso de Belém
com sabor a São Bento
Quando lemos um
discurso do Presidente e ele nos parece um discurso do Governo, temos de
reconhecer que há-de haver por aí uma confusão de papéis.
MANUEL CARVALHO
1 de Janeiro de
2020, 20:25
Em tempos de
normalidade, os discursos de Natal e do Ano Novo ficam condenados a resumir-se
a palavras moles, vontades gerais e promessas fáceis. Se no Natal o
primeiro-ministro fez a apologia e assumiu compromissos em relação ao Serviço
Nacional de Saúde que qualquer político da ala moderada poderia subscrever, no
Ano Novo o Presidente da República respondeu-lhe com um discurso que António Costa
subscreveria de ponta a ponta.
Estejamos
atentos: enquanto o ciclo de aprovação do Orçamento do Estado de 2020 não se
fechar, enquanto não se perceber que quadro de estabilidade à esquerda vai o
Governo ter a médio prazo e enquanto não se perceber bem o que vai acontecer ao
CDS e ao PSD, o Presidente será macio como seda. O pior que lhe pode acontecer
é um ano de barafunda a anteceder a sua mais que provável recandidatura.
Marcelo Rebelo de
Sousa não gosta de ser assim. Se se empenha em não causar conflitos, não deixa
de soltar farpas, de fazer avisos à navegação ou denunciar opções erradas.
Ontem, porém, até essa capacidade de dissimular remoques em apontamentos e de
dar alfinetadas aqui e ali se gorou.
O seu discurso do
Ano Novo é o discurso do Governo. Não está, por exemplo, longe do discurso de
António Costa na sua tomada de posse – com basicamente as mesmas prioridades
para o ambiente, as desigualdades, a demografia ou o conhecimento, o mesmo
inventário de dificuldades e o mesmo remédio para as superar, através de um
“governo forte, concretizador e dialogante”. O Presidente está a ficar ainda
mais ecuménico e arrisca-se a transformar a “cooperação entre os palácios de
São Bento e Belém” num casamento aborrecido e inútil.
Compreende-se que
o Presidente queira ajudar o Governo que trocou a previsibilidade da
“geringonça” pela incerteza da corda bamba a encontrar o seu caminho. Mas há
muitas formas de o fazer. A colagem não será a mais recomendável.
Uma coisa é
percebermos que o Presidente, e bem, elege a estabilidade como prioridade e
tudo faz para a garantir, nem que para isso tenha de aparecer a cada passo ao
lado do Governo; outra coisa diferente é assumir uma pose paternalista e
protectora que abdica da influência ou da moderação transformada em muleta.
Quando lemos um
discurso do Presidente e ele nos parece um discurso do Governo, temos de
reconhecer que há-de haver por aí uma confusão de papéis. A política sem tensão
partidária e institucional não costuma dar bons resultados.
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